Fechou os dedos sobre o vagalume.
Suas mãos se iluminaram vagamente na luz esverdeada. Seu sorriso sumiu na
escuridão momentânea. Eu sorri em minha escuridão.
Foi em março de um ano que não
recordo, quando ainda não se contava a idade com peso, nem se pensava em nada
no mundo, que não o próprio universo dos galhos e pedras do quintal, dos
brinquedos no quarto e na pipa que tentava colocar aos céus. Mas me lembro que
foi em março, que o tempo era quente e o pequeno carro parecia encolher em meio
ao passeio de três horas até nosso destino final.
Tudo se estendia lentamente, as três
horas eram eternas... O calor era eterno... Minha infância era eterna... E o
sorriso de Marina no meio do pasto enquanto caçávamos vagalumes no meio da
noite. Nada acabava.
Por isso as quatro semanas que
passei no sítio de meu tio avó, que hoje o nome se confunde com outros e já não
sei mais ao certo qual era o correto, e na vergonha de minha péssima memória
nunca pergunto a ninguém da família, nem encontro meios de redescobrir o nome
daquela figura encurvada, olhos fundos cravados na face escorrida pelo tempo,
mãos fortes e com veias que saltavam a qualquer movimento, são atemporais.
Todo o sítio é um pedaço de
eternidade que jamais conseguirei ver de volta.
Não pelo lugar, mas pela história.
Meu tio avó nos contava de um rio
que apareceu quando ele era jovem, mas que ele secou, e levou embora tudo o que
ele mais gostava. Por isso seus olhos negros eram secos dentro das orbitas
profundas, querendo correr de volta para dentro da mente, e esquecer todo o
mundo de fora... Ele olhava o mundo sob lentes e cores que eu desconheço, e
permanecia com os lábios encurvados para o solo. As costas se encurvavam
também...
Não percebi o esforço que ele fazia
para se levantar.
Eu ainda vivia leve. Carregava
minhas penas apenas.
O sitio se estendia para além dos
olhos. E meus olhos se inundaram com a liberdade de correr e fugir de tudo.
Marina corria comigo.
Ficavam nossos pais na sala ou na
mesa da cozinha, sentados sérios, com rostos sóbrios e aparentando uma calma
que não existia entre eles mais. Falavam baixo. Seguravam firmemente aquelas
antigas xícaras de café, manchadas no fundo pelo uso e pelo tempo. Discutiam
coisas que jamais nos deixaram ouvir. Silenciavam-se frente a nossa presença, e
afastavam-nos quando possível. Fomos jogados ao mundo.
Um mundo que de começo não era
nosso.
Mas da figura sombria e encurvada
como uma montanha, que se sentava na varanda e afundava os olhos no horizonte,
buscando o tempo que havia passado. Ele foi rei ali... E ele falava sobre o
rio.
O rio...
Que havia secado e desaparecido tão
rapidamente.
Havia um rio a muito tempo atrás,
depois das colinas que ficavam ali a direita, na direção da árvore, que
chamávamos de Aga. Depois do campo, no meio das árvores, um rio apareceu... Ele
começou como um riacho... Pequeno, minúsculo... Incrível.
E os olhos dele se enchiam de
brilho.
Brilho que vi nos olhos de Marina
quando no meio do mato alto, no meio do campo á noite, sob as luzes dos céus, e
junto das luzes da terra, eu e ela caçávamos vagalumes. E nossos sorrisos eram
iluminados por segundo e apagávamo-nos no meio da noite. E então, depois de
encher o pote de vidro, que não me lembro se havia sido de geleia, de azeitona
ou palmito, ficávamos olhando os insetos. Nosso céu próprio.
Antes de caminharmos de volta para a
casa, libertávamos todos...
Ninguém libertou nossos pais. E eles
continuaram sentados na mesa da cozinha, olhando baixo, mexendo o café já frio
dentro das xícaras antigas, rabiscando papéis importantes, importando-se com o
mundo feito de contas que não conseguia compreender. Olhavam sérios... Quanto
peso não havia naqueles olhos rodeados de olheiras, quantas palavras não
estavam presas naquelas gargantas que haviam desaprendido a falar. Sussurravam.
Sussurravam apenas... E a casa inteira era silêncio.
O vento batia as portas e mexia nas
cortinas, um farfalhar para que o mundo não se tornasse tão mudo. E lá fora eu
era o vento. Eu e Marina, fazendo o mundo ter algum som.
Riamos...
Lembro-me do sorriso.
Dos sorrisos.
Faltavam sorrisos em meu tio avó.
O rosto olhava o mundo lá longe,
sempre voltado para a direção do rio. Que secou. Que morreu. Ele e seus olhos
secos olhavam para mim, e eu não compreendia... Falava de outro tempo, e não
havia outro tempo na minha vida, nem outras histórias, porque tudo era eterno,
e eu era mais eterno que tudo naquele mundo.
Marina era eterna.
E as luzes que colocávamos no pote
de vidro, e que se tornavam nosso céu.
Quando saiamos a noite, tínhamos que
fazer silêncio. A casa dormia em um sono leve e agitado. Eram nossos pais
nervosos com coisas que não nos contavam, dormiam sussurrando números que não
haviam digerido, histórias que nos eram desconhecidas. Dormiam na mesma
agitação...
Meu tio avó também dormia, mas era
embebido em seus sonhos que faziam seus olhos brilharem, mas que a noite,
recobertos por pálpebras grossas, estavam protegidos do mundo em que ele vivia
e havia passado sobre a eternidade que seu ser um dia sentiu. E sem olhos
abertos para brilhar, os lábios principiavam um sorriso tímido, que jamais
chegou a lhe brotar nos lábios murchos e áridos. Ele secara também.
Mas eu e Marina não. Nós éramos
eternos. E nas noites, que não conseguíamos ficar nas camas, pois toda a casa
era sussurros e números falados baixo, eu e ela levantávamos, e como se ainda
fosse dia, saíamos da casa a principio com passos tímidos, até sentirmos o
mundo sobre nossos pés, que mal pisavam no chão. Levávamos apenas um pote em
mãos. E penas. E corríamos o mais rápido que nossas pernas curtas conseguiam,
mãos atadas na descida pela colina.
Olhos a frente.
Vento avante.
E éramos o vento fazendo o mundo
viver sobre nossos barulhos tímidos.
E éramos o mundo que não dormia
agitado sob lençóis, nem o mundo que havia entristecido. Porque eu e Marina
sorriamos e caçávamos vagalumes para fazer de céu. O sorriso dela era leve, eu
era leve... Por alguns segundos nos víamos, e então, desaparecíamos quando os
vagalumes eram capturados, as duas pequenas mãos em concha, segurando tesouros,
segurando estrelas, segurando todo o que nos importava.
Não tínhamos rio algum para nós
apaixonar.
Tínhamos vagalumes...
Nossos pais não se deram o trabalho
de se apaixonar por nada dali.
E as quatro semanas foram gastas em
contas em vários papéis e em meias palavras, meias conversas em meio
silêncio... Que ocupavam agora o lugar das conversas, mesmo comigo e com
Marina, sussurros carinhosos, leves afagos na cabeça, a mão indicando a
porta... Os sorrisos falsos nos rostos ansiosos. A ansiedade em meu peito para
correr para fora. Para não sufocar ali.
Então corria. Segurando a mão de
Marina, que queria correr também.
Não havia vagalumes durante o dia,
então íamos ao local onde o rio esteve, e secou. Era um rastro forte na terra,
uma ruga de um tempo que nunca mais sairia daquele mundo, nem da testa de meu
tio avó... Ressecada, que curvava-se sobre si, raízes desesperadas saltando da
terra em busca de alguma água. Caminhávamos...
O tempo não funcionava sobre nós.
Não vimos a semanas passarem, não vimos os dias passarem... Demorei anos para
ver que passei.
E que de tudo ficou a figura de
Marina sorrindo, enquanto capturávamos vagalumes.
Demorou muito tempo.
Meu tio avó ficou preso em seu rio.
Que secou e que sumiu, com histórias que ele jamais me contou, mas que eram
vistas em sua forma de olhar as coisas, os lábios coladas mudos, mastigando
momentos que ele não quis ou não soube dividir, olhando com melancolia e
reconhecimento, aquelas duas crianças que éramos eu e Marina olhando para ele.
Ele olhava para mim, vendo todo o meu interior, iluminando tudo, e eu queria
correr. Então segurava a mão de Marina e íamos.
Havia muitas árvores em que subir,
muitos troncos para pular. Virávamos pedras. Colhíamos flores. Afundávamos os
olhos no horizonte, e dizíamos reis de toda aquela terra que se estendia como
carpete sob nossos pés. Mas estávamos de mãos dadas.
E quando os sussurros finalmente
chegaram em solução. Que também não nos foi dita. E as quatro semanas se
colocaram como fim a todo o meu reinado... Assustei. Assisti o desespero dos
meus olhos refletido dentro dos olhos desesperados de Marina.
Consolaram-nos com palavras e
conversas, que repudiei, que eram muito altas para as falas abafadas, e muito
absolutas para o mundo que vivi. Não me apontaram a porta. Meus dedos não se
encontraram aos de Marina. Não corremos colina abaixo. Descemos em passo
lento... Malas nos lombos e nos braços, carregando tudo o que havíamos trazido
até ali. Embalados nossos pertences. O pote de vidro, que não me lembro a
origem, e que serviu de cápsula para o céu meu e de Marina, ficou em baixo da
pia...
Sentei-me no carro indignado. Não
olhei o rosto de meus pais, não consegui me despedir de nada dali. Tudo me
pertencia, tudo era parte de mim. Não consegui dizer adeus as árvores, que eram
postos de observação, nem a cicatriz feita pelo rio seco, nem ao tio avó
sentado na varanda da casa, nem a casa, que agora não sussurrava, nem ao campo
de vagalumes, nem ao sorriso de Marina...
E fui levado.
Emburrado.
Perdi meu reino, vencido por uma
solução de números que me deram e me tiraram o feudo em que vivi.
Mas ainda lembro dessa época, que
ficou presa em meus olhos, e me fizeram secar sobre um momento de minha vida,
evitando que ele fosse esquecido. Quando o vento me bate no rosto, ainda sinto
a mão de Marina na minha. Ainda vejo o sorriso iluminado por vagalumes. Ainda
sinto o cheiro da grama e o som das risadas. O poder de ser o rei.
Meu reino se estende.
Imaginariamente...
Pois já não estou mais lá. Estou
mais só. E reconheço muitos fatos que não compreendi.
O tio avó seco... Árido... Olhos
postos em outro lugar...
Cá estou eu hoje, reconhecendo que
não sou eterno.
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