domingo, 9 de dezembro de 2012

Vagalumes


            Fechou os dedos sobre o vagalume. Suas mãos se iluminaram vagamente na luz esverdeada. Seu sorriso sumiu na escuridão momentânea. Eu sorri em minha escuridão.
            Foi em março de um ano que não recordo, quando ainda não se contava a idade com peso, nem se pensava em nada no mundo, que não o próprio universo dos galhos e pedras do quintal, dos brinquedos no quarto e na pipa que tentava colocar aos céus. Mas me lembro que foi em março, que o tempo era quente e o pequeno carro parecia encolher em meio ao passeio de três horas até nosso destino final.
            Tudo se estendia lentamente, as três horas eram eternas... O calor era eterno... Minha infância era eterna... E o sorriso de Marina no meio do pasto enquanto caçávamos vagalumes no meio da noite. Nada acabava.
            Por isso as quatro semanas que passei no sítio de meu tio avó, que hoje o nome se confunde com outros e já não sei mais ao certo qual era o correto, e na vergonha de minha péssima memória nunca pergunto a ninguém da família, nem encontro meios de redescobrir o nome daquela figura encurvada, olhos fundos cravados na face escorrida pelo tempo, mãos fortes e com veias que saltavam a qualquer movimento, são atemporais.
            Todo o sítio é um pedaço de eternidade que jamais conseguirei ver de volta.
            Não pelo lugar, mas pela história.
            Meu tio avó nos contava de um rio que apareceu quando ele era jovem, mas que ele secou, e levou embora tudo o que ele mais gostava. Por isso seus olhos negros eram secos dentro das orbitas profundas, querendo correr de volta para dentro da mente, e esquecer todo o mundo de fora... Ele olhava o mundo sob lentes e cores que eu desconheço, e permanecia com os lábios encurvados para o solo. As costas se encurvavam também...
            Não percebi o esforço que ele fazia para se levantar.
            Eu ainda vivia leve. Carregava minhas penas apenas.
            O sitio se estendia para além dos olhos. E meus olhos se inundaram com a liberdade de correr e fugir de tudo. Marina corria comigo.
            Ficavam nossos pais na sala ou na mesa da cozinha, sentados sérios, com rostos sóbrios e aparentando uma calma que não existia entre eles mais. Falavam baixo. Seguravam firmemente aquelas antigas xícaras de café, manchadas no fundo pelo uso e pelo tempo. Discutiam coisas que jamais nos deixaram ouvir. Silenciavam-se frente a nossa presença, e afastavam-nos quando possível. Fomos jogados ao mundo.
            Um mundo que de começo não era nosso.
            Mas da figura sombria e encurvada como uma montanha, que se sentava na varanda e afundava os olhos no horizonte, buscando o tempo que havia passado. Ele foi rei ali... E ele falava sobre o rio.
            O rio...
            Que havia secado e desaparecido tão rapidamente.
            Havia um rio a muito tempo atrás, depois das colinas que ficavam ali a direita, na direção da árvore, que chamávamos de Aga. Depois do campo, no meio das árvores, um rio apareceu... Ele começou como um riacho... Pequeno, minúsculo... Incrível.
            E os olhos dele se enchiam de brilho.
            Brilho que vi nos olhos de Marina quando no meio do mato alto, no meio do campo á noite, sob as luzes dos céus, e junto das luzes da terra, eu e ela caçávamos vagalumes. E nossos sorrisos eram iluminados por segundo e apagávamo-nos no meio da noite. E então, depois de encher o pote de vidro, que não me lembro se havia sido de geleia, de azeitona ou palmito, ficávamos olhando os insetos. Nosso céu próprio.
            Antes de caminharmos de volta para a casa, libertávamos todos...
            Ninguém libertou nossos pais. E eles continuaram sentados na mesa da cozinha, olhando baixo, mexendo o café já frio dentro das xícaras antigas, rabiscando papéis importantes, importando-se com o mundo feito de contas que não conseguia compreender. Olhavam sérios... Quanto peso não havia naqueles olhos rodeados de olheiras, quantas palavras não estavam presas naquelas gargantas que haviam desaprendido a falar. Sussurravam. Sussurravam apenas... E a casa inteira era silêncio.
            O vento batia as portas e mexia nas cortinas, um farfalhar para que o mundo não se tornasse tão mudo. E lá fora eu era o vento. Eu e Marina, fazendo o mundo ter algum som.
            Riamos...
            Lembro-me do sorriso.
            Dos sorrisos.
            Faltavam sorrisos em meu tio avó.
            O rosto olhava o mundo lá longe, sempre voltado para a direção do rio. Que secou. Que morreu. Ele e seus olhos secos olhavam para mim, e eu não compreendia... Falava de outro tempo, e não havia outro tempo na minha vida, nem outras histórias, porque tudo era eterno, e eu era mais eterno que tudo naquele mundo.
            Marina era eterna.
            E as luzes que colocávamos no pote de vidro, e que se tornavam nosso céu.
            Quando saiamos a noite, tínhamos que fazer silêncio. A casa dormia em um sono leve e agitado. Eram nossos pais nervosos com coisas que não nos contavam, dormiam sussurrando números que não haviam digerido, histórias que nos eram desconhecidas. Dormiam na mesma agitação...
            Meu tio avó também dormia, mas era embebido em seus sonhos que faziam seus olhos brilharem, mas que a noite, recobertos por pálpebras grossas, estavam protegidos do mundo em que ele vivia e havia passado sobre a eternidade que seu ser um dia sentiu. E sem olhos abertos para brilhar, os lábios principiavam um sorriso tímido, que jamais chegou a lhe brotar nos lábios murchos e áridos. Ele secara também.
            Mas eu e Marina não. Nós éramos eternos. E nas noites, que não conseguíamos ficar nas camas, pois toda a casa era sussurros e números falados baixo, eu e ela levantávamos, e como se ainda fosse dia, saíamos da casa a principio com passos tímidos, até sentirmos o mundo sobre nossos pés, que mal pisavam no chão. Levávamos apenas um pote em mãos. E penas. E corríamos o mais rápido que nossas pernas curtas conseguiam, mãos atadas na descida pela colina.
            Olhos a frente.
            Vento avante.
            E éramos o vento fazendo o mundo viver sobre nossos barulhos tímidos.
            E éramos o mundo que não dormia agitado sob lençóis, nem o mundo que havia entristecido. Porque eu e Marina sorriamos e caçávamos vagalumes para fazer de céu. O sorriso dela era leve, eu era leve... Por alguns segundos nos víamos, e então, desaparecíamos quando os vagalumes eram capturados, as duas pequenas mãos em concha, segurando tesouros, segurando estrelas, segurando todo o que nos importava.
            Não tínhamos rio algum para nós apaixonar.
            Tínhamos vagalumes...
            Nossos pais não se deram o trabalho de se apaixonar por nada dali.
            E as quatro semanas foram gastas em contas em vários papéis e em meias palavras, meias conversas em meio silêncio... Que ocupavam agora o lugar das conversas, mesmo comigo e com Marina, sussurros carinhosos, leves afagos na cabeça, a mão indicando a porta... Os sorrisos falsos nos rostos ansiosos. A ansiedade em meu peito para correr para fora. Para não sufocar ali.
            Então corria. Segurando a mão de Marina, que queria correr também.
            Não havia vagalumes durante o dia, então íamos ao local onde o rio esteve, e secou. Era um rastro forte na terra, uma ruga de um tempo que nunca mais sairia daquele mundo, nem da testa de meu tio avó... Ressecada, que curvava-se sobre si, raízes desesperadas saltando da terra em busca de alguma água. Caminhávamos...
            O tempo não funcionava sobre nós. Não vimos a semanas passarem, não vimos os dias passarem... Demorei anos para ver que passei.
            E que de tudo ficou a figura de Marina sorrindo, enquanto capturávamos vagalumes.
            Demorou muito tempo.
            Meu tio avó ficou preso em seu rio. Que secou e que sumiu, com histórias que ele jamais me contou, mas que eram vistas em sua forma de olhar as coisas, os lábios coladas mudos, mastigando momentos que ele não quis ou não soube dividir, olhando com melancolia e reconhecimento, aquelas duas crianças que éramos eu e Marina olhando para ele. Ele olhava para mim, vendo todo o meu interior, iluminando tudo, e eu queria correr. Então segurava a mão de Marina e íamos.
            Havia muitas árvores em que subir, muitos troncos para pular. Virávamos pedras. Colhíamos flores. Afundávamos os olhos no horizonte, e dizíamos reis de toda aquela terra que se estendia como carpete sob nossos pés. Mas estávamos de mãos dadas.
            E quando os sussurros finalmente chegaram em solução. Que também não nos foi dita. E as quatro semanas se colocaram como fim a todo o meu reinado... Assustei. Assisti o desespero dos meus olhos refletido dentro dos olhos desesperados de Marina.
            Consolaram-nos com palavras e conversas, que repudiei, que eram muito altas para as falas abafadas, e muito absolutas para o mundo que vivi. Não me apontaram a porta. Meus dedos não se encontraram aos de Marina. Não corremos colina abaixo. Descemos em passo lento... Malas nos lombos e nos braços, carregando tudo o que havíamos trazido até ali. Embalados nossos pertences. O pote de vidro, que não me lembro a origem, e que serviu de cápsula para o céu meu e de Marina, ficou em baixo da pia...
            Sentei-me no carro indignado. Não olhei o rosto de meus pais, não consegui me despedir de nada dali. Tudo me pertencia, tudo era parte de mim. Não consegui dizer adeus as árvores, que eram postos de observação, nem a cicatriz feita pelo rio seco, nem ao tio avó sentado na varanda da casa, nem a casa, que agora não sussurrava, nem ao campo de vagalumes, nem ao sorriso de Marina...
            E fui levado.
            Emburrado.
            Perdi meu reino, vencido por uma solução de números que me deram e me tiraram o feudo em que vivi.
            Mas ainda lembro dessa época, que ficou presa em meus olhos, e me fizeram secar sobre um momento de minha vida, evitando que ele fosse esquecido. Quando o vento me bate no rosto, ainda sinto a mão de Marina na minha. Ainda vejo o sorriso iluminado por vagalumes. Ainda sinto o cheiro da grama e o som das risadas. O poder de ser o rei.
            Meu reino se estende.
            Imaginariamente...
            Pois já não estou mais lá. Estou mais só. E reconheço muitos fatos que não compreendi.
            O tio avó seco... Árido... Olhos postos em outro lugar...
            Cá estou eu hoje, reconhecendo que não sou eterno.

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