segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Ausência


            As chaves continuam ao lado do cinzeiro. O cinzeiro perto das violetas. As violetas em cima da mesa. A mesa no centro da cozinha...
            As coisas se mantiveram nos lugares mesmo depois dele ir embora.
            A colcha em cima da cama ainda é florida. O quarto se manteve azul...
            Ela ainda chega as seis, com o cansaço sobre os ombros e sob o braço a pasta de trabalho. Ainda carrega as cartas com a mão esquerda. Abre a porta com a direita...
            Senta-se na mesma cadeira. Cozinha com as mesmas panelas. Lava a louça sempre sem usar as luvas, mesmo mantendo-as de baixo da pia. Liga o radio enquanto limpa a casa... Musicas de piano e francesas quando se sente calma ou quando esta triste. Escuta rock quando precisa se animar ou sente raiva. Fica em silencio quando precisa pensar ou chorar.
            A metade do armário em que as coisas dele se encontravam permaneceu vazia desde que ele se foi. Os casacos foram colocados dentro das caixas enquanto brigavam. Os sapatos ocuparam os fundos das malas, enquanto eles se olhavam aborrecidos. As roupas caíram por cima dos sapatos, enquanto tentavam se justificar. Tudo foi lacrado quando duelavam aos gritos. E as caixas de mudança subiram no carro enquanto ela chorava e ele apenas sentia ódio.
            As quatro xícaras quebradas não foram substituídas.
            Ela ainda ocupa apenas o seu gancho no cabideiro.
            Manteve o local onde existem as chaves reserva.
            Dorme sempre do lado direito da cama, mas sempre acorda com o pé esquerdo. Anda para o banheiro sem nunca acender uma luz até fechar a porta atrás de si. A pasta de dente fica do lado contrário ao do sabonete. As toalhas de rosto são sempre lilases. E as toalhas de banho, brancas.
            Acorda no mesmo horário, com as mesmas músicas baixas, como se temesse acordar alguém, mesmo estando sozinha. Compra flores para enfeitar a casa todas as sextas. Lava roupa as terças. Passa-as ao domingo ou no sábado na madrugada.
            A rotina é a mesma. Mesmo sem ele ali ao lado.
            Ela ainda o vê em suas fotos, em cima do piano, nas estantes de livros, pendurado na parede... Mas ele não vai voltar.
            Sente saudade... Não a saudade aterradora, que a faria correr atrás dele. Mas a saudade calma, a certeza de que esse tempo passado junto foi bom e que ainda assim acabou.
            Pensa nele alguns dias. Mas não todos.
            Pensa nas contas e nos estudos. Pensa sobre como será o futuro. Pensa sobre o que vai comer durante a semana, e mantém a lista de compras na geladeira para ir a feira e no mercado nas quartas.
            Durante o fim de semana as vezes sai assistir um filme. As vezes vai até o parque, quando esta sol. Passa sempre que pode em alguma livraria. Lê antes de dormir. Dorme virada para a direita. Dorme sempre perto da janela. Deixa a janela aberta nos dias quentes...
            Ainda para para olhar as nuvens, e caminha olhando o céu.
            O riso ainda é o mesmo. O sorriso e o choro também.
            Ele não caminha ao lado dela. Mas ela caminha...
            As vezes pergunta-se porque mantém os espaços deixados por ele. Porque não os preenche com outras coisas... Mas não sabe a resposta certa... Imagina que é porque esteja habituada a vida dessa forma. Imagina que talvez deseje a volta dele. Imagina que talvez esteja deixando esse espaço para que outro, que não ele, o ocupe.
            Não sabe a resposta certa.
            Mas, que importa?
            Quase não há diferença entre a presença e o vazio se todo o amor morreu seco.     

domingo, 23 de dezembro de 2012

As mãos


(este texto dialoga com o poema de Carlos Drummond de Andrade – O sentimento do mundo)

Tenho duas mãos apenas...
            Duas mãos que carregam meus papeis, e seguram a vassoura e o rodo para limpar a casa. Duas mãos que passam a roupa aos domingos, e lavam a louça diariamente. Esfregam meias e esfregam azulejos...
            Em meus dedos há sempre o peso de tarefas. Se não da dimensão cotidiana da limpeza e da faxina, então do cotidiano estudo. Dizem que as lapiseiras são leves, mas pesam terrivelmente sobre as mãos, calejam-nos como escravos, escravizam-nos sob a proposta de futuro que jamais existiu... Nossos sonhos açoitam nossos lombos.
            Em meus olhos há sempre melancolia, mas não volto os passos para trás, não importa quantas vezes vire a cabeça para ver o que já passei. Não posso... Vejo que há em meu passado lágrimas, mas que são mais leves que as que escorrem por meus olhos agora. Há dores, que são menores do que as que sinto hoje. Há angustia, mas essa agora me embala tão completamente que tenho os joelhos sempre a tremer e esse desejo de cair que nunca passa... E me persegue.
            Vejo os abraços antigos, e como quero voltar. Mas jamais o faço. Se voltar um passo sequer não andarei a frente nessa batalha. Sei que morrerei com as balas, porque também seguro um fuzil. Sei que todos morreremos nessa guerra, porque é disso que as guerras são feitas...
            Algumas pessoas tentam se animar com as linhas perdidas dentro dos bolsos das fardas. Estamos todos sempre fardados, dormindo com as armas ao alcance das mãos, segurando-as como extensões de nossos dedos, e de nossas mãos. Nada me anima. Vejo-os e entristeço-me. Onde estou? Pergunto-me diariamente, sabendo que nunca tive resposta, nem nunca a terei. Sei que estou longe, e que mesmo com os pés doendo e joelhos fraquejando falta muito ainda para chegar em algum lugar...
            Mas é tão difícil... Quando tenho uma certeza, busco um sonho. Quando a certeza é perdida, ela se torna meu sonho, e o sonho anterior é um simples capricho. Ando sempre em linha torta. Perdi todas as linhas retas, se não as traçadas por minhas mãos.
            Tenho duas mãos, elas não carregam qualquer sentimento do mundo, são pequenas demais para isso. Não carregam meus sonhos. Não carregam minhas lágrimas. Não carregam quase nada, deixaram as ilusões escorrer por entre os dedos, e as perdi pelo caminho... Mas são capazes de carregar um botão perdido, uma folha seca, uma pequena pedra, um fio de cabelo... Restos... Mas que não me abandonam, não caem de minhas mãos nesse amanhecer dentro de mim que é sempre escuro.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Mar


Eu sou o mar!
E afundo todos os navios que caem em meus braços, em minhas ondas. Só há espuma em minha cabeça, que são sereias mortas pelo desespero, ou bolhas vazias. Sou desespero e também sou dor...
Arrasto tudo para dentro e afogo em minhas águas frias.
Os que sobrevivem já estão longe de suas casas. Estão longe de seus lares. E não há lar algum para mim. Bato a porta de todos, ninguém a abre, mas vejo as luzes brilhantes pelas janelas embaçadas, grito e respingo nos vidros, fecham-me as cortinas brancas que o sol já amarelou. Mas sei que lá dentro há comida quente, abraços quentes e sorrisos quentes. E choro.
Meus pés estão sempre frios. Minhas mãos parecem mortas...
Mas sou apenas um mar bravio.
E se eu não passo, então quem pode? Emboto-me, e deito sobre minhas ondas, encolho os pés para tentar torná-los quentes, juntos as mãos, como em prece.
Adormeço.
Mas arrasto o mundo para dentro do meu sono.
Há muitas crianças brincando na areia, muitos casais andam pela praia, os guarda sois despontam como lancetas, impondo-se entre meu cobertor de areia e o céu. Há muitos risos que ecoam pelo ar, chegam a mim como sinos e mensageiros do vento, isso as vezes me acalenta, e canto dentro das conchas para que os desocupados e apaixonados que se debruçam sobre essas possam me ouvir.
Mas as vezes isso me enfurece. Porque o mundo viveu enquanto dormi. E em meu choro ninguém me consolou... Como se pode consolar tantas sereias mortas? Tantas águas revoltas? Tantas lágrimas que salgaram os rostos dos que vieram?...
Não podem. Eu sei...
Mas não consigo. Quero esses abraços quentes. E na ressaca, puxo lentamente todo esse mundo, por quem tenho amor.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Vagalumes


            Fechou os dedos sobre o vagalume. Suas mãos se iluminaram vagamente na luz esverdeada. Seu sorriso sumiu na escuridão momentânea. Eu sorri em minha escuridão.
            Foi em março de um ano que não recordo, quando ainda não se contava a idade com peso, nem se pensava em nada no mundo, que não o próprio universo dos galhos e pedras do quintal, dos brinquedos no quarto e na pipa que tentava colocar aos céus. Mas me lembro que foi em março, que o tempo era quente e o pequeno carro parecia encolher em meio ao passeio de três horas até nosso destino final.
            Tudo se estendia lentamente, as três horas eram eternas... O calor era eterno... Minha infância era eterna... E o sorriso de Marina no meio do pasto enquanto caçávamos vagalumes no meio da noite. Nada acabava.
            Por isso as quatro semanas que passei no sítio de meu tio avó, que hoje o nome se confunde com outros e já não sei mais ao certo qual era o correto, e na vergonha de minha péssima memória nunca pergunto a ninguém da família, nem encontro meios de redescobrir o nome daquela figura encurvada, olhos fundos cravados na face escorrida pelo tempo, mãos fortes e com veias que saltavam a qualquer movimento, são atemporais.
            Todo o sítio é um pedaço de eternidade que jamais conseguirei ver de volta.
            Não pelo lugar, mas pela história.
            Meu tio avó nos contava de um rio que apareceu quando ele era jovem, mas que ele secou, e levou embora tudo o que ele mais gostava. Por isso seus olhos negros eram secos dentro das orbitas profundas, querendo correr de volta para dentro da mente, e esquecer todo o mundo de fora... Ele olhava o mundo sob lentes e cores que eu desconheço, e permanecia com os lábios encurvados para o solo. As costas se encurvavam também...
            Não percebi o esforço que ele fazia para se levantar.
            Eu ainda vivia leve. Carregava minhas penas apenas.
            O sitio se estendia para além dos olhos. E meus olhos se inundaram com a liberdade de correr e fugir de tudo. Marina corria comigo.
            Ficavam nossos pais na sala ou na mesa da cozinha, sentados sérios, com rostos sóbrios e aparentando uma calma que não existia entre eles mais. Falavam baixo. Seguravam firmemente aquelas antigas xícaras de café, manchadas no fundo pelo uso e pelo tempo. Discutiam coisas que jamais nos deixaram ouvir. Silenciavam-se frente a nossa presença, e afastavam-nos quando possível. Fomos jogados ao mundo.
            Um mundo que de começo não era nosso.
            Mas da figura sombria e encurvada como uma montanha, que se sentava na varanda e afundava os olhos no horizonte, buscando o tempo que havia passado. Ele foi rei ali... E ele falava sobre o rio.
            O rio...
            Que havia secado e desaparecido tão rapidamente.
            Havia um rio a muito tempo atrás, depois das colinas que ficavam ali a direita, na direção da árvore, que chamávamos de Aga. Depois do campo, no meio das árvores, um rio apareceu... Ele começou como um riacho... Pequeno, minúsculo... Incrível.
            E os olhos dele se enchiam de brilho.
            Brilho que vi nos olhos de Marina quando no meio do mato alto, no meio do campo á noite, sob as luzes dos céus, e junto das luzes da terra, eu e ela caçávamos vagalumes. E nossos sorrisos eram iluminados por segundo e apagávamo-nos no meio da noite. E então, depois de encher o pote de vidro, que não me lembro se havia sido de geleia, de azeitona ou palmito, ficávamos olhando os insetos. Nosso céu próprio.
            Antes de caminharmos de volta para a casa, libertávamos todos...
            Ninguém libertou nossos pais. E eles continuaram sentados na mesa da cozinha, olhando baixo, mexendo o café já frio dentro das xícaras antigas, rabiscando papéis importantes, importando-se com o mundo feito de contas que não conseguia compreender. Olhavam sérios... Quanto peso não havia naqueles olhos rodeados de olheiras, quantas palavras não estavam presas naquelas gargantas que haviam desaprendido a falar. Sussurravam. Sussurravam apenas... E a casa inteira era silêncio.
            O vento batia as portas e mexia nas cortinas, um farfalhar para que o mundo não se tornasse tão mudo. E lá fora eu era o vento. Eu e Marina, fazendo o mundo ter algum som.
            Riamos...
            Lembro-me do sorriso.
            Dos sorrisos.
            Faltavam sorrisos em meu tio avó.
            O rosto olhava o mundo lá longe, sempre voltado para a direção do rio. Que secou. Que morreu. Ele e seus olhos secos olhavam para mim, e eu não compreendia... Falava de outro tempo, e não havia outro tempo na minha vida, nem outras histórias, porque tudo era eterno, e eu era mais eterno que tudo naquele mundo.
            Marina era eterna.
            E as luzes que colocávamos no pote de vidro, e que se tornavam nosso céu.
            Quando saiamos a noite, tínhamos que fazer silêncio. A casa dormia em um sono leve e agitado. Eram nossos pais nervosos com coisas que não nos contavam, dormiam sussurrando números que não haviam digerido, histórias que nos eram desconhecidas. Dormiam na mesma agitação...
            Meu tio avó também dormia, mas era embebido em seus sonhos que faziam seus olhos brilharem, mas que a noite, recobertos por pálpebras grossas, estavam protegidos do mundo em que ele vivia e havia passado sobre a eternidade que seu ser um dia sentiu. E sem olhos abertos para brilhar, os lábios principiavam um sorriso tímido, que jamais chegou a lhe brotar nos lábios murchos e áridos. Ele secara também.
            Mas eu e Marina não. Nós éramos eternos. E nas noites, que não conseguíamos ficar nas camas, pois toda a casa era sussurros e números falados baixo, eu e ela levantávamos, e como se ainda fosse dia, saíamos da casa a principio com passos tímidos, até sentirmos o mundo sobre nossos pés, que mal pisavam no chão. Levávamos apenas um pote em mãos. E penas. E corríamos o mais rápido que nossas pernas curtas conseguiam, mãos atadas na descida pela colina.
            Olhos a frente.
            Vento avante.
            E éramos o vento fazendo o mundo viver sobre nossos barulhos tímidos.
            E éramos o mundo que não dormia agitado sob lençóis, nem o mundo que havia entristecido. Porque eu e Marina sorriamos e caçávamos vagalumes para fazer de céu. O sorriso dela era leve, eu era leve... Por alguns segundos nos víamos, e então, desaparecíamos quando os vagalumes eram capturados, as duas pequenas mãos em concha, segurando tesouros, segurando estrelas, segurando todo o que nos importava.
            Não tínhamos rio algum para nós apaixonar.
            Tínhamos vagalumes...
            Nossos pais não se deram o trabalho de se apaixonar por nada dali.
            E as quatro semanas foram gastas em contas em vários papéis e em meias palavras, meias conversas em meio silêncio... Que ocupavam agora o lugar das conversas, mesmo comigo e com Marina, sussurros carinhosos, leves afagos na cabeça, a mão indicando a porta... Os sorrisos falsos nos rostos ansiosos. A ansiedade em meu peito para correr para fora. Para não sufocar ali.
            Então corria. Segurando a mão de Marina, que queria correr também.
            Não havia vagalumes durante o dia, então íamos ao local onde o rio esteve, e secou. Era um rastro forte na terra, uma ruga de um tempo que nunca mais sairia daquele mundo, nem da testa de meu tio avó... Ressecada, que curvava-se sobre si, raízes desesperadas saltando da terra em busca de alguma água. Caminhávamos...
            O tempo não funcionava sobre nós. Não vimos a semanas passarem, não vimos os dias passarem... Demorei anos para ver que passei.
            E que de tudo ficou a figura de Marina sorrindo, enquanto capturávamos vagalumes.
            Demorou muito tempo.
            Meu tio avó ficou preso em seu rio. Que secou e que sumiu, com histórias que ele jamais me contou, mas que eram vistas em sua forma de olhar as coisas, os lábios coladas mudos, mastigando momentos que ele não quis ou não soube dividir, olhando com melancolia e reconhecimento, aquelas duas crianças que éramos eu e Marina olhando para ele. Ele olhava para mim, vendo todo o meu interior, iluminando tudo, e eu queria correr. Então segurava a mão de Marina e íamos.
            Havia muitas árvores em que subir, muitos troncos para pular. Virávamos pedras. Colhíamos flores. Afundávamos os olhos no horizonte, e dizíamos reis de toda aquela terra que se estendia como carpete sob nossos pés. Mas estávamos de mãos dadas.
            E quando os sussurros finalmente chegaram em solução. Que também não nos foi dita. E as quatro semanas se colocaram como fim a todo o meu reinado... Assustei. Assisti o desespero dos meus olhos refletido dentro dos olhos desesperados de Marina.
            Consolaram-nos com palavras e conversas, que repudiei, que eram muito altas para as falas abafadas, e muito absolutas para o mundo que vivi. Não me apontaram a porta. Meus dedos não se encontraram aos de Marina. Não corremos colina abaixo. Descemos em passo lento... Malas nos lombos e nos braços, carregando tudo o que havíamos trazido até ali. Embalados nossos pertences. O pote de vidro, que não me lembro a origem, e que serviu de cápsula para o céu meu e de Marina, ficou em baixo da pia...
            Sentei-me no carro indignado. Não olhei o rosto de meus pais, não consegui me despedir de nada dali. Tudo me pertencia, tudo era parte de mim. Não consegui dizer adeus as árvores, que eram postos de observação, nem a cicatriz feita pelo rio seco, nem ao tio avó sentado na varanda da casa, nem a casa, que agora não sussurrava, nem ao campo de vagalumes, nem ao sorriso de Marina...
            E fui levado.
            Emburrado.
            Perdi meu reino, vencido por uma solução de números que me deram e me tiraram o feudo em que vivi.
            Mas ainda lembro dessa época, que ficou presa em meus olhos, e me fizeram secar sobre um momento de minha vida, evitando que ele fosse esquecido. Quando o vento me bate no rosto, ainda sinto a mão de Marina na minha. Ainda vejo o sorriso iluminado por vagalumes. Ainda sinto o cheiro da grama e o som das risadas. O poder de ser o rei.
            Meu reino se estende.
            Imaginariamente...
            Pois já não estou mais lá. Estou mais só. E reconheço muitos fatos que não compreendi.
            O tio avó seco... Árido... Olhos postos em outro lugar...
            Cá estou eu hoje, reconhecendo que não sou eterno.

sábado, 8 de dezembro de 2012

A máquina


            E ela virou a maquina.
            Dela já não saiam palavras, e o único som era o de engrenagens rápidas junto de um leve respirar, o retumbar precário de seu coração.
            Já não exprimia palavras, nem havia mais expressões a lhe correr o rosto. Apenas fazia o rosto dos outros se modificar... E não eram poucas as lágrimas que lhe derramaram sobre o leito, nem poucas as suplicas para que fossem perdoados sobre tantos eventos que nem mesmo consigo lembrar, não havia sorrisos que não fossem aqueles de compadecidos, uma felicidade depressiva, uma tentativa de fazer toda a situação melhorar.
            Mas como?
            O carro havia sido destruído na batida, ela foi arremessada para frente, o cinto lhe segurou as costelas, quebrando-lhe algumas, que vieram a ser remendadas posteriormente, e a cabeça foi jogada com força demais para trás. Os vidros explodiram em cacos, que na confusão se misturaram as estrelas do céu, nos milésimos de segundos que ela conseguiu olhar. A frente do carro entortou, o ferro entortou-se sobre ela, e seus ossos se retorceram junto ao ferro, prensando e cortando a carne...
Tornou-se máquina
            O coração já não batia por conta, nem conseguia respirar. Já não se sabia se era viva, nem se existia essa possibilidade de retorno...
            E então quando a morte cerebral foi confirmada.
            E o marido chorou sobre a máquina...
            Eu só pensei que ali desligava esses sentimentos que ainda estavam dentro do coração dela, em uma sufocada batida vazia... 

Poema


            Os dedos dele traçaram a tatuagem dela, enquanto estavam na cama.
            - O que isso significa? – ele perguntou curioso.
            Mas ela se demorou a responder.
            O corpo semi coberto pelo lençol bege, que ele insistia em utilizar em sua cama ao invés dos brancos, deixava a tatuagem totalmente exposta aos olhos dele, acompanhada de sua curiosidade.
            - É um poema.
            E a resposta sucinta e sonolenta dela sai como um suspiro, uma brisa, um som remoto, de tempos e ideias que ele não conhece, um mundo de sonhos...
            Ele admira ela.
            Entretanto isso não era algo que sempre existiu no relacionamento deles. Não importa o quanto tente, não sabe como a encontrou, não se lembra de como aquela estrangeira, que vem de um país que ele desconhece, e esquece repetidamente o nome, acabou enrolando-se em seus lençóis, como os cabelos dela acabaram enrolando-se em seus dedos, o futuro dela em fusão ao seu... Ele tenta lembrar, mais por uma questão de orgulho do que por necessidade.
            Mas ela não liga.
            Para ela não faz diferença ele lembrar de onde ela veio, nem o que aconteceu em seu passado, nem mesmo quando se conheceram, e, embora isso pudesse o tranquilizar, aquele descaso o deixava as vezes perplexo, ainda mais quando existia aquela tentativa e preocupação em seu um romântico como forma de agradar, e que, para ela, não fazia diferença.
            Ela não se lembrava de como conheceram-se, ou, se lembrava, não chegou a dizer a ele quando, constrangido, ele perguntou a ela sobre esse momento. Ela sorriu e disse que não sabia, e que, também, não importava...
            Não importava... E ainda assim era com ela que ele dividia a cama, e quando não a dividia, era com ela que ele queria dividir.
            - Sobre o que?
            - Uhm?
            - O poema. É sobre o que?
            Ela abre os olhos e o observa vagamente. Ainda tomada pelo sono.
            O sorriso é o que ele mais gosta nela, logo depois da tatuagem.
            A tatuagem vem sempre em primeiro.
            Ele admite isso para si, ele sabe que é verdade, pois, nela não existe nada que a faça diferente de qualquer outra pessoa na rua, e sua aparência, tão escassa de peculiaridades, passa despercebida em meio a multidão, e, ate mesmo o sorriso, que é o que ele mais gosta nela, não se destaca para ele...
            Quantas não foram as vezes que ele imaginou que ela pudesse ter passado por sua vida, sem que ele sequer soubesse de sua existência. Quantas vezes não considerou isso possível, e diante dessa ideia de possível realidade, ele a abraçou a noite, trazendo o corpo magro e esquio para perto de si, confirmando sua materialidade. Trazendo toda a essência dela, para junto da dele.
            Ela não compreende esse desespero dele, essa ânsia que as vezes ele tem por saber que a realidade poderia ter sido completamente diferente, porque, para ela, a realidade sempre o é... Não se lembra mais de quanto tempo faz que abandonou seu país, não se preocupa em voltar para lá, nem para qualquer um dos lugares em que, anteriormente, vagou, perdeu-se, viveu e por fim, acabou por passar. Ela também não lhe conta muito sobre o passado, mesmo que ele pergunte, meio por duvida, meio por obrigação, sobre as coisas que aconteceram, coisas que ela soterrou, coisas que ela não se atreve mais a pronunciar.
            Ela e envolta por mistérios, mesmo que, agora, pareça apenas envolta por um lençol.
            - As mesmas coisas de todos os poemas.
            Disse observando-o por alguns segundos e voltou a fechar os olhos.
            Essa adoração que ele parece ter desenvolvido por ela as vezes incomoda-a, não a ponto de irritá-la, mas trás aquela leve urgência de que deve ir embora, antes que, sem perceber, as raízes cresçam e toda a sua liberdade, pela qual ela prezou, lutou e fez-se então sua guia, possa abandoná-la, assim como ela, tantas outras vezes, abandonou países, pessoas, passados.
            Mas ainda há tempo, ou é assim que ela acredita. Ainda pode ficar estirada sob os lençóis, dividindo a cama, sem jamais dividir sua essência de forma clara, e seus sentimentos, de forma justa.
Ela reconhece que gosta dele, da companhia que as vezes faz-se demasiadamente romântico e tantas outras vezes prático, gosta da forma com que ele a trás para perto, e a forma com que a deixa sob seu próprio comando a respeito de seu universo, mesmo com aqueles olhos buscando respostas, querendo saber mais e mais...
- Em que língua está?
Pergunta obstinado observando as palavras grafadas nas costelas dela, em um negro que, ao mesmo tempo que parece ameaçador, é, ainda assim, de uma delicadeza que o emudece.
Ela suspira.
- Em minha língua natal.
Não lhe repete o nome da língua, não lhe dá chance de lembrar de que local veio, e deixa-o apenas com as palavras impressas sobre seus ossos. Mas todas as suas falas saem naquele tom, obviamente estrangeiro, daqueles que aprenderam a língua sem conseguir utilizar todos os fonemas adequadamente, aquela marca de um lugar anterior que nem mesmo ela, que quis eliminar todo o passado de seu futuro, conseguiu extinguir.
Nele não havia aquela adoração pela forma com que ela pronunciava, nem desprezo, como geralmente ocorre quando a língua de berço das pessoas sai da boca de alguém que veio de outro local. Havia sim uma certa estranheza, um susto, uma certa perplexidade quando, depois de muito tempo quieta, ela vinha falar-lhe, não só por causa do sotaque, mas também porque imaginava-a desprovida de som.
Não muda, mas, simplesmente, sem som algum, sem qualquer possibilidade de produzir algum tipo de barulho... Ela em si, já era um som, um movimento, uma essência que ele não conseguia captar...
Isso era o que o fez admirá-la.
Mas tudo começa no poema.
Essa poesia ele vai querer um dia tomar para ele, entender, desvendar, compreender, saber suas palavras, recitar em ritmo adequado, declamar quando o desejo de tal lhe vier.
Antes disso ela vai desaparecer.
E, assim como chegou, abrindo espaço para si, sem permissão ou mesmo sem a percepção dele, ela vai ir embora, arrumando as malas sem que os olhos curiosos dele vejam, saindo quando ele não estiver por perto, perdendo-se longe demais para que ele a encontre, sem quaisquer intenções de retornar aquele espaço, que, já tomado pelo passado, ela repudia, e deseja fugir.
A cama se tornará grande demais para ele, e os lençóis que, antes eram pequenos e não cobriam-na perfeitamente, deixando a mostra a tatuagem grafada nas costelas, vão afogá-lo, afundá-lo, fazer-se perder em uma imensidão de camadas em bege...
E sob outros braços ela vai adormecer, tão longe dele, e ele tão longe dela. Já não dividem mais futuro, nem cama, nem lençóis, nem seus próprios medos e anseios, tem apenas em comum o mesmo céu, que os recobre precariamente, um passado que ela deixou para trás e a lembrança do poema.
- Por que você o tatuou?
            Ela já não quer responder. Mas estão juntos a tempo suficiente para compreender que aquilo não era uma forma de escapar das perguntas.
            Tantas perguntas. Quantas perguntas. Quando pergunta...
            Mas o sono já a embala de forma leve, e ela deseja deixá-lo ali, sem respostas, para que possa descansar, abandoná-lo a ignorância. E ela o faria, se ele não estivesse falando de sua tatuagem, porque ali, grafado permanentemente estava a essência dela, que mista em futuro e em passado era a única coisa que ela carregava de sua terra, e do local que uma vez chamou-se casa, repleto de ideias que na época ainda chamava de sonhos.
            - Porque eu quis.
            A verdade daquelas palavras ecoou dentro da mente dele.
            E a imagem do poema, sobre as costelas, sob a carne dela, sobre a cama dele, sob os lençóis beges ficaria marcada em sua mente.
            Esse é o momento que ele vai recorrer quando sentir-se abandonado. Porque ali, ele chegou perto de quem era realmente era e é...
            Qual imagem ela guardou? Não se sabe dizer, acabou indo tão longe que, não há meios de descobrir, se não estipular um momento, não mais real, do que a mera adivinhação.
            Eles ficaram em silencio durante um tempo.
            - Um dia você me conta o que está escrito.
            Ele disse com esperança.
            E mais que isso, com ansiedade infantil de uma criança ao saber que chega logo o aniversário ou o natal, é aquela sensação de conquista e de poder. Ele, deitado ao lado dela acredita que compreende-a e a possui, mesmo em toda a sua misteriosa forma de ser, mesmo em toda a sua indecifrável personalidade.
            Ali, na cama, nada mais importa que isso.
            Ali, ele é poeta, e ela é poema.
E, então, ela disse:
            - Não.

A casa


            A casa em que cresci sumiu. A casa em que cresci já não é minha, já não tem minha família, já não me tem.
            Ela sumiu. Soterrou-se sob paredes novas e tintas frescas, embalou-se com muros mais altos, abrigou outros que já não sei, que nunca vi, que nunca a viram. Foi mudando, tornando-se outra da que uma vez foi... Deixando o passado, saindo de casa. Essa era a casa em que cresci.
            Mas ela já não existe. Em seu lugar existe outra, sobre os esqueletos e ossos, de meu passado, de minha infância, de um tempo que parece ser só meu, vívido em minha memória, sem casa fixa para ficar, sem ninguém que não eu para sustentá-la.
            A casa em que cresci nasceu comigo, foi feita a mim, desenhada a minha infância, a meu tempo de criança, mas eu cresci... Ela não cresceu comigo, eu não cresci com ela. Mas se crescemos, se mudamos, se morremos, já não sabemos... Não sei onde ela foi parar, ela já não sabe de mim. Estamos longe.
            Estou longe de onde vim,
            Ela também não esta no mesmo lugar.
            Sobrou seus ossos, um esqueleto colorido sob tintas distintas, de tons que não reconheço, que não recordo, que não entendo como puderam mudar! Hoje vejo na casa, construída sobre meu passado, resquícios de um tempo antigo; a grama não é a mesmas, mas a nova se põem no mesmo lugar, o lugar em que corri, em que brinquei, o chão e as paredes também são outros, estruturas sobre estruturas do pretérito, iguaiszinhas e, ainda assim, inexatas.
            Lá está minha casa, sob a casa que desconheço.
            Ela também não se lembra de mim. Não reconhece em meus traços os mesmos olhos infantis, a mesma forma leve e lenta de falar, a mesma posição dos pés e joelhos quanto parada, os olhos perdidos no ar. Esta casa não é minha, observa-me intrigada e então se repudia com essa intimidade que eu acredito ter com ela, e, na verdade, não há.
            A casa em que cresci sumiu...
            Mas eu também sumi de lá. Não me lembro do que disse, será que falamos ‘adeus’? Prometi voltar? Lembrar? Ficar? O que ela me prometeu? Só sei que me vi chorar... Ela não chorou por mim, nem por nenhum de nós que ali viveu, cresceu e se foi. Era mais forte, mesmo sendo tão jovem quanto eu, mas, de qualquer forma, alguém precisava chorar.
            Só eu chorei por nós, pelas tardes no gramado, as brincadeiras na rede, os bonecos pelo chão. As noites de apagão, o lamentar do piano, o barulho e gosto da chuva, que batia no telhado, será que ela se lembra disso? Será que eu não vou esquecer?
            ‘Sumiu para onde?’ pergunto a casa sobre os esqueletos da casa em que cresci.
            ‘Morreu’, responde.   
            A casa em que cresci morreu...          
            E com ela toda essa referência de infância e de passado foi passando, tornando-se cada vez mais insólita, mais irreal. Já não havia nada que sustentasse a lembrança, que não memória, que não os restos largados e pedaços quebrados dos dias antigos. Não sobrou muito, um boneco, uma foto, um instante, depois nada mais.
            A casa em que cresci morreu. Suspiro.
            Então nada mais me prende a essa terra, a esse sítio. Não há mais pátria, nem lugar para voltar, não há mais cidades velhas para onde retornar, nem infância para recorrer. Estou sozinha. Estamos longe. Ela correu anos, cresceu, viveu, morreu, sem mim. Eu fugi milhas, indo para qualquer lugar, perdendo-me para me perder, sem a intenção de me achar, de retornar.
            Mas a casa em que cresci morreu...
            E se fugi para brincar, para irritar e provocar, como são as crianças teimosas, então voltei tarde demais. Tarde demais para ela... Tarde demais para mim.
            Pergunto-me se foi esse tempo que matou, se foi ausência, se foi esquecimento ou foi mudança. Foi a distância? E já não sei quem abandonou quem... Se nos deixamos, se a deixei, se me deixou. Por que não voltamos? Não sei a resposta, não recebo resposta, mas, agora, já não importa.
            A casa em que cresci morreu.
            Suspiro. Entendo.
            E a menina que ali cresceu morreu comigo.

Há relógios na parede


            Há relógios na parede, dois no pulso, um no peito. Ditam minha vida, meus passos, e meu andar. Ditam minhas palavras, racionam minhas memórias, cortam excessos, cortam os gastos.
           A noite retiro todos. Fica o do peito. Ele fala baixo, sussurra, ruídos, barulhos, tudo leve, tudo calmo, quase brisa. Quase não o ouço e temo. Temo que o tempo se torne eterno e essa noite nunca acabe. Não posso descansar direito. Deveria me despir para dormir bem, mas não descalço os sapatos com medo das visitas, dos vizinhos, do namorado, esses estranhos que me batem a porta...
            Pedem açúcar. Não tenho açúcar, mas como? Só mascavo. Mascavo? Sim, açúcar de sítio, de casa antiga, de casa de avós, de cidadezinha do interior... Esse açúcar adoça minha vida. Não, não é refinado. Sei que acham que não adoça nada, mas não discutem. Então esta bem. Obrigado.
           Pedem informações. Não sei sair de casa, não sei andar nas ruas, o mundo me engole. Não sei dizer, desculpe.
          Pedem licença e entram. As vezes não limpam os pés, e eu fico triste. Sentam no sofá, me pedem para ter dó, me pedem para chorar, me pedem para ser forte, querem me proteger, colocam-me como algoz, ditam quem são as vítimas, choram nos meus braços, me apunhalam quando podem, correm para a porta quando felizes, fecham antes de dizer adeus. Adeus, digo sozinha no silêncio.
            Como fazer isso descalça? Ao menos meias, por favor. Mas não consigo. Durmo de sapatos, cabelos arrumados, camisa passada. Não posso me virar para não ficar amassada. Não posso também porque o gato dorme aos pés. Temo machucá-lo.
            As vezes ele nem esta lá, e eu estou sozinha, mas não me mexo. Vivo pensando em se caso estivesse... Em se caso tivesse dito... Em se caso fosse diferente.
            São vários ‘se’. As vezes eles assombram minha vida. As vezes apenas eu é que os assombro, não os reconheço, há um caminho apenas, e eles ficam deslumbrados com minha falta de visão crítica e fatalismo debilitante, assustam-se, e desaparecem. Descanso melhor. Mas não muito, estou calçada.
            Quando acordo a construção ao lado já faz barulho. Estão sempre construindo ou reformando. Hoje são os azulejos, caem do alto dos prédios para o chão, mas soam como sinos antigos. Queria me debruçar a janela e ouvir, mas o tempo é curto demais para isso. Estou atrasada, sempre. Já não vejo as horas, e recoloco os relógios nas paredes, no pulso, e mantenho o que tenho no peito. O som leve é sobreposto com o som dos demais relógios, e eu sinto o peso. Caminho sob o ditame que me é imposto.
            Camisa bem passada, calças sob medida, cabelo arrumado. Saio a rua. Levo a pasta, de trabalho, o lanche, que é almoço, às chaves, por segurança, os documentos, para ser real. Mas sou ilusão, sou fictícia, sou irreal, sou ilusória. Tão infinitamente pequena nesse mar de gente, nessa gente mar. Eles são pequenos também, e por isso esbarram forte, e gritam alto.
            Caminho em um fluxo. Daquele lado relógios diferentes, desse outro, relógios iguais ao meu... Então não sou única. Não. Nada é. Respiro. Suspiro. Caminho.
            O barulho me ensurdece. Emudece. E eu sinto vontade de parar. Mas antes que possa virar já estou em frente ao trabalho, e assim fico sem a opção de retornar. Para onde? Não sabe andar na cidade, não sabe fugir. Contenta-se. Conforma-se. Senta-se em uma cadeira e labuta como todo ser. E então retorna.
            A noite já é alta quando posso voltar. Os passos são mais lentos. A vida também parece desacelerar. Alguns faróis ainda correm nas ruas, estrelas cadentes pelo chão. Mas há pouco do lado de fora. Lá dentro, de todas as casas, as luzes acesas e as vozes crescentes indicam que o mundo foi guardado nas caixas. São caixas pequenas, com pequenas pessoas e pequenos sóis. Mas que brilham imensamente na escuridão azul. A melancolia avança sobre a terra e a cobre. Alguns nostálgicos ficam a ver o horizonte, mas hoje são poucos. Amanhã teremos menos. Eles somem. Desaparecem nesse mundo de concreto, não frutificam, morrem sem fincar raízes.
            E as minhas raízes? Foram fincadas nos meus sapatos. Então durmo com eles.
            Olho para o céu. Os edifícios despontam do chão e atingem o azul. Furam as nuvens, mas não fazem chover. Queria a chuva... Faltam lágrimas nesse mundo. Talvez não. Talvez falte terra, porque o mundo inteiro chora entremeando-se com risadas. Há muito concreto. Se houvesse grama descalçaria os sapatos...
            Repenso. Descalçaria?
            Não sei.
            Mas o céu é bloqueado pelos edifícios. E as estrelas somem, substituídas por janelas. Há dias em que há mais céu do que paredes. Outros há mais paredes do que há céu.
            Temo que um dia haja apenas concreto... Nuvens pintadas para pensarmos na liberdade. Ainda sou livre o suficiente para olhar a noite descendo e cobrindo a cidade. Se acordar cedo, posso ver o sol nascer. Ainda há flores que despontam das árvores corajosas que aparecem entre as calçadas. O vento ainda é frio quando o inverno chega. Não me controlam.
            Eu sou livre e sou viva!
            Mas não descalço os sapatos...
            Não tiro o relógio do peito...
            Ainda há louça por fazer. Migalhas no meu tapete. Alguns trabalhos para terminar. Só mais algumas horas...
            Depois, finjo ser livre para sempre.

As rosas


            Todas as rosas secaram nos vasos.
            E os vasos, esquecidos em suas estantes, já sem água e sem vida, eram feitos de tempo esquecido e de amor inacabado.
           Ninguém tirava os vasos de suas estantes, nem as flores de sua triste posição, ninguém fazia nada por elas, assim como não conseguiram fazer nada por aquela que tinham que fazer. Não lhe fizeram esboçar um sorriso, e por isso não receberam a compaixão.
          E foram deixadas, mais como uma verdade do que como uma lembrança. Ninguém quer relembrar esses dias, e nesses dias o tempo apenas passa, se perde, se esconde, se encontra e desencontra em um final.
           Mas a moça estava morrendo, secando como as rosas em seus vasos, deitada em sua cama, como as rosas se debruçavam sobre as bordas de vidro, quebrada como o relógio na parede, sem o perfume antigo, sem o sorriso encantador.
       As rosas a observaram, da mesma forma com que as coisas secas nos observam, com aquele ressentimento agudo, a rigidez frágil, a desaprovação leve. Elas observaram a moça, sem sorrisos, sem conversas, em uma mudez que atormentava-a e consolava-a ao mesmo tempo, nada esperava de suas companheiras nas estantes. Não havia o que lembrar.
            Havia apenas uma verdade.
            E que se fosse tarde, ou fosse cedo, levaria consigo, como forma de existência e prova de vida para si, e para os que nunca a conheceram. Não sentia nada ao olhar para as flores, eram rosas. Mesmo quando elas ainda eram belas e adoráveis, nada disso importava. Não sentia nada ao olhar as rosas...
        Não sentia porque elas não significavam nada, não sentia porque não amava aquele que as havia entregado, não sentia porque não havia amor ali.
            Não havia o que discutir a respeito disso.
            Todas as rosas secaram nos vasos.