Os dedos dele traçaram a tatuagem
dela, enquanto estavam na cama.
- O que isso significa? – ele
perguntou curioso.
Mas ela se demorou a responder.
O corpo semi coberto pelo lençol
bege, que ele insistia em utilizar em sua cama ao invés dos brancos, deixava a
tatuagem totalmente exposta aos olhos dele, acompanhada de sua curiosidade.
- É um poema.
E a resposta sucinta e sonolenta
dela sai como um suspiro, uma brisa, um som remoto, de tempos e ideias que ele
não conhece, um mundo de sonhos...
Ele admira ela.
Entretanto isso não era algo que
sempre existiu no relacionamento deles. Não importa o quanto tente, não sabe
como a encontrou, não se lembra de como aquela estrangeira, que vem de um país
que ele desconhece, e esquece repetidamente o nome, acabou enrolando-se em seus
lençóis, como os cabelos dela acabaram enrolando-se em seus dedos, o futuro
dela em fusão ao seu... Ele tenta lembrar, mais por uma questão de orgulho do
que por necessidade.
Mas ela não liga.
Para ela não faz diferença ele
lembrar de onde ela veio, nem o que aconteceu em seu passado, nem mesmo quando
se conheceram, e, embora isso pudesse o tranquilizar, aquele descaso o deixava
as vezes perplexo, ainda mais quando existia aquela tentativa e preocupação em
seu um romântico como forma de agradar, e que, para ela, não fazia diferença.
Ela não se lembrava de como
conheceram-se, ou, se lembrava, não chegou a dizer a ele quando, constrangido,
ele perguntou a ela sobre esse momento. Ela sorriu e disse que não sabia, e
que, também, não importava...
Não importava... E ainda assim era
com ela que ele dividia a cama, e quando não a dividia, era com ela que ele
queria dividir.
- Sobre o que?
- Uhm?
- O poema. É sobre o que?
Ela abre os olhos e o observa
vagamente. Ainda tomada pelo sono.
O sorriso é o que ele mais gosta
nela, logo depois da tatuagem.
A tatuagem vem sempre em primeiro.
Ele admite isso para si, ele sabe
que é verdade, pois, nela não existe nada que a faça diferente de qualquer
outra pessoa na rua, e sua aparência, tão escassa de peculiaridades, passa
despercebida em meio a multidão, e, ate mesmo o sorriso, que é o que ele mais
gosta nela, não se destaca para ele...
Quantas não foram as vezes que ele
imaginou que ela pudesse ter passado por sua vida, sem que ele sequer soubesse
de sua existência. Quantas vezes não considerou isso possível, e diante dessa
ideia de possível realidade, ele a abraçou a noite, trazendo o corpo magro e
esquio para perto de si, confirmando sua materialidade. Trazendo toda a
essência dela, para junto da dele.
Ela não compreende esse desespero
dele, essa ânsia que as vezes ele tem por saber que a realidade poderia ter
sido completamente diferente, porque, para ela, a realidade sempre o é... Não
se lembra mais de quanto tempo faz que abandonou seu país, não se preocupa em
voltar para lá, nem para qualquer um dos lugares em que, anteriormente, vagou,
perdeu-se, viveu e por fim, acabou por passar. Ela também não lhe conta muito
sobre o passado, mesmo que ele pergunte, meio por duvida, meio por obrigação,
sobre as coisas que aconteceram, coisas que ela soterrou, coisas que ela não se
atreve mais a pronunciar.
Ela e envolta por mistérios, mesmo
que, agora, pareça apenas envolta por um lençol.
- As mesmas coisas de todos os
poemas.
Disse observando-o por alguns
segundos e voltou a fechar os olhos.
Essa adoração que ele parece ter
desenvolvido por ela as vezes incomoda-a, não a ponto de irritá-la, mas trás
aquela leve urgência de que deve ir embora, antes que, sem perceber, as raízes
cresçam e toda a sua liberdade, pela qual ela prezou, lutou e fez-se então sua
guia, possa abandoná-la, assim como ela, tantas outras vezes, abandonou países,
pessoas, passados.
Mas ainda há tempo, ou é assim que
ela acredita. Ainda pode ficar estirada sob os lençóis, dividindo a cama, sem
jamais dividir sua essência de forma clara, e seus sentimentos, de forma justa.
Ela
reconhece que gosta dele, da companhia que as vezes faz-se demasiadamente
romântico e tantas outras vezes prático, gosta da forma com que ele a trás para
perto, e a forma com que a deixa sob seu próprio comando a respeito de seu
universo, mesmo com aqueles olhos buscando respostas, querendo saber mais e
mais...
-
Em que língua está?
Pergunta
obstinado observando as palavras grafadas nas costelas dela, em um negro que,
ao mesmo tempo que parece ameaçador, é, ainda assim, de uma delicadeza que o
emudece.
Ela
suspira.
-
Em minha língua natal.
Não
lhe repete o nome da língua, não lhe dá chance de lembrar de que local veio, e
deixa-o apenas com as palavras impressas sobre seus ossos. Mas todas as suas
falas saem naquele tom, obviamente estrangeiro, daqueles que aprenderam a
língua sem conseguir utilizar todos os fonemas adequadamente, aquela marca de
um lugar anterior que nem mesmo ela, que quis eliminar todo o passado de seu
futuro, conseguiu extinguir.
Nele
não havia aquela adoração pela forma com que ela pronunciava, nem desprezo,
como geralmente ocorre quando a língua de berço das pessoas sai da boca de
alguém que veio de outro local. Havia sim uma certa estranheza, um susto, uma
certa perplexidade quando, depois de muito tempo quieta, ela vinha falar-lhe,
não só por causa do sotaque, mas também porque imaginava-a desprovida de som.
Não
muda, mas, simplesmente, sem som algum, sem qualquer possibilidade de produzir
algum tipo de barulho... Ela em si, já era um som, um movimento, uma essência
que ele não conseguia captar...
Isso
era o que o fez admirá-la.
Mas
tudo começa no poema.
Essa
poesia ele vai querer um dia tomar para ele, entender, desvendar, compreender,
saber suas palavras, recitar em ritmo adequado, declamar quando o desejo de tal
lhe vier.
Antes
disso ela vai desaparecer.
E,
assim como chegou, abrindo espaço para si, sem permissão ou mesmo sem a
percepção dele, ela vai ir embora, arrumando as malas sem que os olhos curiosos
dele vejam, saindo quando ele não estiver por perto, perdendo-se longe demais
para que ele a encontre, sem quaisquer intenções de retornar aquele espaço,
que, já tomado pelo passado, ela repudia, e deseja fugir.
A
cama se tornará grande demais para ele, e os lençóis que, antes eram pequenos e
não cobriam-na perfeitamente, deixando a mostra a tatuagem grafada nas
costelas, vão afogá-lo, afundá-lo, fazer-se perder em uma imensidão de camadas
em bege...
E
sob outros braços ela vai adormecer, tão longe dele, e ele tão longe dela. Já
não dividem mais futuro, nem cama, nem lençóis, nem seus próprios medos e
anseios, tem apenas em comum o mesmo céu, que os recobre precariamente, um
passado que ela deixou para trás e a lembrança do poema.
-
Por que você o tatuou?
Ela já não quer responder. Mas estão
juntos a tempo suficiente para compreender que aquilo não era uma forma de
escapar das perguntas.
Tantas perguntas. Quantas perguntas.
Quando pergunta...
Mas o sono já a embala de forma
leve, e ela deseja deixá-lo ali, sem respostas, para que possa descansar,
abandoná-lo a ignorância. E ela o faria, se ele não estivesse falando de sua
tatuagem, porque ali, grafado permanentemente estava a essência dela, que mista
em futuro e em passado era a única coisa que ela carregava de sua terra, e do
local que uma vez chamou-se casa, repleto de ideias que na época ainda chamava
de sonhos.
- Porque eu quis.
A verdade daquelas palavras ecoou
dentro da mente dele.
E a imagem do poema, sobre as
costelas, sob a carne dela, sobre a cama dele, sob os lençóis beges ficaria
marcada em sua mente.
Esse é o momento que ele vai
recorrer quando sentir-se abandonado. Porque ali, ele chegou perto de quem era
realmente era e é...
Qual imagem ela guardou? Não se sabe
dizer, acabou indo tão longe que, não há meios de descobrir, se não estipular
um momento, não mais real, do que a mera adivinhação.
Eles ficaram em silencio durante um
tempo.
- Um dia você me conta o que está
escrito.
Ele disse com esperança.
E mais que isso, com ansiedade
infantil de uma criança ao saber que chega logo o aniversário ou o natal, é
aquela sensação de conquista e de poder. Ele, deitado ao lado dela acredita que
compreende-a e a possui, mesmo em toda a sua misteriosa forma de ser, mesmo em
toda a sua indecifrável personalidade.
Ali, na cama, nada mais importa que
isso.
Ali, ele é poeta, e ela é poema.
E,
então, ela disse:
- Não.