Há em minha mente
duas casas que se sobressaem. Morei em muitas outras além dessas, mas essas
duas, pequenas e eternas referenciais de longos tempos, são os caminhos da
infância e adolescência. São toda a história que tenho realmente.
A
primeira casa em que morei é só uma memória, que não é minha, mas que esta em
minha mente de tanto ser recontada. Sei vagamente sua localização, sei que ela
foi modificada, vejo-a e apenas sinto a felicidade de saber que eu a reconheço,
sem nem lembrá-la.
Mas
as outras duas casas... Casas das quais eu sei a cor dos pisos, o tamanho dos
quintais, a que altura eu subi na torre da televisão, em que ponto do telhado
eu fiquei presa por horas por ter medo de altura... Reconheço as cores das
paredes, de hoje, e também de ontem... Sei onde os móveis foram colocados, sei
onde escondi todos os objetos que tenho, lembro-me onde de esconder-me nas
brincadeiras, onde me sentar a noite para ver a lua e contar estrelas... Lá eu reconheço
as transformações.
Essas
casas são minhas histórias.
Nelas
ainda há as únicas coisas que me sinto tentada a roubar. Coisas sem valor
certamente, mas que são totens de minha história.
Há
nelas toda a menina e garota que fui. A pequena essência que às vezes sinto que
perdi... Nelas há o silêncio e as dores, mas também os sorrisos e festas.
Elas
são as matérias de um tempo que passou, e reconhecendo isso sei que suas existências
são irreais, e elas mesmas estão esfacelando-se entre os anos e minha ausência,
que cresce cada vez mais, a cada passo que me coloca mais longe, a cada passo
que eu preciso e quero dar. Elas estão fadadas a sumir, como toda a cidade de infância
que tenho dentro de minha mente também tem se desfeito lentamente...
Delas
não levarei muito, porque não se pode colocar uma casa dentro de uma caixa.
Como dimensionar o tamanho do conforto dos seus quartos e os medos que tive de
caminhar pelos corredores no escuro? Como medir o comprimento de minha felicidade
no Natal? Ou saber o peso das tarefas domésticas? Como fazer com que entendam o
apreço que tenho por um determinado padrão no piso ou em quais quadrados
pode-se pisar na cozinha? Como levar a casa sem levar isso? Porque a casa além
de espaço sou eu.
Mas,
mesmo não levando nada concreto, levo um pouco dela, porque dentro de minha
mente seus cômodos se estendem, e suas histórias se desenrolam, sob o gosto do
tempo, que adoça lentamente tudo o que ficou para trás. As casas em que vivi
não foram perfeitas, mas seus defeitos esmoessem e lentamente ganham espaço
como detalhes... A gente se amontoou por meses em três cômodos da casa para
fazermos reforma, eu quebrei o dedo naquele banheiro, torci a perna naquele
quintal, fiquei presa naquele foro... Mas tudo bem, até que foi legal, até que
não doeu, até que não deu medo.
Ainda
assim vê-las sumindo dói. Não uma dor que dilacera, mas aquela pequena certeza
de que algo esta morrendo, como uma flor debruçada em um vaso, como o ressoar
do piano durante a noite, como a luz das velas sobre a estante... É uma dor
compreensível, mas incomprimível, que se estende para além do espaço e chega ao
meu futuro.
As
duas casas, não as outras seis que morei também, apenas essas duas casas, tem
tudo o que espero. Dentro delas se desenrolam a vida que quero, e a vida que um
dia vai continuar até chegar á última casa, aquela que colocarei para mim como
morada afinal. Dentro delas há um universo inteiro diferente que se estende
além da compreensão do mundo, dentro delas há o dia-a-dia e sua repetição que
conforta, dentro delas entende-se da forma mais pura e verdadeira o que
realmente significa ser uma família...