domingo, 24 de agosto de 2014

As duas

Há em minha mente duas casas que se sobressaem. Morei em muitas outras além dessas, mas essas duas, pequenas e eternas referenciais de longos tempos, são os caminhos da infância e adolescência. São toda a história que tenho realmente.
            A primeira casa em que morei é só uma memória, que não é minha, mas que esta em minha mente de tanto ser recontada. Sei vagamente sua localização, sei que ela foi modificada, vejo-a e apenas sinto a felicidade de saber que eu a reconheço, sem nem lembrá-la.
            Mas as outras duas casas... Casas das quais eu sei a cor dos pisos, o tamanho dos quintais, a que altura eu subi na torre da televisão, em que ponto do telhado eu fiquei presa por horas por ter medo de altura... Reconheço as cores das paredes, de hoje, e também de ontem... Sei onde os móveis foram colocados, sei onde escondi todos os objetos que tenho, lembro-me onde de esconder-me nas brincadeiras, onde me sentar a noite para ver a lua e contar estrelas... Lá eu reconheço as transformações.
            Essas casas são minhas histórias.
            Nelas ainda há as únicas coisas que me sinto tentada a roubar. Coisas sem valor certamente, mas que são totens de minha história.
            Há nelas toda a menina e garota que fui. A pequena essência que às vezes sinto que perdi... Nelas há o silêncio e as dores, mas também os sorrisos e festas.
            Elas são as matérias de um tempo que passou, e reconhecendo isso sei que suas existências são irreais, e elas mesmas estão esfacelando-se entre os anos e minha ausência, que cresce cada vez mais, a cada passo que me coloca mais longe, a cada passo que eu preciso e quero dar. Elas estão fadadas a sumir, como toda a cidade de infância que tenho dentro de minha mente também tem se desfeito lentamente...
            Delas não levarei muito, porque não se pode colocar uma casa dentro de uma caixa. Como dimensionar o tamanho do conforto dos seus quartos e os medos que tive de caminhar pelos corredores no escuro? Como medir o comprimento de minha felicidade no Natal? Ou saber o peso das tarefas domésticas? Como fazer com que entendam o apreço que tenho por um determinado padrão no piso ou em quais quadrados pode-se pisar na cozinha? Como levar a casa sem levar isso? Porque a casa além de espaço sou eu.
            Mas, mesmo não levando nada concreto, levo um pouco dela, porque dentro de minha mente seus cômodos se estendem, e suas histórias se desenrolam, sob o gosto do tempo, que adoça lentamente tudo o que ficou para trás. As casas em que vivi não foram perfeitas, mas seus defeitos esmoessem e lentamente ganham espaço como detalhes... A gente se amontoou por meses em três cômodos da casa para fazermos reforma, eu quebrei o dedo naquele banheiro, torci a perna naquele quintal, fiquei presa naquele foro... Mas tudo bem, até que foi legal, até que não doeu, até que não deu medo.
            Ainda assim vê-las sumindo dói. Não uma dor que dilacera, mas aquela pequena certeza de que algo esta morrendo, como uma flor debruçada em um vaso, como o ressoar do piano durante a noite, como a luz das velas sobre a estante... É uma dor compreensível, mas incomprimível, que se estende para além do espaço e chega ao meu futuro.
            As duas casas, não as outras seis que morei também, apenas essas duas casas, tem tudo o que espero. Dentro delas se desenrolam a vida que quero, e a vida que um dia vai continuar até chegar á última casa, aquela que colocarei para mim como morada afinal. Dentro delas há um universo inteiro diferente que se estende além da compreensão do mundo, dentro delas há o dia-a-dia e sua repetição que conforta, dentro delas entende-se da forma mais pura e verdadeira o que realmente significa ser uma família...