segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O taxi

Estou cansada... Percebo isso vagamente, como se mesmo para constatar esse fato esteja sem energia. Mas é sério, estou cansada. Tenho estado cansada ha bastante tempo já.
            Ao meu lado, no taxi, você monologa longamente. Suas palavras parecem infinitas, cruzando-se umas com as outras e assim elas se tornam uma enorme reza dos dias de hoje, do tempo que não acaba, porque já não se dorme à noite e não se dorme de dia, parte pelo trabalho, parte pela festa. Você fala sobre coisas importantes, como se estivesse a falar para multidões... A única multidão é você e suas vontades.
            Elas também são enormes... Vontades imensas que lhe invadem o peito, que lhe percorrem a carne, que comandam seu corpo, e com isso você cospe algumas palavras para o taxista. Vai para a rua tal. Que temos pressa!
            Mas que pressa? Pressa de quê? Para quê? Para onde?
            Eu não escuto. Eu olho o lado de fora da janela, meio embasada e sem limpeza já ha algum tempo, e vejo as luzes das casas que passam correndo por nós, um ou outro perdido a andar nas ruas ha essa hora absurda da noite. Se eu pudesse estava em casa... Mas se for pensar assim se eu pudesse estava sempre em casa. Estranho conforto.
            Não sei como você conseguiu me arrastar para fora do apartamento de novo. Às vezes acho que um dia você me raptou e nunca mais me deixou voltar...
            Você sorri longamente, estende o braço e o coloca sob meus ombros numa inútil tentativa de nos aproximar quando nós sabemos que estamos tão longe. Não me viro para você, então beija-me os cabelos e me aperta contra seu corpo.
            O taxi corre. Nas ruas vazia ele zune como se fosse um enorme inseto, uma barata gigante que circula as ruas, faz rápidas curvas perigosas no silêncio da noite, passa jogando a água acumuladas nas eventuais poças, mal desvia dos buracos para não perder tempo. Tudo no mundo tem pressa... Você tem pressa também para que as coisas ocorram, que comecem, que acabem. Tudo cabe nas oito horas de um comprimido... Inclusive eu.
            Eu duro muito pouco em sua vida, quase nada em sua mente. Nem minha presença é necessária, porque dentro de sua mente eu faço parte da multidão, lá você me mistura com outros rostos, outras histórias, outras palavras, sai uma quimera da qual você nada se lembra, mas que está bom assim.
            Mas eu não gosto... Não gosto de muita coisa, mas que tenho percorrido... Inutilmente tentado compreender. Eu não sei nada. Nem mesmo sei que não sei nada, tamanha minha ignorância do mundo. Mas sei que não me agrada sua quimera, nem a forma que me afaga os cabelos, nem seu discurso, nem o taxi ou a rua... Nada me toca sentimentalmente, entretanto sinto-me constantemente tocada pelas coisas, como se o universo inteiro tivesse posto as mãos em mim quando tentei abrir caminho para o banheiro da balada que você decidiu me levar.
            Incomodo havia sido a palavra que rodava minha mente. Hoje é cansaço...
            Muitas palavras devem rodar sua mente e elas vazam por sua boca como uma enxurrada. Não tenho ideia sobre o que você monologa nesses últimos tempos, percebi que não valia a pena ouvir ainda no começo, quando você me levou para sair a primeira vez e percebi que não me escutava. Diverti-me também ouvindo algumas coisas no começo e analisando silenciosamente... Mas até isso tem me enfadado.
            Avisos luminosos correm o lado de fora numa mistura de vagalumes e Las Vegas. Vários sons se misturam, bandas tocando em algum ponto da cidade, uma balada aberta logo na esquina seguinte, pessoas bêbadas rindo, carros com volumes no máximo... Que som deverá ter minha cama? Que falam minhas cobertas? Você fala algo sobre ontem... Mas eu não me lembro de ontem mais.
            Você me pergunta alguma coisa. Eu não respondo, mas sorrio, porque sorrir é ainda uma das únicas coisas que sei. Segura minha mão com força, antes de jogar duas notas de vinte para o taxista e reclamar que é um roubo. Você me arrasta para fora do taxi, apoia-se em mim porque está ainda meio bêbado, não tenho ideia de para onde você que seguir, mas caminho para frente como se tivesse alguma ideia.
            ‘É por isso que eu gosto de você!’ você fala depois de uma longa frase que eu não prestei atenção... E repete ‘é por isso’, como se eu realmente fosse entender. Tudo o que entendo é que tenho sido um bastão, um aplauso e um silêncio na sua vida... Nada que você precise, mas que decidiu, de repente, que quer. E na minha vida você tem sido o caos... Se eu soubesse voltar para casa largava sua mão, seu ombro, seu corpo todo entre a sarjeta e a calçada... Deixava você dormir em paz numa viela, numa escada, num monte de sacos de lixo... e ia embora.
            Andamos uma quadra e meia de forma capenga até você me apontar um bar antigo. Já está acenando para o garçom num gesto de amizade que ele não compreende... Eu te ajudo a sentar numa das mesinhas do lado de fora, mas não me sento. Você continua sinalizando ao garçom, mesmo diante da forma indiferente com que ele lhe trata. Eu começo lentamente a me afastar, são só alguns passos... Mas logo consigo dobrar a esquina e desaparecer de sua vista.
            As ruas estão escuras e fedem a urina e vômito. Há vários papeis jogados pelas ruas, algumas camisinhas perdidas, uns esgotos abertos, mas nada disso realmente me incomoda, sinto-me quase livre, quase limpa. Não que o cansaço tenha desaparecido, ele parece ser uma echarpe em meu pescoço, mas pareço estar na metade do caminho para minha cama. Olho o relógio aliviada, talvez em meia hora ou quarenta minutos eu já esteja em casa.
            Sigo até uma grande avenida movimentada, lá os carros correm como cometas para todas as direções. Espero em uma esquina, olhando cuidadosamente se há algum taxi vazio na rua, e, embora muitos carros passem, demora mais de dez minutos para finalmente encontrar um deles. Mas a felicidade é tanta que corro quase despreocupadamente em sua direção.
            Entro cuidadosamente na cabine do passageiro, do lado esquerdo. Mas assim que fecho a porta uma voz fala em meu lugar. Vai para a rua tal. Que temos pressa! Olho você ao meu lado, estupefata. Você me sorri calmamente, coloca o braço por cima de meu ombro e me segura perto de seu corpo, como se pudesse nos aproximar de novo.
            O taxi corre. Você me olha no rosto sem me compreender e decide monologar para me divertir. Fala sobre coisas importantes... Eu não escuto nada... Tudo o que sinto é o cansaço... Que parece aumentar na simples constatação de que essa noite será longa, se não eterna.