terça-feira, 17 de novembro de 2015

Hannah

            Ontem a noite eu sonhei com você de novo. Vestia um casaquinho azul claro. Você era muito jovem e pequena ainda.
            Sonhei muitas coisas, mas o que importa mesmo foi a parte em que você me apareceu no sonho, distante, com seu casaquinho, estava bem ao lado do portão do fundo de nossa antiga casa. A casa que eu tanto amo, mas que ficou para trás...
            Eu lembro que chovia sem pausa.
            Na cozinha eu escutei o portão se abrir. Foi o bastante para me fazer correr, eu não sabia onde você estava, mas ao ouvir o portão, eu sabia que você já estava lá, que já podia estar lá. Isso era perigoso.
            Eu escolhi teu nome... Hannah, como no quadro de hiper-realismo que vi na quinta série. Uma menina segurando um pequeno cachorro no colo. Nenhum dos que eu dei o nome escapou das artes, você veio de um quadro, Mei veio de um filme, Faber veio de um livro. Talvez seja minha pequena forma de dar algo para todos vocês que eu sei que tenho no coração. Arte.
            Eu vi você parada ao lado do portão. Quando ele se abriu, você correu para fora, pequena e desajeitada, com seus joelhos tortos como os meus. Eu gritei para alguém segurá-la, mas a chuva abafou meus gritos, e você ia, atravessava a rua movimentada. Eu gritava em vão.
            Estranho imaginar que sonhei com você tão jovem, quando, na verdade, você morreu a pouco tempo de velhice. Também dessa vez eu estava longe. Essa primeira vez que te perdi, fui saber apenas ao telefone, contada duas vezes para mim, chorada algumas vezes durante os últimos tempos, relembrada em silêncio como mais um de meus erros de ausência...
            Você passou a rua, em meu sonho, e foi andando. Eu não conseguia chamá-la, ninguém escutava meus gritos. Parecia que meus pés eram lentos demais. Parecia que você estava sempre distante de meu alcance... Eu, muito longe...
            Um senhor, no entanto, apareceu ao teu lado e te levou no colo. Você me pareceu doce e despreocupada no colo dele. Ele andou em minha direção, e estendeu você para mim. Lembro-me de afundar meu rosto em ti, de chorar, de pensar que estava tudo bem... Você ainda estava ali. O senhor me disse para ter cuidado. Que era fácil perder alguém assim... Mas você estava ali, e eu afundava meu rosto em teu casaco e chorava.
            Mas quando eu acordei, não estava. A quentura de teu corpo fora uma das ilusões...
            Acordei as 3h e tanto da manhã. Todos os relógios haviam parado. Uma chuva leve começava lá fora. Eu chorava. A tua ausência era enorme.

Todas as ausências são enormes... 
E eu estou longe demais.

quarta-feira, 30 de setembro de 2015

Agosto

            Setembro veio em agosto.
            Encontrou-me sentada na cadeira de estudos. Eu mirava o teto, mas olhava o céu... Estava ha mais de nove horas da mesma forma, ali, no nada. Através de minha pele ondas se formavam, e eu sentia arrepios que corriam por meu corpo como um mar em tempestade. Dentro de meus olhos chuvas corriam, e transbordavam em lentas gotas que cortavam minha pele. As mãos e os pés estavam em carne viva...
            Setembro veio em agosto, quando soube que algo havia atrapalhado o tempo.
            Encontrou a casa desarrumada, por tudo havia pó e pelos dos gatos... Na sala viu todas as ilusões já partidas, quebradas, em milhares de pedaços no chão. Havia uma cola deixada ali ao lado, uns pedaços juntados inutilmente, de forma errada, numa tentativa desastrosa e triste. Pelas minhas mãos e pés ele sabia que havia caminhado e me cortado enquanto tentava colar os pedaços de tudo aquilo, que agora era só um desastre.
            Setembro veio em agosto, porque precisava concertar as coisas.
            Mas acabou que elas já estavam quebradas... E eu estava mais quebrada ainda, olhando o teto, mas vendo o céu, com as mãos e pés que não podiam tocar em nada sem doer profundamente.
            Ele passou os braços pelo meu corpo e me suspendeu, como uma pequena boneca. Colocou-me na cama como se eu pudesse dormir, cobriu-me com a coberta de infância. Desceu as escadas para limpar as coisas, mas meu choro, soluçado e vazio, o fez voltar. Ele retirou os sapatos e deitou na cama, segurando com força meu corpo, que balançava como se houvessem ventos dentro de mim. Ele me segurou como se eu pudesse ser arrastada dali como um pano, uma folha, uma vida.
            Lembro-me de dormir em seu peito. Mas lembro disso de quase todos os dias... Todo agosto e todo setembro, era só Setembro a me consolar. Eu solucei a maior parte das noites em seu corpo, que me apertava contra o dele como se para me confortar com sua chegada. Ele disse que viria... Ele veio.
            Setembro veio em agosto, porque todos os anos Setembro veem, para quebrar as ilusões, ajeitar os caminhos, fazer com que eu entenda o que está acontecendo, levar as coisas mortas e deixar-me pronta para seguir. Ele me bate a porta e entra com a brisa leve, primeiro anuncio da primavera. Mas dessa vez não... Dessa vez ele entrou pela janela do segundo andar, como um ladrão. Veio para colocar meus pés no chão, para desanuviar meus olhos de sonho, para que eu visse a realidade, mas o trabalho já estava feito... De forma muito malfeita. Ele me encontrou pela metade, como se saqueada, e decidiu não mexer em mim.
            Setembro veio em agosto e ficou em setembro, porque eu precisava.
            Ele jogou fora as coisas que estavam quebradas, limpou a sala, lavou os quartos e tirou as teias. Ele segurou minhas mãos quando estive prestes a arrancar cabelos, e me levantou da cama quando senti que meus ossos estavam quebrados. Setembro me forçou a comer, me embalou até dormir, recitou poesias nos meus ouvidos. Nunca me disse ‘vai ficar tudo bem’, eu e ele estamos muito velhos agora para essas coisas, nós dois sabemos que essa época já passou ha muito tempo, só ás vezes eu que insisto em não perceber, ás vezes sou ingênua.
            Mas setembro veio e lavou meus cabelos, não deixou que eu dormisse muito, nem que eu dormisse pouco, arrastou-me para os compromissos. Fez com que sentisse o gosto da morte algumas vezes em minha boca, mas nunca me deixou morrer...
            ‘Eu estou cansada’ eu repetia. Ele insistia em não me ouvir.
            ‘Agora’ ele dizia, após me dar uma ordem.
            Havia urgência. Nesses dois meses sempre houve...
            Se eu parasse, sabíamos que era o fim. Que estava caindo... E é tão difícil levantar quando as pernas não andam, e os braços não mexem... Como é difícil comer sem fome e sorrir sem gosto, como é impossível não chorar em publico e do nada quando se sente afogar dentro de si mesmo. É tão difícil ser inteira, quando, na verdade, tu é só pedaços.
            Setembro levou tudo da casa e a deixou outra.  Ela, depois de sua passagem, me parece vazia, sua decoração colorida e amável se foi. Há uns retratos antigos, mas as paredes são brancas, lisas e insipidas. Não há planos dessa vez. Não há caminhos... Pela primeira vez não há um futuro estampado nas minhas paredes. Nada. Pela primeira vez sou eu também vazio. Ele queimou tudo o que achava necessário do passado e enterrou no tempo o resto, prendeu minhas mãos e disse firme ‘aqui você não mexe mais’. Eu obedeci.
            ‘Último dia’ ele me anuncia, preocupado. Setembro ficaria em outubro...
            Ele me abraça com força e pede desculpas. Dessa vez sem ser culpa dele... Porque esse ano veio só para acalmar as tempestades que passaram antes. Mas as desculpas não são por isso, eu só perceberei muito tarde, muito longe... Setembro veio e arrastou tudo com ele, e o que ele deixa é pouco. Estou muito mais dura do que era, ele vê, eu só percebo que não choro mais.
            Beija-me a testa com cuidado, segura meus ombros e ajeita meus cabelos, bagunçados como minha cabeça. Não me promete coisas, mas sei que queria poder fazer algo.
            Esse ano nem a primavera ele conseguiu trazer. Aqui ainda é muito frio e nada em mim parece florescer. A terra e eu, dois campos vastos, onde a vista se perde, repletos de um grande nada, estamos áridos. Mas o verão se anunciará, sabemos. Em algum momento, obviamente, as flores devem surgir. Ainda há muito tempo para lá, se nada o interromper.
            Setembro avisa. ‘Último dia’. Abraça-me com força.
            Ele fala ‘último dia’ como se quisesse dizer ‘última vez’.
            Ele me deixa com um pinheiro. Esperando que também eu crie raízes. E fecha a porta atrás de si com medo, de que não tenha que voltar no ano seguinte. 

domingo, 2 de agosto de 2015

Inferno

            Hoje eu vi o inferno.
            Ele é mais amplo do que imagina-se, ele se estende do teu peito até uma infinidade, mais longe que teus olhos alcançam, mais longe que tua mente imagina. Ele é imenso! E ainda assim quando respira parece caber todo no teu coração... Mas como um grande e extenso não ser, que sequer vazio é, que nem ausência é, que é um verdadeiro nada.
            Não há diabo, nem há demônios. As labaredas vermelhas são puramente invenções. Ele pode ter qualquer formato, porque cabe em qualquer lugar que você esteja. Á mim ele tem o tamanho de uma sala de um apartamento, com apenas um quarto, as três horas da manhã. Isso na pequena visão, se olhar pela sacada, ele cobre a cidade toda... A rua mal iluminada, a praça, o estranho prédio que tem um buraco circular no topo... Tudo e todos parecem longe e distante, como se a milhas de ti. Ainda assim parece que tudo encosta em sua pele, a sensação é fria e árida e eterna.
            Não há castigos no inferno. Ao menos não desses de chicote e palmatória. Mas é um castigo o viver nele... Porque você vive nele, mas nunca presente. Porque você caminha por ele como se fosse invisível porque, para o mundo, você é... E assim você se sente. Há uma enorme espera de desaparecer, de tuas mãos ficarem lentamente transparentes, de tu esfarelar as poucos pelas calçadas, de tão lentamente você simplesmente sumir.
            Mas nada...
            Tua continuidade é tão constante que é assombrosa.
            Mas há sempre o constante esperar de um fim. Eventualmente isso deve acabar, só que jamais ocorre. E sua espera por esse final se prolonga, numa ânsia constante... Há sempre o medo da eternidade, já que o inferno é eterno e imenso e preenche todo o espaço sem preenche-lo.        
            No entanto, você está longe de ser vazio. Teu coração e mente estão cheios de coisas! Só que erradas... Como se forradas de papel jornal, clipes, restos de lápis apontados... Dentro de ti não há nenhum sustento, e tu anda mesmo por mágica. Tu vive por mágica... Uma tão forte as vezes que você se pergunta constantemente porque ela existe...
Ao teu redor tua solidão é tão imensa que você sente como um manto. Ele jamais te aquece o corpo, nem os ossos, mas te cobre para ser ainda menor, e te pesa os ombros para tê-los baixos e tristes, te faz andar lento... Mas ser lento de nada importa no inferno onde o tempo é eterno. O sol se move pelos céus no inferno, também aparecem as luas e as estrelas, mas elas correm num tempo diferente do que você vive, como se distintamente separados por dois mundos. Um deles não tem lugar para ti, e vive feliz sem tua presença. O outro, tua existência é imprescindível, já que só você habita nele... E ele é uma enorme espera...
            Não há barulhos no inferno... Ele é imensamente silencioso... As vezes só um relógio de ponteiros do outro quarto... E só.
            Mas todos nele se ocupam de preenchê-los de som. Repetem mantras que jamais acabam, silabas e palavras que nunca se vão... Elas se repetem em suas mentes num desespero constante, como a única saída que tem e que jamais vão alcançar. São consolos e são tristezas, são as vezes não mais que um nome...

            E eu repito “Eu vou...”

terça-feira, 30 de junho de 2015

Universo

            Um dia nos teus braços eu te perguntei se meu mundo era grande, você me disse que sim e que era muito...
            Incrivelmente, meu universo cabe, no entanto, em um apartamento. Um quarto, uma sala, uma cozinha, uma varanda... Sem garagem e sem elevador, mas com 3 escadas que chegam ao 4° andar.
            Mas as vezes eu paro na varanda e penso, o quão pequeno ele é... Que não cabe meus sonhos...
            Que fica faltando espaço para eu poder ter a vida que quero, o mundo que quero, as ideias da minha cabeça e então eu o expando. Num movimento tosco e desesperado, para abarcar algumas coisas que amo e que, no entanto, não estão ali.
            São viagens e fugas, são minhas tardes longas na grama do IA, são as vezes que, em silêncio, eu me deitei no chão de minha casa de infância e chorei vendo estrelas, são os momentos que eu dormi calmamente nos teus braços...

quinta-feira, 28 de maio de 2015

23

          Não espero que você entenda.
            Eu não entendo, e eu quero entender...
            Não me sai da cabeça...
Durante a série do ‘Guia do mochileiro das galáxias’, de Douglas Adams, há uma parte do livro em que eles encontram esse homem que criou o universo... Ele mora em uma pequena cabana no meio do nada, e tem um gato. Eu lembro-me de que ele fala para o gato que ele precisa comer, porque se ele não comer ele vai morrer e se isso acontecer o homem que criou o universo não vai saber que ele é real.
            Que ele foi real...
            Não consigo esquecer que Münch disse que sobre seu cadáver flores nascerão e ele vai estar nelas e isso é a eternidade.
Não consigo esquecer que Milan Kundera escreveu que kitsh, a negação da merda (literal e metafórica), é o meio do caminho entre ser e o esquecimento.
            Eu penso que eternidade deverá nascer de meu corpo morto... Quais coisas vão nascer de minhas entranhas. Que poderá nascer de lá, se em meu estomago tem borboletas e monstros que se remexem e me atormentam? Se em minha mente há só um grande labirinto? Se em meus olhos dormem fantasmas? Se minhas mãos são frias e não deixarei que nenhum dos olhos ao meu redor reconheça o que cresce em meu coração?
            Que eternidade deverá sair de mim se eu mesma fui feita para desaparecer?
            E eu não esqueço o gato... O quanto eu me pareço com ele...
            Coma eles falam. Não suma eles dizem. Você vai desaparecer, eles me indicam... E eu sei e eu sei e eu sei... E eu tenho medo.
            Se for assim mesmo morrer, a negação de meus erros, como Kundera diz, quem terão de mim é tão pouco... Que sinto até pena dos que ficarão. Serei menos da metade de quem eu pareci ser, que é muito menos de quem eu de fato sou... É complicado. Tão pouco de mim vai restar e ainda assim eu vou escorrer pelos dedos das mãos em concha das pessoas e sumirei. Um dia meu riso não vai mais ecoar dentro de sua cabeça, nem saberá mais a cor de meus cabelos, não se lembrará de como foi encostar em mim, nem o que foi estar comigo, serei ao máximo uma imagem fosca, até nem mais imagem ser...
            Mas sobre meu corpo deverá algo surgir... Se dele não nascerem flores como o de Münch, seria bom que ao menos surgisse um arbusto, e que me cobrisse como um grande manto, e que me empurrasse para a terra como um coveiro, e que me deixasse dormir como se morrer fosse apenas isso.
            Só que não quero ser assim na tua mente...
            Eu me sinto o gato, e você me fala, coma, você precisa comer ou irá sumir, e eu como. E eu espero que seja o suficiente. Eu nunca pensei que fosse sumir, mas sempre achei que fosse morrer. Mas sumir... 
No livro de Kundera, ‘A insustentável leveza do ser’, Thomas toma a forma de um coelho quando corre para os braços de Tereza, em um sonho. Mas eu sou um gato e rodo pela sua sala, entre seus braços e a janela. Entre duas formas diferentes de desaparecer... Que forma tomaria você se estivéssemos em lugares diferentes, se fosse eu passível de te esquecer, se minha memória não tivesse tanta coisa bem guardada, se eu não tivesse caixas para te colocar dentro?
            Dentro de minha mente você tem só uma forma... Que é você sempre desde o princípio. E só tem um espaço... Que é o seu.
            Mas eu sou o gato. E o gato pode sumir...
            Mas sobre meu corpo flores deverão nascer e se isso acontecer eu terei a eternidade... Que não quero... Que odeio.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Esfinge

            Decifra-me ou devoro-te, acredito que é o que falam as esfinges.
            Foi isso que me disse uma delas quando apareceu em minha porta a noite. Eu a abri, sem jeito com aquela pancada oca na madeira que não compreendi.
            Ela cambaleou pela sala e caiu no tapete. Batendo na pequena mesinha de centro. Derrubando dois livros, uma xícara de chá, minha concentração...
            Ela era enorme.
            Arfava...
            Decifra-me... Ela repetiu num som abafado, curvando com força as garras de leão no chão, tentando levantar o peso do corpo, mas sem grande sucesso. As costas dela se arquearam com força e sua cabeça tombou para frente em uma tosse dolorosa e contínua, que era um barulho de rugir e de gritar ao mesmo tempo.
            Virou o rosto para mim, humano e tão delicado. Olhou-me longamente, tentando falar algo, havia estrelas naqueles olhos que eram fuga, medo e dor.
            Decifra-me. Exigiu.
            Ou devoro-te. Ameaçou.
            Numa última tentativa usou toda a sua força e se pôs de pé. Tinha pelo menos dois metros, patas enormes, e embora estivesse cansada, certamente era mais forte que eu. Ainda arfava e seu peito se estufava de forma dolorosa. Seu corpo balançava lentamente, como se incapaz de manter-se em um equilíbrio perfeito. Era possível ver a dor que os movimentos lhe causavam e o cansaço que abatia seu corpo...
            Ainda assim ela se impulsionou para frente em minha direção. E eu corri até meu quarto onde fechei a porta atrás de mim com força. Ouvi uma grande pancada e um silêncio que durou apenas alguns minutos. Empurrei a cômoda na frente da porta, encostei-me num canto do quarto, segurando a luminária da cabeceira que seria minha arma se algo acontecesse.
            Cai no sono várias vezes...
            As vezes acordava com o som do raspar das unhas da fera em minha porta.
            Mas nada aconteceu.

            Na manhã seguinte acordei sem compreender a situação direito.
            Ao abrir a porta do quarto encontrei ao chão a esfinge morta.

            Não tive coragem de tocá-la e pulei seu corpo com muito cuidado. Ela havia tombado de lado e tinha todo o rosto coberto pelos cabelos a não ser a boca, que se abria num pequeno vazio sem som, uma das patas se aproximava do rosto, outra, da porta. Essa parecia ter sido arranhada várias vezes, alguns riscos pareciam mostrar a tentativa dela alcançar o trinco, sem sucesso... O restante do corpo parecia jogado, como se, depois de ter trombado não tivesse mais nenhuma força para se reacomodar, como se suas forças tivessem se esvaído. A calda era uma longa cobra morta, que cortava parte do pequeno corredor e terminava na sala.
            Ignorei a presença do corpo durante o restante do dia...

            Ignorei a presença do corpo o máximo possível.
            Mas a noite eu entrava no quarto e fechava a porta, que batia numa das patas da esfinge, ficava pensando nela... Ali... Parada... Do lado de fora... Sua voz ecoando lentamente na minha mente como se estivesse gravada...
            E não conseguia dormir...

            Numa das noites eu abri a porta, observei lentamente seu corpo, busquei seus olhos em vão e vi sua boca sem palavras. Irritado, ralhei Decifrar o que? E ela não me respondeu.
            Durante os próximos dias passei a olhá-la com atenção, não mais o medo que havia no primeiro dia, nem a desconfiança e a repulsa que se seguiu. Mas uma pequena e genuína curiosidade por ela. Conforme a observava, lentamente, mais eu pensava o quão triste havia sido a exigência que me fez... Decifra-me... E como era justa sua ameaça... Devoro-te... Afinal, como deveria ser viver naquele corpo, que não passava de um monstro a uns, numa ausência de semelhantes, nem humano e nem leão, sobrava a ela ser nada... Um mito, uma lenda, uma ideia desacreditada.
            Mesmo eu, que a tinha ali, logo a entrada da porta do quarto, não acreditava em sua existência. Mas eu a revia todas as manhãs e sonhava com ela todas as noites.

            Em meus sonhos a esfinge aparecia de várias formas, as vezes exatamente como era, moça e leão, mas as vezes apenas um enorme felino ou uma bonita garota. Em todas, no entanto, eu ouvia-a falar com força Decifra-me, como se eu soubesse o que fazer...
            Eu nunca sabia. Eu jamais saberei.
            Em todas as vezes eu ficava parado... Ela se aproximava e exigia uma resposta... Jogava-se em meus braços e eu sentia seu corpo quente contra o meu, sentia seus cabelos baterem em meu rosto e seu cheiro entrar no meu corpo, lembro-me das mãos dela em minhas costas ou a forma com que ronronava junto a mim... Seus olhos me perfuravam duramente e eu, sem respostas para dar, afundava meu rosto eu seus cabelos, em sua pelagem, e fingi-a não vê-la...
            Todas as manhãs acordava sufocado.
            Abria a porta do quarto, e lá, a esfinge morta, com sua boca aberta em silêncio, questionava-me decifra-me.

            Mas eventualmente a esfinge pôs-se a desaparecer. Como um mito, ela lentamente foi se tornando pó... Seus pelos e cabelos foram caindo e a pele lentamente descolando como pequenos flocos. Um dia havia só ossos, e mesmos os ossos também com seu tempo sumiram... A macha escura no piso, onde o corpo havia ficado, foi lentamente clareando.
Um dia não havia mais nada de esfinge lá, e eu quase tinha paz...
Comemorei com um vinho sua ausência.
Mas eu olhava para o lugar onde o corpo dela estivera, indiferente de todo o restante da casa, e ficava pensando em sua dor, como deve ter sido terrível morrer em frente a porta de meu quarto, numa suplica, sem ninguém compreendê-la. Como deve ter sido terrível ser tão sozinha...
Deve ser terrível ser um monstro ou um mito... Nem mesmo quando morta e, portanto, não mais uma ameaça, eu consegui tocá-la. Ela era de tudo tão distante a mim que não havia meio de nos aproximarmos e se houvesse...  Decifra-me ela disse, pediu, suplicou... Eu não o faria.
Eu até queria tê-la ajudado, queria poder entendê-la...

Mas, a grande verdade é que eu senti alívio quando finalmente ela se foi por completo.

quinta-feira, 19 de março de 2015

-

            Hoje faz um mês que estou longe.
            Não falo de casa porque isso começa a ser complicado. Nos últimos anos tenho mudado constantemente e a cada ano uma cidade diferente tem feito parte do meu repertório. Dessa vez estou mais longe do que todas as outras vezes, dessa vez eu não tenho mais como voltar.
            As casas que eu amo ficaram para trás, minha cama ficou para trás, minha escrivaninha ficou para trás. Ficou para trás meu pai no aeroporto, as 6h da manhã do dia 19, em silêncio e me acenando uma última vez antes de eu passar pelas portas para chegar aos detectores de metal.
            Eu caminhei decidida e cansada nesse dia. Eu não olhei para trás. Eu não chorei no avião, eu não chorei quando cheguei, eu não chorei porque decidi ir. Foram poucas as coisas que conseguiram me fazer chorar aqui até agora... As que conseguiram tem seus motivos.
            A cidade nova não é minha casa, mas ela começa a se organizar de tal forma que um dia virá a ser. Lentamente ela começa a conseguir acomodar as coisas que quero trazer, começa a abrigar sonhos e projetos, ela passa a ter importância, a criar o refúgio que eu ainda não tenho e que me é tão necessário para viver.
            Mas eu jamais vou ter as coisas que tive lá. Porque eu deixei para trás minha mãe no portão de casa depois de um abraço, as 4h50, e seus olhos marejados, sem poder perder tempo para me despedir com calma, para conversar, porque eu não tinha tempo. Tempo foi o que me faltou para ir. Muitas pessoas que eu deveria ter abraçado antes de vir eu sequer consegui ver. Eu não me despedi de meus lugares favoritos e que sei que vão desaparecer com o tempo. Eu não pude dizer aos meus gatos que logo mais eu voltaria para busca-los. Eu não falei direito com a minha irmã no dia anterior.
            E eu fui...
            Com duas malas de roupa, 2 casacos, 2 bolsas, 2 tênis, uma sapatilha, um travesseiro, 5 livros, uma coberta, e um vazio enorme eu fui. Eu trouxe um monte de memórias, que não visito com frequência porque não é justo com ninguém rever suas casas sem casa, falar de família sem nem saber quando vê-la, falar de amor sem nunca ter a perspectiva de reencontro, sentir saudades absurdas e tudo o que tem é uma cama para se curvar como um gato e sentir o estrado e suas costelas lutando por um espaço...
            Isso não significa que eu esqueci.
            Isso significa que sou fraca... Que minhas memórias me doem. Que a saudade me inunda em ondas enormes a cada reconhecimento de algo daqui que me lembra de lá... Que sou constantemente atormentada por lembrar-me das coisas de antes, mas hoje sem jamais saber quando vou vê-las de novo. Dentro de mim meus demônios me respondem: nunca.
         E eu não duvido deles. Não há motivos para duvidar.

14h07

Um dia eu vou desaparecer...
mas não deixa eu passar que nem uma onda
pelos seus pés
Nem cair no chão depois de rodar por suas mãos
como uma concha...
Não deixa eu desaparecer como um balão
de festa infantil que se perde
na avenida principal de uma cidade grande
Não me deixa ser grande na sua mente, me deixa pequenina
mas não transparente...
Não deixa eu ser um reflexo no vidro da varanda do apartamento
Nem ser a vela que você teve que acender
durante o apagão
Não deixa eu ir embora com a chuva,
Não deixa eu ser o tempo entre você fechar os olhos
e dormir
Porque você tem a importância do ipê da minha infância
que eu não posso roubar
Porque quando olho para mim refletida nos seus olhos
é igual a sensação de me ver refletida no piano
Porque você é minha quarta-feira 14h07 que foi quando
eu te beijei
pela última vez
até agora

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

A caixa

Você não deve ter entendido porque eu deixei uma caixa na frente da sua casa com um cartão com o meu nome.
Mas eu queria que você tivesse a dimensão das coisas antes de eu ir embora, como te disse na quarta à tarde. Naquele dia meio morno, sem nenhuma graça se não você. Quando estávamos juntinhos e eu fiquei longos minutos tentando repassar o que deveria te falar, enquanto você, tão alheio a minha confusão, sorria leve e me contava sobre seu dia a dia...
Eu não consegui te passar o que queria... Então aqui vai.
Queria que soubesse do peso que sua ausência vai causar... Do silêncio que vai ser não ter você para conversar, não ouvir sua voz, mas tê-la guardada dentro da minha cabeça... Lembro a cena exata em que você me disse... Como você é bonita... E que eu te beijei em seguida...
Queria que você soubesse que é muito real minha partida, que ela existe além da minha vontade, além da sua vontade, como uma grande certeza, porque ela foi a minha única luta e, nem mesmo eu, posso ou quero desistir dela agora. Que ela tem um tempo, que começa numa terça de manhã em que uma caixa esteve na frente da sua porta, e que não termina nunca, porque nem mesmo eu sei onde é o fim do caminho.
Queria que soubesse que todos os pequenos presentes e detalhes nossos, que não estão com você, estão comigo. Acho que eles vão me assombrar... E espero que assombrem você também, que te façam a noite ficar 3 horas olhando o teto, que te façam ficar triste ao olhar um desenho nem caderno, que te façam ficar em silêncio... Mesmo você, cheio de palavras, reclamações, informações, às vezes tão desnecessárias... Quero que a ideia que tem de mim fique presa entre o caminho da sua retina ao seu cérebro e que não consiga retirá-la de lá, como uma pequena farpa que ficou presa entre duas camadas da sua pele.
Isso porque durante as manhãs de domingo sua imagem me atinge a mente como se fosse uma avalanche. Porque eu lembro perfeitamente da forma com que você dorme, como seu braço se curva, leve, perdido como uma vela de um barco. Eu queria que soubesse que eu ainda conheço pressão do seu abraço ou a forma com que você, distraído, olha para o nada. Que essas coisas, bobas e desimportantes, estão grafadas com estilete no fundo das minhas memórias, eu lembro muito, mesmo do muito pouco...
Pode ter certeza que eu tenho me sentido triste. Que tenho andado com uma das 3 moedas que você esqueceu aqui em casa, numa tarde de filme, que agora ela dorme na palma da minha mão. Queria que soubesse que guardei alguns de seus garranchos, alguns deles que você nem sabe que tenho, porque, eu confesso, roubei. Tenho um ou outro detalhe que você me entregou, como se fosse simples... Mas que para mim não é.
O gosto de saudade é tudo o que tenho na boca, o desespero que você as vezes vê meus braços, num tremor leve quando está perto de mim, numa tentativa falha de nos aproximar, tem se tornado mais forte, os meus olhos tem desejado constantemente trombar nos seus. E eu tenho esperado suas palavras me atingirem, que sua presença seja mais do que uma vela que me faz olhar fixamente, até que se apague...
Sei que não vai ser. Mas não há problema algum em imaginar, em calcular distraidamente o que vai acontecer daqui a alguns meses, alguns anos, algumas décadas... Que mal há nisso se não a saudade que eu já sinto? É um jogo para mim, que me permite deixar de lado a realidade, sem jamais esquecê-la, porque para mim ela é muito clara... Mas tenho minhas dúvidas se você conseguiu entender realmente o que te disse...
E por isso a caixa.
Eu deixei a caixa na frente da sua casa. Ela representa todo o futuro que podemos ter.
E é por isso que está vazia...