Decifra-me ou devoro-te, acredito que é
o que falam as esfinges.
Foi
isso que me disse uma delas quando apareceu em minha porta a noite. Eu a abri,
sem jeito com aquela pancada oca na madeira que não compreendi.
Ela
cambaleou pela sala e caiu no tapete. Batendo na pequena mesinha de centro.
Derrubando dois livros, uma xícara de chá, minha concentração...
Ela
era enorme.
Arfava...
Decifra-me... Ela repetiu num som
abafado, curvando com força as garras de leão no chão, tentando levantar o peso
do corpo, mas sem grande sucesso. As costas dela se arquearam com força e sua
cabeça tombou para frente em uma tosse dolorosa e contínua, que era um barulho
de rugir e de gritar ao mesmo tempo.
Virou
o rosto para mim, humano e tão delicado. Olhou-me longamente, tentando falar
algo, havia estrelas naqueles olhos que eram fuga, medo e dor.
Decifra-me. Exigiu.
Ou devoro-te. Ameaçou.
Numa
última tentativa usou toda a sua força e se pôs de pé. Tinha pelo menos dois
metros, patas enormes, e embora estivesse cansada, certamente era mais forte
que eu. Ainda arfava e seu peito se estufava de forma dolorosa. Seu corpo
balançava lentamente, como se incapaz de manter-se em um equilíbrio perfeito.
Era possível ver a dor que os movimentos lhe causavam e o cansaço que abatia
seu corpo...
Ainda
assim ela se impulsionou para frente em minha direção. E eu corri até meu
quarto onde fechei a porta atrás de mim com força. Ouvi uma grande pancada e um
silêncio que durou apenas alguns minutos. Empurrei a cômoda na frente da porta,
encostei-me num canto do quarto, segurando a luminária da cabeceira que seria
minha arma se algo acontecesse.
Cai
no sono várias vezes...
As
vezes acordava com o som do raspar das unhas da fera em minha porta.
Mas
nada aconteceu.
Na
manhã seguinte acordei sem compreender a situação direito.
Ao
abrir a porta do quarto encontrei ao chão a esfinge morta.
Não
tive coragem de tocá-la e pulei seu corpo com muito cuidado. Ela havia tombado
de lado e tinha todo o rosto coberto pelos cabelos a não ser a boca, que se
abria num pequeno vazio sem som, uma das patas se aproximava do rosto, outra,
da porta. Essa parecia ter sido arranhada várias vezes, alguns riscos pareciam
mostrar a tentativa dela alcançar o trinco, sem sucesso... O restante do corpo
parecia jogado, como se, depois de ter trombado não tivesse mais nenhuma força
para se reacomodar, como se suas forças tivessem se esvaído. A calda era uma
longa cobra morta, que cortava parte do pequeno corredor e terminava na sala.
Ignorei
a presença do corpo durante o restante do dia...
Ignorei
a presença do corpo o máximo possível.
Mas
a noite eu entrava no quarto e fechava a porta, que batia numa das patas da
esfinge, ficava pensando nela... Ali... Parada... Do lado de fora... Sua voz
ecoando lentamente na minha mente como se estivesse gravada...
E
não conseguia dormir...
Numa
das noites eu abri a porta, observei lentamente seu corpo, busquei seus olhos
em vão e vi sua boca sem palavras. Irritado, ralhei Decifrar o que? E ela não me respondeu.
Durante
os próximos dias passei a olhá-la com atenção, não mais o medo que havia no
primeiro dia, nem a desconfiança e a repulsa que se seguiu. Mas uma pequena e
genuína curiosidade por ela. Conforme a observava, lentamente, mais eu pensava
o quão triste havia sido a exigência que me fez... Decifra-me... E como era justa sua ameaça... Devoro-te... Afinal, como deveria ser viver naquele corpo, que não
passava de um monstro a uns, numa ausência de semelhantes, nem humano e nem
leão, sobrava a ela ser nada... Um mito, uma lenda, uma ideia desacreditada.
Mesmo
eu, que a tinha ali, logo a entrada da porta do quarto, não acreditava em sua
existência. Mas eu a revia todas as manhãs e sonhava com ela todas as noites.
Em
meus sonhos a esfinge aparecia de várias formas, as vezes exatamente como era,
moça e leão, mas as vezes apenas um enorme felino ou uma bonita garota. Em
todas, no entanto, eu ouvia-a falar com força Decifra-me, como se eu soubesse o que fazer...
Eu
nunca sabia. Eu jamais saberei.
Em
todas as vezes eu ficava parado... Ela se aproximava e exigia uma resposta...
Jogava-se em meus braços e eu sentia seu corpo quente contra o meu, sentia seus
cabelos baterem em meu rosto e seu cheiro entrar no meu corpo, lembro-me das
mãos dela em minhas costas ou a forma com que ronronava junto a mim... Seus
olhos me perfuravam duramente e eu, sem respostas para dar, afundava meu rosto
eu seus cabelos, em sua pelagem, e fingi-a não vê-la...
Todas
as manhãs acordava sufocado.
Abria
a porta do quarto, e lá, a esfinge morta, com sua boca aberta em silêncio,
questionava-me decifra-me.
Mas
eventualmente a esfinge pôs-se a desaparecer. Como um mito, ela lentamente foi
se tornando pó... Seus pelos e cabelos foram caindo e a pele lentamente
descolando como pequenos flocos. Um dia havia só ossos, e mesmos os ossos
também com seu tempo sumiram... A macha escura no piso, onde o corpo havia
ficado, foi lentamente clareando.
Um dia não havia
mais nada de esfinge lá, e eu quase tinha paz...
Comemorei com um
vinho sua ausência.
Mas eu olhava para
o lugar onde o corpo dela estivera, indiferente de todo o restante da casa, e
ficava pensando em sua dor, como deve ter sido terrível morrer em frente a
porta de meu quarto, numa suplica, sem ninguém compreendê-la. Como deve ter
sido terrível ser tão sozinha...
Deve ser terrível
ser um monstro ou um mito... Nem mesmo quando morta e, portanto, não mais uma
ameaça, eu consegui tocá-la. Ela era de tudo tão distante a mim que não havia
meio de nos aproximarmos e se houvesse... Decifra-me
ela disse, pediu, suplicou... Eu não o faria.
Eu até queria tê-la
ajudado, queria poder entendê-la...
Mas, a grande
verdade é que eu senti alívio quando finalmente ela se foi por completo.