segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Passado


            Quando ela voltou os olhos para trás a distancia era grande demais, e ela não pode ver o passado acenando firmemente para ela, gritando com palavras vazias que ele queria ir junto, que ela não devia esquecer, mas ela estava longe demais para escutar, e ele se tornara tão pequeno a distancia que, ela nada ouviu, e foi como se ele nem lhe tivesse falado...
            Agora ela avança em silencio.
            O trem avança também.
            Rugindo por ele mesmo, e também por ela, como forma de compensar sua silenciosa passagem.
            Ela foi embora.
            Mas pouco ficou para trás.
            Um apartamento com uma pintura mal acabada, que ela mesma havia feito as pressas, com a antiga geladeira e fogão, que tanto a incomodavam... Alguns insetos que, embora não fossem dela, queriam continuamente conviver naquele mesmo apartamento. Ficou para trás alguns papeis de contas já pagas, algumas garrafas de leite vazias, alguns fios... Alguns botões... E essas           pequenas coisas que nós esquecemos e que nos esquecem.
            E ficou o passado, acenando ao longe.
            E ela foi embora...
            Embora não soubesse para onde.
            E a mala que continha suas coisas parecesse diminuta e terrivelmente despreparada para ampará-la em uma jornada tão desconhecida. Ainda que revisada com tanto empenho e cuidado.
            As montanhas engoliam o trem, que sacolejava e a fazia engolir seco. A passagem comprada com o resto do dinheiro parecia loucura, parecia insensato, ainda mais depois de tantas coisas bem planejadas, programadas daquela forma pragmática com que lidava com sua vida e com tudo que lhe pertencia...
            Sorte dos botões e linhas que ficaram para trás, livres e soltos a tantas possibilidades, que, com ela, não haveriam de ter.
            Mas ela fora capaz daquele ato insensato, impensado, que foi comprar a passagem, fazer as malas e ir embora, deixando toda a história para trás. Tantas histórias que agora, abandonadas na estação, agasalhando passado, ela já não via, e não faziam seu coração pesar, já não faziam sua alma estremecer durante as noites, e chorar durante ás manhã, naquele vazio.
            Agora tinha o vazio a sua frente apenas, e não mais dentro de si, ele era apenas o seu futuro e não mais ela mesma. E como as linhas e os botões, a cada curva que o trem percorria, pelas montanhas ou pelas colinas, arrastando-a para longe da terra-natal, mais livre ela se sentia, mais leve, mais solta, e ela se via feliz... Finalmente.
            E aquela sensação o contaminava, a extasiava...
            Ela nunca mais iria voltar.
            Passado observou o trem ir, ate se reduzir a um ponto no horizonte. Voltou para o apartamento sozinho, recolheu as contas pagas, as linhas e os botões, com aquele cuidado que tinha com tudo que era esquecido, as vezes por se identificar, as vezes por aquela saudade e paixão, que se misturavam com o abandono. Ela o havia deixado, mesmo quando ele quis ir... Porque?
            As contas, colocou no bolso da calça, mas as linhas e os botões ficaram no casaco do paletó, próximo ao peito, próximo ao coração.
Observou as garrafas de leite vazias, e, cumprimentou a geladeira e o fogão, ao sair. Eram um casal de tanto tempo, exibindo claramente as vantagens e desvantagens de se envelhecer conjuntamente, dividindo, mesmo depois de tantos anos, a mesma cozinha, encardindo o mesmo chão, preocupando-se em permanecer apenas juntos, principalmente agora, nesse principio do fim.
            Passado passou algumas memórias pelos ombros para se aquecer, e saiu naquele vento outonal, que parecia já pertencer ao inverno.
            A cidade não lhe pareceu mais triste, nem mais alegre do que havia sido ate então, ainda existia toda aquela sensação de que, querendo ou não, tudo estivesse quebrado, uma ausência de atenção do mundo nas pessoas, e as pessoas ao mundo, mas sempre havia sido assim, e isso, de certa forma, trazia toda aquela sensação de casa.
            Ele queria que ela estivesse ali, sairiam juntos comprar leite na padaria, que ficava a três quarteirões dali, ou se sentariam lado a lado em um banco de praça para ver o céu escurecer lentamente, poderiam ate mesmo ir assistir um desses filmes novos, que ela gostava, e que ele, sem qualquer interesse, via, só para que ela se alegrasse.
            Mas ela foi embora.
            Deixou a cidade.
            Deixou-o.
            E ele vagueou sem destino... Isso de certa forma o acalentou, não estaria ela também vagueando sem destino a algumas milhas dele? Talvez não milhas, talvez mais... Mas não importava, não estavam eles conectados por essa coisa que era vaguear? E ele sorriu.
            Mas tão logo a felicidade veio, ela se esvaiu, quando o vento soprou levantando folhas, levantando parte do cabelo dele, levando embora um cachecol de uma criança mais a frente, fazendo com que o garotinho, e seus pais corressem atrás daquele pano que dançava junto ao vento. Hoje ela vagueia, mas ela não vai vaguear para sempre... E ele será condenado a continuar a fazê-lo sozinho.
            Tentou tirar esses pensamentos da cabeça, mas não conseguiu. O que faria se nunca mais visse o sorriso dela? O que faria se tudo o que lhe sobrasse fossem memórias? O que faria quando as memórias começassem a se desmanchar?
            Tantas perguntas... E ela não estava ali para lhe responder. Como ela pode? A passagem de nada tinha haver com os planos que ela havia traçado, decidido cuidadosamente as datas, os dias... Havia sido ela que, ele bem se lembra, colocará o calendário, que continha os próximos cinco anos, pregado na parede, e era nele que ela anotou todos os aniversários, feriados, dias que faria compra, dia de pagar contas, tudo tão calculado.
            Ele gostava disso nela. Gostava da forma com que ela fala do futuro parecendo que falava nele, como se fossem a mesma coisa, como se ele nunca estivesse para trás, mas ali, junto dela continuamente. Gostava da forma com que os dedos deles se entrelaçavam quando, a noite, deitados lado a lado, dizia a ele sobre o futuro, contava histórias sobre o que fariam juntos, e ele, fazendo a parte dele, lhe sussurrava o passado... Naquele tempo ela ria.
            E o riso doce enchia o quarto pequeno.
            Havia alguns meses que o riso cessara...
            Que quando ele ia lhe desejar boa noite, já encontrava a porta fechada, e quando se pronunciava para dentro, batendo de leve para não assustá-la de sua presença, de sua pessoa, via-a chorar, e entre lágrimas que lhe cortavam, ela dizia que não queria ele ali, e com o coração quebrado duas vezes, retirava-se.
            Esse mesmo coração carregava agora os botões e linhas dela, que foram abandonados para trás.
            Não soube o que fazer quando soube da passagem. Quis gritar com ela, quis dissuadi-la, quis consolá-la, porque achava que era disso que ela precisava, não fez nada porque ela não quis lhe falar. Quando ele bateu a sua porta para conversarem, ela não o atendeu, não o deixou entrar. Ele insistiu e ela chorou.
            Depois, quando finalmente conseguiu a ver, ela estava entrando no trem. Os olhos deles se cruzaram, e aquela expressão, que era medo, susto e saudade a cobriu, antes de desviar os olhos ao chão, antes de finalmente entrar. Ele gritou o nome dela em vão, preso antes das catracas.
            Ela não voltou.
            Ele ficou desesperado.
            Que havia feito?
            Ela sabia que não era culpa dele...
            Mas, ainda assim, abandonava-o.
            E ele brigou com os guardas, pulou a catraca, tentou entrar no trem... Mas quantos não o seguraram, quantos o impediram... Os números já não importam. Ele perdeu.
            E o trem partiu levando apenas ela, carregando uma pequena mala. Ele não conseguiu falar nada de inicio... Não havia palavras, só lágrimas que, entaladas em sua garganta faziam com que todo ele parasse.
            Quando finalmente percebeu que ela estava ficando muito longe, começou a gritar, mas ela não escutou. Tudo o que ele disse o tempo arrastou, algumas coisas se perderam pela linha do trem e foram arrastadas para outros lugares ou estraçalhadas pelas locomotivas em movimento, outras se perderam ao na estação mesmo, que, algumas pessoas levaram, ou foram perdidas a pontapés mundo afora.
            As promessas que ele fez se tornaram vazias. Nenhuma delas ele poderia cumprir... Ele não sabia para onde ela ia, ele não sabia como encontrá-la.
            Pôs se a vaguear pela cidade natal dela, assim, quando ela decidisse voltar para buscá-lo ela o encontraria ali. Nunca mais ele poderia deixar aquela cidade, nunca mais ele poderia ser livre, porque tudo o que queria era estar, novamente, ao lado dela.
            Ele, linhas e botões, esperariam.
            Teria que ter paciência, mas isso todo o passado tem. Teria que, mais que isso, ter sorte, teria que contar com o fato de que, em algum momento, ela sentisse mais saudade do que ressentimento e dor, e, procurando saciá-la, ela comprasse uma passagem de volta, e viesse para essa cidade que foi seu berço. Teria que esperar que a cidade não mudasse e assim, as referencias, aquele banco que dividiram, a geladeira e fogão, o apartamento pequeno, a padaria, não sumissem, caso contrário, quando ela voltasse talvez ele já tivesse desaparecido, sem que ela pudesse resgatá-lo.
            Mas tudo isso dependia de tanta sorte...
            E ele não se sentia com sorte.
            Ele pediu a ela que a levasse.
            Ela sorriu sem qualquer traço de felicidade. Ele não entendeu muito bem.
            Tinham tantos planos... Como ela pode abandoná-los?
            Ele esteve ao lado dela desde a infância, dividiram o balanço, e a caixa de areia, dividiram segredos e esconderam segredos, que ele gostava de relembrar para fazê-la rir. Você lembra que no parquinho tinha um balanço quebrado no canto esquerdo? E aquele pedaço de cerca mal colocado que, com cuidado, dava para passar e fugir? Havia uma sorveteria no final da rua da casa de seus avós, nós descíamos lá aos domingos, eu gostava do de limão, você só tomava o de uva... Lembra das manchas nas camisetas? Lembra do sorriso? Lembra do som dos pássaros na praça?
            Mas agora ela estava longe demais para lembrar.
            E quando chegasse ao seu novo destino, naquele que viria a ser seu novo lar, sua nova vida, havia de lembrar-se só do som do trem, aquele rugido que a libertou de seu passado, esse passado que chorou por ela na estação. Esse passado que não a esquece.
            Mas houve uma época que ela amava ele.
            Uma época um pouco atrás, um pouco antes da partida... Alguns meses.
            Nesses dias ela acordava e já abria a porta para ele entrar. Sentavam-se juntos a mesa, e dividiam o café da manhã, e, alegre, ela começava a comentar sobre sonhos futuros, e ele fazia referencias com lembranças, que a faziam rir, e não era mesmo que aqueles sonhos antigos estavam virando realidade?
            Eram dias felizes. Que saiam juntos, e ela o carregava para todos os lugares, com um cuidado e paixão que o fazia infinitamente feliz, e retribuindo-lhe ele a acompanhava para todos os lados, fazia-se solicito, abraçava-a, e criava em seus lábios um riso continuo. Quantas coisas ele não fez virar memória, quantas referencias e verdades...
            E então tudo acaba.
            Como havia sido?
            Ele tinha tantas lembranças sobre isso.
            Nos últimos meses ela o reduziu a um único momento, e ela repintou a cidade natal a cores angustiantes, tons de magoa, degrades em lágrimas. Ela o via só como dor.
            E quando, pelas manhãs, ele batia em sua porta, tentando fazê-la sorrir, ela lhe dizia que queria estar sozinha, e abandonava-o, deixando vagar continuamente pelas ruas, sem destino e sem ninguém.
            Não era claro que a separação era iminente?
            Se foi, então ele encobriu com histórias, e fez-se que logo passaria, que logo a porta da casa se abriria a ele, e que os braços dela o rodeariam de novo, a mão dele poderia tomar a dela, e caminhariam pela cidade como namorados que eram.
            Mas ele estava manchado para ela, e ele podia ver a repulsa quando ela o olhava. Não era essa enorme mancha escura em seu ser? Essa que ela enxergava tão bem, e que ele quis tapar, quis mudar, e quis arrancar-lhe corpo fora... Essa mancha terrível que ele se enojava em ter, fruto de um segundo, de um erro de calculo daquele que o manchou, um erro de calculo dela também...
            Andou pelas ruas, atravessando as mesmas calçadas, sem pensar... Sendo conduzido ao lugar que menos gostava, mas, dando conta de tal fato quando, em frente aos portões de metal do cemitério, ele finalmente tinha um obstáculo em seu caminho. Quase voltou. Contudo, sentindo as linhas e os botões, aqueles restos de quem ele amava, pesarem-lhe o peito, abriu as grades e adentrou...
            As lapides se organizavam cuidadosamente, parecendo lombadas de livros em suas estantes. Não havia ninguém por perto, ao longe via-se um funeral silencioso, e nada mais... As arvores farfalharam em cumprimento, e passado maneou a cabeça educadamente.
            Ele odiava aquele lugar...
            Nos últimos meses quantas não foram as vezes que ela o arrastou para lá, e o fez dizer coisas sobre tempos ruins e sobre tempos que, se foram bons, ainda assim a faziam chorar. Quantas não foram as vezes que ele quis que ela se esquecesse, e que pudesse retirar toda aquela dor dos olhos dela e do peito dele, mas ela relutava, não exatamente porque desejava, mas porque o vazio a dominava, e ela prendia-se a única coisa que lhe estava a vista, a dor.
            Ele se aproximou de um tumulo em especial. Olhando-o com nojo.
            Ainda havia flores sobre o tumulo, e ele reconheceu algumas que ela havia trazido, mas preferia não ter reconhecido, não ter lembrado, não saber, ou mesmo, ter conhecido o indivíduo que ali encontrava-se enterrado. Queria esquecer, queria que ela esquecesse... Assim, quem sabe, a passagem de trem nunca tivesse sido comprada, e aquele caminho que ela traçava, afastando-os, abandonando-o, jamais teria ocorrido.
            Ali, sob a inscrição, sob flores, e sob o completo ódio do passado, encontrava-se quem ela realmente amava.
            Passado cuspiu sobre o nome.
            - A culpa é sua por ela nos abandonar.

sábado, 19 de janeiro de 2013

Ela e Ele

            
            Ela buscava ele. Nos olhos dele, buscava ela. 
            Ela amava ele, mas ele só gostava dela. Ela sonhava com ele, e ele esquecia dela.
            Ela entendia ele, e ele não compreendia ela. Ela se encontrava nele e ele se perdia nela.
            Ela amava ele... E isso não mudava nada.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Criança


O homem é grande. Levanta-se acima das nuvens e toca o céu. As lâmpadas. Alto como edifícios e adultos. Largo como construções e adultos. Enorme!
Seus olhos estão sempre muito acima dos meus, e vejo apenas suas pernas percorrendo, passos grandes de gigantes (desconhecidos nos dias de hoje, ou apenas esquecidos). Vejo seus sapatos sempre amarrados, com complicados laços. As calças sempre percorrem toda a perna, e terminam escondendo os tornozelos cheios de pelos rebeldes que se enroscam e se confundem uns com os outros.
Seus movimentos são sempre muito mais rápidos que os meus. E eu corro sobre minhas pequenas pernas, tão pouco estáveis, tão pouco confiáveis, para tentar acompanhar. Jamais acompanho. Ele está sempre á frente. Ou um passo disso. Seus passos são léguas, do tamanho de barcos ou adultos.
E sempre que fujo, uma tentativa de chamar a atenção, uma necessidade de ir a encontro de algo, ou um desejo de correr, não importa, suas mãos, que são do tamanho de aviões ou adultos, agarram-me e levantam-me. Com toda a delicadeza dos deuses e dos mortais. E voou, delicadamente, no espaço, muito acima de tudo, muito acima de todos, sob o comando daqueles braços que são grandes como estradas e adultos.
Pouso sempre em seu peito largo, como um continente ou adulto. E enquanto o homem arruma delicadamente meus cabeços, finos, ralos, lisos e inocentes, miro-lhe o rosto com cuidado, vejo-o grande e enorme, mas seus olhos, mais grandes e mais enormes do que todo o resto, como astros ou adulto, estão sempre em mim, e lá dentro, estou eu, pequeno e diminuto ser, acolhido dentro das orbitas brilhantes, como semente, que sou.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

As cinzas


            - Você esta bem?
            - Sim – ela respondeu naquele tom monótono.
            Respirou fundo.
            - Só estou cansada.
            Ele não disse mais nada, deixaria as coisas dessa forma, não por descaso, medo ou receio, mas mesmo assim por todas essas coisas, como por nenhuma delas.
            Ele havia dirigido por quatro horas, atravessando grandes plantações, algumas vezes casas esparsas, que pareciam construções perdidas na imensidão do mundo. Havia tanto tempo que não via campos, havia ainda mais tempo que não via sua irmã, sentada ali ao lado. Segurando o pote, segurando as lágrimas.
            O céu acima deles se abria claro, e mesmo isso lhe parecendo um ultraje, ainda que parecesse condizente com toda a situação, era melhor dessa forma, essa infinidade azul calma, caindo como um véu sobre as tristezas cinzentas que pairavam em seus olhos umedecidos pelos últimos acontecimentos, recentes demais para não transbordarem delicadamente. Yann havia visto Marieta limpar as lágrimas que escorriam eventualmente em seus olhos, com aquela delicadeza e discrição, que se ele não a conhecesse jamais teria notado. Esse era o tipo de coisa que ele sabia e reconhecia em sua irmã, 4 anos mais nova, e ainda assim tão decidida e dedicada.
            Ele voltou os olhos para a estrada de terra. Queria mentir, falar que logo chegariam, mais para retirar aquele peso de seu coração, que insistia em abandonar a viagem o mais rápido possível, do que para consolar a Marieta, que alias, parecia desejar o tardar, se encolhendo todas as vezes que reconhecia parte do trajeto, calculando mentalmente quanto lhe restava.
            Mas sinceramente, não lhe restava nada.
            Nem a ela. Nem a ele.

            Ele correu toda a colina abaixo, indo muito mais rápido do que ela poderia acompanhar, pelo simples prazer de correr, e pelo desejo de se ver livre dela. Mas Marieta, ainda que pequena, e fraca e frágil acompanhava Yann, gritando para que ele a esperasse.
            Ele não esperava.
            Depois, com os anos a situação de inverteria, quando ele ficasse perdido, ela já estaria correndo muito á frente; quando ele a chamasse, ela estaria longe demais para ouvir, ou estaria correndo para se ver livro dele também, mas isso é numa outra época, que nesse dia, eles ainda nem imaginam acontecer.
            Yann era magro, com os cabelos lisos, naquele castanho claro que as crianças tem, as roupas lhe caiam no corpo, que era apenas um cabide para estas. Ele descia sorrindo, chegando a parte mais baixa da colina, e usando o impulso para continuar correndo, gostava do vento no rosto, gostava da sensação de liberdade e a liberdade de gostar de algo. Ali, Yann se sentia inteiro, e inteiramente ele mesmo, sem precisar usar a mascara do irmão mais velho comportado, sem precisar ser o filho adorável, o estudando dedicado, o orgulho do pai, o amor dos avós. Nada. Ali, Yann era apenas Yann, puramente.
            Mas Marieta vinha atrás, gritando para que ele diminuísse, ela queria andar ao lado dele, ela queria a atenção dele, mas ele queria deixar o mundo todo para trás. E ela gritava:
            - Yann! Me espera!
            E ele nem sequer pensava em parar.

            Ela queria perguntar se ele estava bem, mas sabia que assim que abrisse a boca as palavras sairiam erradas, as lágrimas despencariam, ele a veria chorar mais uma vez. Dessa vez ela não teria como disfarçar.
            Mas ela queria saber se ele estava bem. Ali, ele parecia tão forte, o volante nas mãos, o olhar certo, concentrado, focado... Marieta havia se esquecido do quão forte era seu irmão, havia se esquecido que ela era fraca e frágil, e que, mesmo depois de construir um futuro, ela ainda era um baralho de cartas, ela ainda era a mais suscetível a cair e desmanchar.
            Quis agradecer...
            Entretanto a reação seria igual a perguntar se ele estava bem. Ela cairia, mais uma vez.
            Ele não parecia perdido, triste sim, cansado sim, mas não perdido. E ela, de tudo, o que mais lhe preenchia, ou esvaziava, era justamente essa falta de direção, que a fazia se ver em uma inação angustiante, ela estava para lá longe... Ela queria voltar para casa.
            Yann voltou os olhos para ela, levemente preocupado, mas não disse nada, afinal, Marieta voltou os olhos para a janela.

            - Yann?
            - Sim, sou eu...
            - Mas o que? São três horas da manhã!
            - São? Bem, eu não sabia...
            - Uhm...
            - Marieta, eu não estou bem.
            - Uhm...
            - Eu não estou bem... Sério.
            - Yann, o que aconteceu?
            - Eu não sei o que fazer
            - Com o que?
            - Com tudo!
            - Você andou bebendo de novo?
            -...
            - Yann, por favor, tenha vergonha na cara!
            - Não, eu não bebi.
            - Você esta mentindo.
            - Marieta, eu só tenho você...
            - Você bebeu! De novo! O que quer que eu faça!?
            - Eu preciso de ajuda.
            - Com o que? Eu não posso fazer você ter escolhas melhores.
            - Eu preciso sair disso.
            - Então saia!
            - Eu não consigo.
            - Já falou com o pai, ou com a mãe?
            - Você acha mesmo que o pai vai me ajudar?
            - A mãe?
            - Eu não posso decepcioná-la assim...
            - Você já a decepcionou.
            -... Isso não é verdade
            - Isso é verdade. Você já decepcionou a todos nós, mude alguma coisa, Yann!
            - Eu quero.
            - Então faça.
            - ...
            -...
            - Marieta eu preciso te ver.
            - Não.
            - Por favor, eu preciso sair daqui.
            - Saia, faça o que quiser. Pode pular da ponte, pode sumir do país, pode dormir com os seus amigos, pode ir para o inferno, mas não peça para me ver.
            - Mas eu preciso de você.
            - Mas eu não, e eu não quero ver você depois de tudo aquilo.
            - Não era a intenção...
            - Mas aconteceu, Yann.
            - Mas...
            - Aconteceu. Pare de me aborrecer.
            - Marieta...
            - Nunca mais ligue para mim, Yann. Ouviu? Nunca mais.
            E o telefone ficou mudo.

            O carro andava numa velocidade média, sem acelerar demais, nem tardar. E dentro do carro iam Marieta e Yann em silencio, resumidos a o que ainda eram... Pequenos.

            - Mamãe...
            Marieta se apoiou na ponta dos pés para vê-la costurar. Eram aqueles tecidos finos se transformando em um coelho. A mãe sempre fazia coelhos, por alguma razão que talvez nem ela desconfiasse ou entendesse.
            Aquilo era mágico, porque, mesmo tentando compreender como todo processo acontecia, Marieta apenas via panos dobrando-se, uma linha pulando, formando pontos, como golfinhos costurando o mar, e então vinha uma cabeça, um pé, uma figura inteira, uma composição perfeita. Aquelas formas antes bidimensionais saiam de seu plano, tornavam-se concretas. E ela amava isso.
            Mas todas as vezes que Marieta se pôs a tentar criar algo daquela maneira, tudo lhe saia errado, as figuras tortas, pequenos monstros tristes saídos de uma criação incompleta, e incompreensivelmente falha. E a pequenina decepcionava consigo mesma.
            E ali se encontrava Yann, que passando pela mãe parava uns minutos, e quando ela lhe oferecia a agulha, ou lhe pedia ajuda, ele se sentava ao seu lado, as mãos muito mais habilidosas que as de sua irmãzinha, ele fazia casas para botões sem dificuldade, e pregava-os correspondentes, sem parecer se interessar por tal afazer, apenas tentando agradar a mãe.
            Marieta apenas olhava as próprias mãos, decepcionada consigo mesma.

            Ela segurava o pote com muita força. Yann percebia, havia nela aquela ansiedade, como se ainda tivessem tempo de fazer algo, como se, se eles optassem pelo caminho certo as coisas fossem voltar, e o pote deixaria de existir. Provavelmente se isso acontecesse, eles não estariam se falando, ela estaria longe, em algum lugar que ele desconhecia, crescendo na carreira, que foi apenas o que lhe restou, e ele, bem sabia, estaria no mesmo lugar que estivera nos últimos 5 anos; em casa, trabalhando com textos e composições de piano, esquecendo-se de limpar as vidraças que estavam constantemente sujas, esquecendo de recolher as cartas, e ainda assim ele parecia bem, quase como se no lugar certo.
            Ele imaginou o que aconteceria depois daquele dia, mas já não havia nada em sua mente que pudesse guiá-lo, havia errado tantas premissas, mais que isso, quebrado tantos princípios e leis que, agora, as coisas eram indefinidas, borrões em sua vidraça, que ele não se preocupava em limpar mais.
            Mas ela se preocuparia, ela estava sem rumo, havia se pautado demais em todas as regras, e essas acabaram arrastando-a para baixo, afogando-a no desespero. A vida havia dado uma guinada, jogando por de baixo do pano, tirando cartas dos oponentes, e depois de ganhar uma quantia enorme das fichas, continuava ali, a sorrir sorrateiramente, mas Marieta não sabia trapacear, e iria cair se continuasse assim.
            Yann suspirou. Por que ela não poderia enfrentar as coisas de uma forma melhor? Entretanto, pensar dessa forma era uma maldade, ela estava fazendo seu melhor, segurando as pontas, tentando não quebrar. Ele já era quebrado, farelos a mais, farelos a menos, não mudavam o fato de que não voltaria a ser o que deveria ser e ter sido.

            O pai sempre levava Marieta para passear, ela era sua garotinha, e por ser alem de menina, a caçula, havia ali, uma adoração que retirava as responsabilidades dela, dando-a uma liberdade sempre ampla demais para a idade, e uma redenção mais rápida aos seus crimes. Ela nunca ficava de castigo, não importava o quanto estivesse errada, ou o que tivesse quebrado.
            Depositava então a responsabilidade no irmão mais velho, não só por si mesmo, mas por sua pequena, para ele o irmão deveria proteger a irmã, livrá-la dos problemas, resgatá-la de perigos, lutar por suas escolhas, auxiliá-la em quaisquer que fossem seus desejos, era isso que ele acreditava. E sob o pequeno Yann, já havia a responsabilidade por si e por Marieta.
            A mãe retirava um pouco desse peso das costas do filho, de certa forma porque via a ação do pai dos dois, em partes porque Yann parecia brilhar a seus olhos de uma forma especial. Ela, inclusive lhe diria isso todos as noites, mas é estranho, trágico e também engraçado que, por mais que ela lhe dissesse, ele não chegaria a acreditar realmente naquilo, sendo ou não uma verdade.

            A estrada seguia calma. Agora estavam tão perto, mas tão perto que Marieta quis brecar o carro, quis segurar o pote com força e sair correndo, mas não havia para onde correr ali, eram só campos, e Yann sempre correria mais rápido. Ele estava correndo agora, e ela queria que ele parasse, que ele segurasse sua mão e a trouxesse de volta para casa.

            - Yann, poderia tocar novamente aquela música que eu gosto?
            - Claro.
            E o garotinho debruçava-se sobre o piano, segurando o livro de partituras da mãe, que ela desistira ainda quando pequena, acreditando não ter talento para a coisa, enquanto seu primogênito parecia ter nascido com aquele dom, que o tornava especial e, mais que especial, o tornava absolutamente distinto de todos os demais. Ela se orgulhava dele, não por conseguir algo que ela não havia conseguido, mas por conquistar algo por si.
            E ele tocava... Com toda a alma e felicidade que poderia existir dentro de si.
            Ainda naquele ano ele começaria a escrever suas próprias partituras, e depois disso nunca mais voltaria aos livros, não por não admirá-los, mas por considerar a leitura das notas tediosa, tendenciosa, e terrivelmente inibidora. Yann passaria a correr pelo piano a seu modo, e com isso ele ganharia espaço na vida.
            Era justamente o piano que o ajudaria quando tudo caísse, inclusive o orgulho do pai, o carinho da mãe, o apoio da irmã.
            - Eu realmente amo quando você toca essa música – a mãe disse.
            O garotinho se encheu de orgulho e felicidade.

            - Só mais essas colinas e vamos chegar – ele disse.
            Não havia sido a intenção dele falar aquilo em voz alta, mas depois de ter repetido várias vezes dentro de sua mente, e ainda assim nada daquilo tomasse uma consistência satisfatória, ele acabou deixando as palavras saírem lentamente por seus lábios, sem uma ênfase, ou destaque, apenas um sopro leve, que, no entanto, ressoaram dentro da cabeça da irmã com um peso infinitamente grande. Ele só percebeu o erro quando viu os olhos dela brilhares por um momento, e as mãos apertarem o pote, tornando os nós dos dedos brancos devido à força exagerada.
            Uma brisa leve acariciou o carro e os rostos dos irmãos, tentando lhes levar as lágrimas, sem sucesso.
            - Eu estou com medo.
            Marieta disse em resposta ao sussurro.
            Medo... Medo? E Yann não compreendeu o que ela queria dizer com isso. Eles apenas fariam o que deveriam fazer e iriam embora, não havia perigo, não havia risco, nem monstros, eram apenas eles, em uma tarde ensolarada, e...
            Mas era só isso. Só isso e nada mais.

            Ele havia caído nas garrafas. Mas como isso havia acontecido ele mesmo não sabia dizer. O que foi que ele quis esquecer quando começou a beber? Havia funcionado tão bem que ele não tinha mais idéia? Ou estava se enganando de novo? É, ele gostava de se enganar, tornava as coisas um pouco mais coloridas, e então, quando olhava sobriamente o mundo, tudo lhe parecia tão cinza, que voltava a sua realidade. Falsa. Individualizada. Egoísta.
            Yann estava a praticamente 1 ano e meio preso dentro de si, ia e vinha do bar para o apartamento. Não conseguia tocar piano, não estava mais desenhando, nem escrevendo, sentia-se vazio...
            Ele não conseguia falar com o pai, sabia que este o acharia um fracassado.
            Ele não conseguia falar com a mãe, porque isso lhe quebraria o coração...
            Ele não conseguia falar com a irmã, porque ela o abandonou.
            E Yann via-se sozinho. Tão sozinho que se sentia pequeno, e sendo pequeno o mundo inteiro o engolia. Ele queria gritar, mas porque sentia-se tão fraco para algo tão instintivo? Porque havia essa letargia em seu ser?
            Havia dias que ele simplesmente não conseguia levantar da cama, e deitado, perdido entre um mar de cobertores, ele naufragava e ressurgia, para voltar a afundar, em um ciclo continuo de dor e de pesadelos. Tudo tinha uma aparência monocromática, em pastel e cinza, dentro do apartamento, e mesmo a rua, olhada pelas janelas embasadas, parecia melancólica e depressiva.
            Ele então fechava os olhos, tentava esquecer o mundo.
            No andar de baixo o piano fazia silencio, observando seu dono nas sombras.

            - Medo?
            Perguntou intrigado. Embora ele soubesse que o silencio era, se não mais seguro, ao menos mais confortável.
            E Marieta não quis responder.

            - Sim, eu estou indo viajar amanhã – ela disse rapidamente ao telefone.
            As bagagens estavam arrumadas. Eram duas malas, uma de mão, composta por documentos, dinheiro, e uma quantidade um pouco exagerada de livros, a outra era feita de roupas, muitas e variadas, para que, diante de qualquer situação, ela pudesse se ver preparada.
            - Não, mãe – ela respondeu um pouco ríspida demais para a situação.
            Pegou a nécessaire, colocou uma pasta de dente nova, e a escova.
            - Sim, estou levando agasalho...
            Andou pelo quarto.
            - Não, minha intenção não é ficar indo em bares...
            Sentou-se na cama, retirando o celular do ombro, para segurá-lo devidamente.
            - Eu vou sair, mas a minha intenção não é... – pausa – mãe, você sabe que eu estou indo a trabalho, eu não pretendo ficar saindo por ai... – pausa – sei, como se esses contos de fada fossem verdade – pausa – mãe... – pausa.
            E Marieta observou-se no espelho, passando os dedos pelos cabelos castanhos, levemente ondulados.
            - Não, não acredito nisso.
            E riu.
            - Mãe, isso tudo é falso – e havia uma acidez em suas palavras – você sabe que eu vou terminar sozinha. Agora – ela interrompeu propositalmente a mãe – eu preciso ir, ainda tenho que tomar banho, se não chego atrasada – pausa – também te amo, obrigada, eu ligo assim que voltar.
            E desligou o telefone.
            Jogou-se na cama. Mas ela já havia tomado banho.
            Sentiu-se triste. Quis chorar. Quis alguém para lhe apertar a mão, crianças para correr ao seu redor... Mas estava sozinha.
            A mãe teria que contar apenas com Yann para ter netos.
            Mas, qual era o problema, ela sempre havia contado mais com Yann...

            Marieta ficou em silencio. Travou os dentes.
            Yann deixou que ela ficasse assim, não perguntou mais nada.
            O vento voltou para lhes afagar. Mas não conseguiu fazê-los sorrir, nem mesmo por um pequeno momento.
            Já era possível avistar a pequena propriedade que moraram quando pequenos, ela ainda se mantinha ali, em um branco sujo pela terra carregada pelo vento e lavado pela chuva, dava aquele ar de rusticidade que toda a infância daqueles dois. O sol parecia brilhar com mais força, com mais intensidade, as cores tinham gosto de casa, a casa tinha cor de vida, a vida parecia certa, e ainda assim tão errada.
            Quando Marieta viu a casa ela perdeu o ar.
            Estava em casa?
            Não sabia dizer...

            Ele brincava com cavalinhos feitos de pau, frutos verdes e palitos de fósforos...
            Ele brincava na terra, e sua pequena fazenda era só mais uma em toda a extensão de fazendas que existiam ao seu redor, e ainda assim ele se sentia fazendo algo único.
            Aqueles bichinhos, que ele nomeava, se apagava, guardava cuidadosamente em seu quarto, sempre cheios de terra e lama, eventualmente apodreciam, as perninhas de palitos ficavam bambas, a cabeça pendia, o corpo desfigurava-se. E Yann os assistia morrer...
            E, no entanto, era aquele carinho e apego, de uma criança frágil e sem amigos em uma realidade frágil e solitária, que fazia com que ele simplesmente não conseguisse jogar fora as coisas com facilidade a partir do momento que ele admitia para si mesmo a existência desses personagens. Ele escondia esse fato de todos, não deixava que percebessem esse seu afeto por seus pequenos animais de fazenda, que eram frutas, não deixava nem mesmo que alguém o visse brincar com eles.
            Yann conversava avidamente com todos os seus bichinhos. Eles discutiam sobre o mundo, que para eles era uma realidade fantasiosa, eles falavam sobre si mesmos, tinham histórias, amigos, família, memórias, medos, nomes, desejos, anseios...
            Mas essas frutas secavam, apodreciam...
            E o garotinho, que geralmente brincava sozinho corria colina abaixo com o moribundo nos braços. Corria tão rápido que despistava qualquer um que tentasse se aproximar, fugia do mundo inteiro, e lá longe, em uma colina que foi marcada por ele mesmo com uma pedra, encontrava-se o cemitério...
            Ele se sentava junto de seu bichinho, eles conversavam, ele lhe fazia uma cova, o coração apertado em mãos, e o enterrava junto de uma flor que colhia no caminho. Só deixava o lugar ao entardecer, quando já não podia mais ficar ali, e então voltava para casa correndo, em disparada, sentindo o ar queimar o pulmão, repuxar a pele, agarrar-lhe os cabelos, sussurrar em seu ouvido.
            Quando chegava em casa colocava um sorriso no rosto, independentemente de como estivesse se sentindo. Ninguém nem desconfiava.
            Yann teria lidado com a morte muito mais vezes do que as crianças estão acostumadas, e ele compreenderia melhor seus mecanismos, tristeza, aceitação, medo, ansiedade, ressentimento, melancolia, muito melhor do que a maior parte das pessoas.
            Yann assistiu suas criações morrerem, ele se sentia muitas vezes abandonado.

            Olhar a casa ao longe não lhe trouxe aquela sensação de familiaridade que fez Marieta ficar estática. Foi apenas aquele reconhecimento vago, aquela memória incomodando ao fundo, remexendo-se sem sair de seu canto. Yann não se sentia inspirado ou incomodado, era apenas a casa em que cresceu, mas já não era criança.
            Era apenas o lugar onde nasceu, mas não havia mais raízes que o prendessem a qualquer lugar...
            Era apenas o lugar onde viveram, mas haviam tantos partido...
            Agora a casa, era apenas a casa. E a memória, memória.

            - Marieta?
            Ela quis desligar assim que ouviu a voz ao telefone.
            - Marieta é importante! – ele disse com urgência.
            - O que foi, Yann?
            Ela acabou respondendo. Não porque acreditasse que ele merecia qualquer uma de suas palavras, ou mesmo seu tempo. Mas havia ali aquela ansiedade, uma necessidade clara de lhe falar algo...
            Mesmo assim isso não teria sido suficiente, ou mesmo relevante. Yann havia ligado diversas vezes pedindo socorro, havia caído na máquina de recados, e as vezes ouvia-o chorar baixinho, pedindo perdão, falando que não estava bem, mas isso fazia pelo menos oito meses, ele havia desaparecido completamente por esse tempo todo, nenhum recado, nenhuma palavras, nem mesmo o silencio ao telefone... Nada.
            E ali estava ele ligando novamente.
            Mas havia algo de diferente dessa vez, uma nota de sobriedade em sua voz e atitude, uma sobriedade que a deixou preocupada. Não que ela não estivesse feliz pelo irmão mais velho, que foi na infância toda a sua referencia de vida, que acabou com seus sonhos, esse herói que acabou caindo. Ela estava feliz por ele, mais feliz do que imaginou que ficaria, mas... Ainda assim, aquela sobriedade...
            E juntamente com a coesão de suas palavras havia aquele tom sério, de perigo, de urgência.
            E a pausa alongada...
            - Yann?
            - Marieta – ele pausou.
            E isso a deixou ainda mais preocupada. As palavras que se seguiriam acabariam com ela. Elas também haviam acabado com ele...
            - Não sei como te falar, mas...
            Em seu apartamento, Marieta escutou atentamente a voz do irmão, as lágrimas brotaram dos olhos antes dele terminar de explicar a situação, pela primeira vez em anos, sentia-se novamente pequena frágil, fraca, insuficientemente prática para lidar com a situação. Ela se viu cair no chão, as lagrimas correndo, os soluços fazendo o corpo se curvar, arremessando-o sobre si mesmo, curvando-se em movimentos esparsos, era seu castelo de cartas a desabar.
            Pela primeira vez em anos, ela queria que Yann aparecesse.
            Mas ela não conseguia falar nada.
            Do outro lado o irmão escutava.
            Nenhum dos dois tinham palavras para consolar e destruir a dor.

            Yann estacionou o carro perto da casa.
            O sol estava se ponto, deitando-se lentamente por de trás das colinas verdes.
            Ele saiu do carro antes dela. Demorou-se alguns segundo olhando o sol, mas não se deixou ficar por muito tempo, e com passos calmos caminhou ate a porta de madeira, gasta, antiga, e tão familiar, que era a entrada. O molho de chaves o desafiou um pouco, mas nada como a memória reavivada pelo mesmo ambiente para fazer com que as lembranças surgissem, e a chave levemente avermelhada, semi-oxidada, grande e pesada, correspondente dessa porta de madeira, também bruta, foi encontrada sem muitas dificuldades.
            Ao entrar o cheiro de pó o invadiu, e pela primeira vez desde que havia iniciado a viagem sentiu-se realmente triste. Aquilo não era todo o passado deles morrendo também? Virando pó?...

            - Ela é tão pequena...
            - É sim, Yann – o pai disse – ela é muito pequena, e é por isso que temos que cuidar dela.
            O garotinho assentiu.
            - Papai, qual vai ser o nome dela?
            - Precisamos de um nome forte, e ao mesmo tempo doce – ele respondeu olhando ternamente para o pequeno bebe em seu colo.
            A criança ainda tinha o rosto amassado, olhos fechados, bochechas gordinhas, uma pele levemente rosada. Era tão pequenina, tão delicada, que por vezes o pai se perdia na expressão doce do bebe, e ficava apenas observando-a.
            - Papai, que tal Ana?
            - Acho que não...
            - Lucia? Renée? Nina?
            Mas nenhum dos nomes foi aprovado.
            A mãe escolheu Marieta, por causa de um livro infantil. Contava a história de uma gatinha, que era pequena demais para a idade, e que queria ser grande. O pai não gostava muito do nome, foi a insistência da mãe que o fez aceitar. Mas ela acertou perfeitamente, a criança, assim como a gatinha, tinha essa ânsia por crescer, por se tornar grande, e assim que conseguisse a independência, ela subiria rapidamente na vida, tão rápido que sua família acreditaria que a perdeu.
            Assim como acreditavam ter perdido o primogênito.

            Marieta ficou mais alguns minutos no carro. A respiração acelerada, o coração disparado. Havia quantos anos que havia deixado a casa? Mais de cinco? Mais de dez? Era tanto tempo assim? Ou tudo não se passava de uma impressão errada sobre as datas e lugares que esteve? Mas ela acreditava ter ido embora daquela casa muito mais cedo, quando ainda não havia se mudado, e, no entanto, passava a maior parte do tempo sonhando que estava longe dali.
            Agora, em casa novamente, ela sentia a mesma brisa e o conforto da familiaridade das lembranças e memórias, ela poderia se deixar embalar nesses sentimentos, e haveria então apenas o conforto de voltar as origens. Mas havia um pote em suas mãos, cujo destino era aquela mesma propriedade, cuja existência era fruto da morte, embalado na dor, feito de tempo e de memórias.
            Se não houvesse o pote, a volta seria puramente prazerosa.
            Mas ela sabia, claramente que, se não tivesse o pote, nada a faria voltar para casa. Nada a faria ver o irmão mais velho. Nada a faria desviar-se de sua rota.
            Entretanto, ali, não havia mais rota, caminho certo, caminho errado. Estava novamente nas colinas, descendo o mais rápido que seus pezinhos conseguiam, ela não sabia os caminhos e as trilhas, e devia apenas basear-se na direção que Yann corria. Sua única referencia.
            Ela quis rir. Não havia crescido nada... Não é mesmo?
            Mas não tinha resposta. O pai, que havia lhe protegido, havia morrido a muito tempo atrás. A mãe seguiu o mesmo caminho...
            Ela apertou o pote.
            Respirou fundo.
            Levantou-se do carro, andando lentamente em direção a casa. Sentindo o tempo voltar sob seus passos.

            Havia um caderno onde ele desenhou todas as coisas que morriam. Eram seus animais frutas, o peixinho da irmã, as flores da mãe...
            Esse caderno havia sido guardado cuidadosamente entre a parede e a cabeceira maciça da cama. Havia sido tão bem guardado que ainda continuava ali, sem que ninguém o tivesse retirado, ou mesmo desconfiado de sua existência. Era antigo, tinha parte da capa dura amassada, uma queda errada causara o dano, tinha um tom marrom azulado, como se a sua cor original tivesse sido azul escuro, e o tempo tivesse deitado suas garras sobre esta, arrastando-a, tentando esgotá-la, destruí-la, acabou assim, um marrom com resquícios de outro tempo, outra época.
            Não se lembrava de como o caderno lhe caiu em mãos, mas lembrava-se que os lápis de cor eram parte do material escolar, e, adquiridos no inicio do ano, junto de uma caderneta e mais alguns utensílios, sendo que parte destes nunca seriam utilizados, e deixados no fundo da pequena bolsa, ou do estojo, permaneceriam timidamente calados. Mas os lápis eram gritantes, suas cores vivas fantasiavam a mente do garoto, e Yann se viu maravilhado.
            Entretanto, nessa época, onde o lápis e o caderno de memórias ainda eram relíquias indispensáveis para a sua vida, o pequenino Yann não sabia, acreditava, ou conseguia imaginar que, antes de partir da casa, desenharia a si próprio, depois o pai... Depois...
            Mas essa época ainda é de sonhos, e ele desenhava seus pequenos animais frutas que haviam apodrecido, não por um sentimento tétrico, de miséria e solidão, mas uma continuidade a memória, que ali os fazia continuar vivos e reais.
            Pobre Yann, parecia tão valente a irmã, tão bondoso a mãe, tão correto ao pai. E ele era apenas um garotinho, que tinha medo de esquecer e ser esquecido.

            - Yann?
            Marieta entrou na casa com receio.
            - Uhm?
            A resposta veio de outro cômodo. Ele parecia estar inspecionando o lugar, certificando-se que nenhum animal selvagem havia adentrado a casa, e que era seguro, então, passar a noite por ali.
            - Onde eu coloco...
            E as palavras de Marieta sumiram.
            Ela não conseguiu terminar a frase sem desmanchar em lágrimas.

            - Esta tarde, você vai voltar para casa?
            O rapaz perguntou ao outro, mas o outro permaneceu em silencio.
            - Yann?
            Ele tinha realmente que responder?
            - Yann, porra, fala logo – reclamou, sem realmente se sentir bravo.
            - Não.
            - Certeza?
            - Sim
            - Mas...
            - Porra Jean, vai embora logo! ...
            Mas ele se demorou alguns segundo, observando o amigo no balcão do bar, sem se atrever a falar mais nada, sem saber o que dizer. Por fim abaixou os olhos, arrumou o casaco sobre os ombros largos, saiu.
           
            Sentaram-se na mesa da cozinha, velha, gasta. Havia ainda as marcas de xícaras quentes que haviam sido colocadas quando ainda eram pequenos, marcando a madeira, pelo que parecia, eternamente. Havia partes lascadas, marcas de canetas e tinta, um dos banquinhos ainda estava bambo. A disposição parecia a mesma, e ainda assim, sem que nada tivesse realmente mudado, parecia um lugar completamente novo, como se, nenhum daqueles dois jamais estivesse estado naquela casa campestre.
            Mas foi ali que viveram, e as marcas de suas infâncias estavam firmemente cravadas em todos os utensílios deixados para trás, seja por eles mesmos, seja pelos pais, ou melhor, pela mãe.
            O pote foi cuidadosamente colocado em cima da mesa, as mãos de Marieta ainda ao seu redor. Nenhum dos dois parecia com ânimo, ou mesmo com palavras para iniciar e manter uma conversa, mas ainda cedo demais para dormirem, naquela casa que agora lhes parecia tão infamiliar, e era tarde demais para voltarem.
            - Vou fazer café
            Yann disse, sem esperar resposta.
            Marieta assentiu, sem se certificar de que o irmão havia visto.

Marieta dormiu de luz acessa desde os quatro, ate os vinte anos de idade.
Depois simplesmente não conseguiu mais dormir sem que o quarto estivesse em absoluta escuridão.
O motivo de dormir de luz acessa era um medo de que algo estivesse a espreita, coisa que, em geral, as crianças acabam criando, e levando consigo pela vida.
O motivo de dormir de luz apagada era um misto de que, dessa vez ela queria que algo estivesse a espreita, e que não existisse um dia seguinte, em meio ao fato de que ela não queria mais saber onde estava, como era sua vida, como era sua casa. A luz acessa mostrava os contornos dos móveis, antigos, ou, quando novos, baratos, parte de uma transição da infância acolhedora a um mundo terrivelmente hostil, que se mostraria mais cínico e desolado do que ela mesma esperava encontrar.
Deitada em sua cama, ela também via os cadernos em cima da mesa, ainda havia tanto o que fazer, mas ela não poderia desistir agora. As expectativas que um dia haviam sido do irmão mais velho recaíram sobre ela quando ele se viu cair, era sua vez de brilhar, de ser a estrela da família, mas nela não residia aquele talento inato que parecia brotar do irmão, voltava-se então a dedicação extrema, passava horas sobre a escrivaninha, debruçando-se sobre livros e estudos, teorias e teóricos...
Quando voltava a casa da infância, visitando os pais, o que acontecia cada vez mais raramente, ela se mostrava orgulhosa de si, na expectativa de que seus pais tivessem orgulho dela, mas não havia uma demonstração mais afobada, nem mais forte de tal, não porque eles não sentiam orgulho, mas porque sempre sentiam orgulho dela. Marieta ressentia-se com isso, voltava para casa apenas para debruçar-se sobre os livros mais uma vez.

- Eu acho que vou dormir – Marieta anunciou.
Yann assentiu, tomando um longo gole do café, amargo, forte, necessário.
Ela se dirigiu a seu quarto, a cama ainda estava onde ela a deixara, encostada na parede, frente a porta, como um posto de vigia. Deitou-se sem trocar de roupa, não tinha ânimo para remexer na bolsa, feita as pressas por ter protelado toda aquela viagem, não tinha ânimo para ver sua própria desorganização, afinal, isso era o indicio de que algo realmente estava errado, de que estava fora de quem ela realmente era.
Deitou-se.
Do lugar onde estava podia ver a porta do quarto dos pais.
Quando pequena a mãe ficava horas a costurar em uma poltrona colocada no canto do quarto, cuja visão dava justamente para o quarto da filha. Marieta via a mãe mexer a agulha e panos, ate finalmente cair no sono, isso a deixava calma. Naquela época as coisas pareciam tão corretamente colocadas em seus lugares...
Mas ali, décadas depois, lá estava a filha, deitada no mesmo quarto, a porta dos pais fechada, sem pais para se postarem por detrás da madeira escura que separava o corredor do cômodo.
E agora as coisas pareciam terrivelmente erradas.
Entretanto, por mais estranho que pareça, a filha não tinha problemas mais para cair no sono, e mesmo sem a mãe para observar, ela caiu no sono, embalada em uma melancolia e roupas amassadas.

- Realmente, essas músicas são muito boas
- Muito obrigado.
O agente sorriu.
- Entraremos em contanto Sr...
- Me chame de Yann.
- Yann.
Em duas semanas ele tinha um contrato em mãos, dinheiro na conta, responsabilidades de um adulto, orgulho de uma criança, e um mundo inteiramente novo a espera.

O café estava amargo demais, mesmo para ele, que passava a maior parte do tempo tomando café sem açúcar.
Havia desenvolvido aquela mania, não sabia dizer se era porque lembrava-lhe o pai, e, para que ele não desaparecesse completamente de sua vida, como ele sentia que desapareceu, pegou o habito, segurando-o firmemente, como um garotinho assustado.
Seja forte. Era isso que seu pai sempre dizia? Pare de chorar. Faça alguma coisa. Pare de reclamar. Você não é a vitima. Você não é mais uma criança.
            E o garotinho tinha apenas nove anos.
           
            - Papai, o que você acha que vai acontece?
            Essa era uma pergunta freqüente de Marieta. Talvez porque a forma lenta com que o desenrolar de sua infância discorria a fizesse acreditar que em algum momento isso tudo seria levado embora, mas se ela realmente tinha consciência disso, é algo que, se ela teve, esqueceu, e se não teve, não há o que lembrar.
            O pai demorava para responder. Em partes porque ele não tinha uma boa resposta, e para a pequena garotinha, ele queria ter as respostas certas, parecer sábio e inteligente, alguém com que ela sempre pudesse buscar respostas. Em partes porque aquela pergunta era algo que ele também desejava a resposta, e sentia-se inapto a respondê-la.
            - Vai chover.
            Ele dizia sério, como se fosse sobre isso que ela perguntou.
            E a filha ria, aquele riso leve e comprido que as crianças tem, falando em seguida:
            - Nãããão papai, eu quero saber o que vai acontecer no futuro.
            E as palavras saiam com aquela ênfase que as crianças tem o costume de dar para as coisas, como se os adultos realmente não compreendessem nada de que elas estiveram falando.
            - Vão acontecer as coisas que você desejar acontecer – o pai dizia passando a mão nos cabelos da filha, que sorria.
            Mas isso era mentira.
            O pai morreu.
            A mãe também.
            O irmão quebrou.
            E a filha nunca quis isso.

            Marieta sonhou com golfinhos.
            Eles pulavam, costurando o mar.
            Havia uma grande tempestade de pó.
            E ela se via afogar.
            Não havia jangadas, nem barcos, nem nada.
            E ainda assim, ela não quis acordar.
            Mas no meio da noite seus olhos se abririam em desespero. Ela se sentiria pequena. Ela seria pequena de novo. Estaria escuro. Silencioso.
            E Marieta iria desejar ter alguma luz acessa.

            Yann observou o pote. Ele ainda estava sentado na mesa da cozinha.
            Era a primeira vez que via o pote realmente, sem que ele estivesse semi oculto por Marieta, seu novo apêndice.
            Era delicado, com desenhos finos de flores. O tom da louça era de um bege, e as flores de um rosa pálido, assim como o marrom claro dos galhos e os três tons de verde das folhas. Havia uma certa tristeza na imagem, mas Yann achou adequada, ou ao menos muito mais adequada do que o lindo céu aberto e as cores brilhantes que teve de lidar durante todo o percurso.
            Aquele embotamento pálido bege realmente fazia mais sentido.
            Todos os desenhos de Yann sobre aqueles que haviam morrido eram feitos em folhas de papel bege. Aquela cor o consolava. Parecia simplesmente... Certa. Não era como o branco, berrante, exigindo atenção, exigindo massa, densidade, volume, sobre si, o bege era discreto, queria apenas segurar a memória, abraçá-la docemente, mantê-la viva...
            O bege realmente era uma boa cor.
            Yann quis encostar no pote. Mas por algum motivo sentiu-se como um traidor ao estender a mão para fazê-lo. E recolheu a mão lentamente.
            Havia passado tanto tempo longe...
            Ele olhou atentamente a cozinha.
            Havia decepcionado tanto, todos eles...
            A infância toda estava ali.
            Era tarde de mais para se redimir, ele sabia...
            Tomou mais um gole de café.
            - Eu sinto muito...
            E o garotinho chorou sozinho.

            - Yann!
            E o garoto correu para junto da irmãzinha.
            - O que foi?
            Ela apontou o por do sol.
            - Olha que cores lindas.
            E os dois ficaram sentados entre as flores observando o sol descer lentamente.
            E mesmo anos depois disso, sem que nenhum deles conversasse sobre aquela tarde, nenhum deles conseguiria esquecer as cores, nem a imagem, os sons, os cheiros e a sensação de sentarem-se para ver o por do sol.
            Essa seria a imagem que guardariam um do outro pelo resto de suas vidas.

            - Onde nós deveríamos...
            Ela começou a falar, mas as lágrimas começaram a correr, a garganta travou.
            - Eu sei um bom lugar.
            Marieta não conseguiu responder, estava tentando não começar a chorar novamente.
            - Semana que vem – Yann disse, sem olhar diretamente para o rosto da irmã – faça uma mala, nada chique, não vai ser necessário.
            - Não vai me... - mas não conseguiu terminar.
            - Não, você provavelmente cancelaria.
            Ele começou a se afastar.
            - Yann, você não...?
            E ele voltou os olhos sem parar, vendo a irmã apontar para o pote.
            - Não, se ficar comigo eu provavelmente vou quebrar, e você vai me matar por isso
            Mas ele não completou que ele se mataria por isso.
            Ela ficou parada ali, observando o irmão mais velho se afastar, sentindo raiva. As lágrimas começavam a brotar novamente, e ela, com a cara emburrada, o nariz vermelho e os olhos inchados lançou os braços ao redor do pote, em uma instintiva vontade de protegê-lo.
            Percebeu então que estava chorando.
            Lá do lado de fora, um homem vestindo um sobretudo havia parado em uma rua vazia, ele havia caminhado com muita pressa para lá, com uma urgência que não sentia a anos. Apoiou-se na parede de tijolos, gasta. Chorou. E como ele odiava chorar...
            - Yann, você não pode desmoronar agora.
            Disse a si mesmo.

            A noite era calma e quente.
            Mas a brisa, leve e constante, impedia que o ar ficasse abafado.
            Muitas crianças dormiam. Uma mãe fazia seu chá, conversando com o marido. Um ursinho de pelúcia caiu no chão. Um cão fungava no tapete da cozinha. Um gato andava no muro, silenciosamente. Um pote parecia respirar. Uma criança lia pela primeira vez um livro de histórias a mãe. Um pai dava boa noite aos filhos. Uma estudante calculava funções trigonométricas. Um escritor relia seus contos. Uma moça dormia curvada sobre si. Um avô escutava opera na vitrola. Um rapaz escovava os dentes. Um homem tomava café.
            E a noite transcorria calma.

            - O que você quer ser quando crescer? – o pai perguntava a sua menina.
            E ela, pequena, sentada em seu colo, observando seus olhos atentamente, tentava encontrar algo que o fizesse orgulhoso.
            Ela diria quase todas as coisas ao pai. Ela seria presidenta, dentista, médica, empresária, astronauta, advogada, cientista, criaria ate uma nova profissão, para que pudesse sempre fazer algo novo.
            E o pai ria, orgulhoso da criatividade e imaginação da filha.
            Mas a pequena simplesmente não sabia o que ser, se não a predileta do pai, se não a caçula, que todos ajudavam em tudo o que lhe causava problema, se não a mais frágil. Entretanto, ela ainda não sabia que as coisas seriam assim. E dentro de alguns anos ela teria que se agarrar com todas as forças em alguma coisa, que acabou sendo seu trabalho, uma vez que o irmão que deveria ser o modelo caiu, o pai morreu. A mãe já tinha seu predileto...
            Na infância ela pensou em ser absolutamente tudo.
            Mas quando a realidade realmente despertou, ela percebeu que o que quer que fosse ser teria de gastar toda sua energia, tempo e disposição, porque ela precisava de um apoio que fosse firme o suficiente para substituir tudo o que caiu, ou ela cairia também.

            A primeira música que Yann escreveu não tinha nome, mas era obvio para quem ele a havia escrito. E a mãe ficava toda orgulhosa disso.
            A segunda era da irmã.
            A terceira, do pai.
            Depois passou a repetir músicas para cada um deles, para seus animais frutas. Eventualmente escreveria para alguma garota, mas nunca com o compromisso de lhe dar-lhe, assim, quando terminassem, a música não teria o gosto delas.
            Mas todas que ele fez na infância tinham gosto de seus personagens. As notas calmas e controladas da música da mãe, as agudas da irmã, a rapidez e a força do pai, eles estavam ali. Assim, quando a bebida tomou conta da vida de Yann, e ele se perdeu pelas ruas, pelos bares e por casas e construções desconhecidas, quando conseguia voltar ao pequeno flat alugado, onde ainda havia um colchão e um piano de gaveta gasto e antigo, ele se sentava ali, e tocava todas essas melodias esquecidas.
            E então queria voltar para casa.
            E tinha certeza de que não o aceitariam.

            - Yann?
            - Marieta? É você mesmo?
            - Sim... – ela parecia desconfortável ao telefone.
            Nessa época Yann estava fazendo bastante sucesso, havia a alguns anos saído de casa, brigado com os pais. Ele já bebia de forma alucinada, mas nada como viria a beber dali a alguns meses. Marieta já se sentia desconfortável com a atitude do irmão, que ela esperava que fosse seu exemplo.
            Mas ele havia largado a faculdade de música. Bebia. Ia em festas. Acabava preso as vezes... Ela não o reconhecia, e ainda assim tinha que conversar com aquele estranho ao telefone, contando-lhe algo, que não só era difícil, como era pessoal, e ele ainda assim usava aquele tom de voz impertinente e esnobe.
            Ela ainda não havia se tornado dura. Mas isso mudaria dali uns meses.
            - Yann...
            E ele esperou. Sem surpresa. Quase irritando-se.
            Ate que ele ouviu a irmã chorar do outro lado da linha.
            - Marieta?... O que?
            E ela reconheceu a preocupação de irmão mais velho, de responsável, de protetor.
            - Ah, meu Deus Yann... Ele tem câncer!
            Ela desatou a chorar
            E ele se engasgou com uma palavra que não usava á anos. Papai.

            A mãe pendurava todos os lençóis em varais que se estendiam entre as arvores. E era só estarem todos pendurados que Yann e Marieta corriam para lá, para passar por entre eles.
            Os dias de verão eram quentes, e o sol radiante, acima da cabeça das duas crianças, teimava em fazer a terra arder. E passando por entre os lençóis, que ainda estavam molhados, eles riam. A brisa batendo. Os lençóis passando pelas crianças. O riso enchendo o ar quente de verão.
            Marieta se sentia como se estivesse dentro de nuvens. Yann se imaginava passando por ondas do mar.
            A mãe desaprovava isso. Eles sujavam as roupas que haviam acabado de ser lavadas, e os lençóis comumente apareciam com marcas de mãos marrons, ou manchadas de terra. Ela sentia que todo o trabalho havia sido inútil, nesses dias, mas então as crianças cresceram. E mesmo com toda a roupa lavada chegando limpa, ela sentia falta de vê-los ali.
            Ela suspirava.
            Sem o marido.
            Sem os filhos.
            Ela percebeu que estava ficando velha.

            O pote permaneceu em cima da escrivaninha durante toda a semana entre o dia em que Marieta o levou para casa, ate o dia da viagem, que ela finalmente voltou a depositá-lo em seus braços, aconchegantemente, temerosa de que alguma coisa pudesse o ferir.
            Mas, durante a semana em que o pote ficara em sua casa ela mal pode encostar neste. Ela sequer conseguiu ficar no apartamento, incomodando-se, não com a presença do pote, mas a representação que ele havia adquirido em sua vida.
            Ela não era a preferida... E ainda assim, no final das contas, era ela quem tomara a responsabilidade, era ela que estivera ali, era ela quem restou, não teria merecido mais compaixão no passado? Afinal, ela não havia decepcionado ninguém, nem o pai, nem a mãe, nem o irmão, nem os amigos, ela havia cumprido tudo, ao ponto de desgastar-se, acabar-se, reduzir-se a uma centelha, sem a mesma alegria que um dia era parte de seu ser.
            E agora, com o pote sobre a escrivaninha, sobrava apenas dor, ressentimento, memória e a mesma ânsia que lhe revirava inteira. Sentia-se absolutamente sozinha.
            Quis ligar para Yann.
            Mas não conseguiu...
            Quis correr para fora do apartamento.
            E correu.

            Ele não sabia bem onde havia errado. Eram tantas as opções, e ele sabia, hoje, que fez todas as erradas. Isso o fazia ficar acordado durante a noite, e fazia com que ele sempre se sentisse culpado por não ter feito mais, por ter desistido tão cedo, e recomeçado tão tarde. Mas mesmo que pudesse fazer algo diferente, que alias, ele sempre teimava em pensar a respeito, nunca conseguia encontrar uma saída válida para tudo.
            O pai tivera câncer.
            Ele não poderia fazer nada a respeito disso.
            A irmã havia entrado em choque e depressão pela morte do pai.
            Ele não sabia o que fazer a respeito disso.
            A mãe havia ficado sozinha.
            Ele não conseguiu fazer nada a respeito disso.
            Ele havia quebrado, mais uma vez...
            E ainda agora, meses e anos depois de tudo, ainda sentia sob a tênue e fina camada da sanidade de seu ser, sua ética, moral e consciência quebradas, as vezes as pontas tencionavam em rasgar todo o tecido, em despedaçá-lo de novo, derrubá-lo ao chão. Entretanto, dessa vez ele tomava as precauções, ficava longe das coisas que ele sabia que poderiam acabar com ele. Eram as memórias antigas e mais adoráveis. Ele não abria os antigos livros de escola. Ele não ligava para os velhos amigos. Ele não tinha fotos em casa. Ele não tinha flores no jardim. Ele não voltava para casa.
            E mesmo assim, durante a noite, ele prometia a si mesmo que, quando finalmente recuperado, ele se levantaria daquele ninho de rato, e caminharia de volta para casa. Abraçaria a mãe, e pediria desculpas por tudo, faria com que todos os seus pecados fossem extirpados, que toda a dor fosse substituída. Ele abraçaria a irmã, e cuidaria dela, porque ela era pequena, frágil, inocente. Ele seria o orgulho do pai, ele faria tudo dar certo...
            Mas o tempo que levou para ele tentar se recuperar levou todos embora.
            E ele ficou sozinho.
            O ninho de rato teria de se tornar seu lar.

            Marieta se apaixonou várias vezes.
            Mas ela nunca conseguiu admitir isso. Então nunca conseguiu verdadeiramente se apaixonar, e amar puramente por amar... Isso resultaria no fato de que ela nunca vira a se casar, e sem casamento, quando a velhice se abater sobre ela, não haverá crianças para chorarem em seu leito...
            Ninguém para levá-la para casa após morte.
            Ninguém para lembrá-la.
            Isso ainda vai desencadear uma grande depressão, que aparecerá quando ela estiver próxima aos quarenta. E que vai resultar em mais de dez anos de analises psiquiátricas. Duas tentativas de suicídio. Um suicídio.
           
            Yann vai morrer de falência múltipla dos órgãos. Velho, tão velho que sua pele se enrugou sobre os ossos frágeis. Ele não vai ter a mesma rapidez dos tempos de juventude, nem o mesmo sorriso, ou a mesma memória, vai restar apenas os mesmo olhos, com uma sagacidade fora do normal, ainda que cheios de um ressentimento e cansaço em decorrência a toda a sua história.
            Ele vai se casar. Mas vai preferir não o tê-lo feito, eles viverão pouco tempo juntos, ela vai lhe dar uma linda menina, que eles batizarão de Nina. Sua esposa, Marie, vai morrer pouco depois disso. Acidente de carro.
            Ele vai se casar com ela pela fragilidade que a moça se apresenta, ela parece pequena, parece quebradiça, como uma rosa seca dentro de um livro. Ele vai, de inicio, tentar se manter longe dela, justamente pela sua apresentação, mas isso o encantará de tal forma que, eventualmente, ele cederá ao sorriso doce ao olhar meigo, a fala calma, e ao sentimento recíproco de admiração e carinho. O que dizer? Ela funcionava para ele.

            Yann pousou a mão sobre o ombro de Marieta, que acordou sobressaltada.
            - Vamos?
            E ela olhou o rosto dele.
            Parecia que não havia dormido. Sob os olhos determinados havia aquela camada de cansaço, as olheiras se tornando profundas, marcando o rosto de uma forma que parecia definitiva. A boca parecia um traço, fina, sem parecer melancólica, nem feliz, apenas um traçado reto, inexpressivamente forte, e terrivelmente definitiva na face. O cabelo estava bagunçado, apontando direções distintas e terrivelmente controversas...
            - Vamos – ela respondeu.
            Levantou-se. Mudou de roupa.
            Yann a esperou, já do lado de fora. O pote em mãos... Pela primeira vez.

            Toda a realidade pode parecer triste. Um fim, como um fim. Uma vida, como uma vida...
            Mas Yann, Marieta, Eu, Você, todos os demais, só temos isso, e agarrados nessa coisa que nem sempre pode parecer ou mesmo ser real, é, para cada um de nós, a única e verdadeiramente forma de existir como ser.
            Nossa única chance.
            Mas isso não importa. Nós nos esquecemos desse tipo de coisa.

            Yann foi na frente, ainda segurando o pote, ele o havia oferecido a Marieta, mas ela não queria mais carregá-lo, estaria sendo injusta se não deixasse o irmão levá-lo a seu destino final. Esse era o fardo do irmão. Ele deveria cumpri-lo.
            A colina era tão verde quanto fora da infância dos dois, quando o irmão ainda pequeno corria sem olhar para trás, sem se preocupar com a garotinha que sonhava em segui-lo. Pareciam tão distantes dessa época agora, ele não liderava mais nada, ela não o seguia, ele não corria, ela não gritava por ele, ele via ela, ela temia a ele, ele reconstruiu-se, ela se destruiria, ele percorreria um longo trajeto, ela o faria mais curto, ele seguiria em frente, ela sentia-se estagnada... Ele e ela. Ela e ele. Eram os dois de volta a infância, sem infância a se ver.
            Mas as colinas eram as mesmas. O céu ainda se abria azul sobre suas cabeças, seus cabelos ainda reviravam-se ao vento, que continuava a lhes sussurrar segredos, o cheiro era o de grama e terra, ainda havia laços sanguíneos entre eles, ainda havia tempo.
            Entretanto eles subiriam as colinas. E toda a miséria que sentiam e que os fazia ficar juntos passaria... E o tempo, que deveria juntá-los levaria ambos a caminhos e realidades diferentes.
            Esse seria um dos últimos dias que Yann veria Marieta viva. E um dos últimos que Marieta veria Yann, se não nas fotos que mantinha consigo, e na memória que sempre revirava e revivia.

            - Yann?
            - O que?
            - Eu estou com medo...
            - Do que?
            - Dos bichos estranhos que estão nos armários
            - Não tem nada nos armários, durma.
            Silencio.
            - Yann?
            - O que?
            - Eu estou com sede...

            Yann não apareceu no velório do pai.
Ele teve medo.           
Ele tinha medo de ser julgado pela própria família, porque de fato ele se julgava indigno de estar lá. Era o filho que deveria ser o prodígio, e que, no entanto, havia caído na desgraça... Era o suposto orgulho do pai, que agora era a descrença... Era o protetor, que havia se tornado somente o irresponsável... Era...
Era quem o pai gostaria que estivesse ali por ele.
Era quem o pai gostaria que estivesse ajudando a família.
Era quem a mãe precisava abraçar.
E mais que isso, era o único que conseguiria ajudar a irmã naquele momento.
Mas ele não sabia disso...
E ele não foi...

            - Alguma palavra?
            Yann perguntou.
            Mas Marieta apenas balançou a cabeça negativamente.
            Ele olhou o pote... Era só aquilo que havia restado? Era só aquilo?
            - Nós vamos sentir sua falta – ele disse.
            Mas ao invés de ‘nós’, ele quis dizer ‘eu’, e ao invés de ‘vamos sentir’ ele quis dizer ‘sinto’. Ele queria dizer que era culpa dele, que ele sentia saudades, que ele queria desesperadamente ajuda, ele queria redenção, queria um abraço, queria que ela passasse as mãos em seu cabelo, que dissesse que tudo daria certo, queria ter que pregar botões de novo, tocar musicas no piano, agradá-la, simplesmente pelo sorriso dela, queria que tudo voltasse a mesma simplicidade e veracidade que ele teve na infância, que ele sentia falta agora, que ele não encontrava mais.
            Marieta ao invés de dizer nada, queria dizer tudo. Queria saber porque não era a predileta, queria o abraço carinhoso, o sorriso maternal, o olhar doce pousado sobre ela, as perguntas calmas sempre atentas a sua vida, e ate mesmo a casual distração. Queria tê-la ao lado, só para tê-la ali, para lhe dizer coisas que provavelmente a deixariam furiosa, e para que, furiosas, elas brigassem, sem que isso nunca fosse afetar nada no relacionamento delas.
            Eles queriam muitas coisas.
            Mas tinham apenas um pote...
            Yann olhou para Marieta e lentamente virou-o.
            De lá de dentro as cinzas caíram, e antes mesmo de tocarem a grama o vento as recolheu em seus braços e a espalharam para todo o mundo.
            Sentiram-se pequenos e desprotegidos.
            Marieta começou a chorar, soluçando.
            Yann sentiu a garganta se fechar sobre as palavras, mas ele fez questão de dizê-las, para que o vento as carregassem também.
            - Adeus, mamãe.
            E esses pequenos seres humanos ficaram na colina.
            O resto do que foi o corpo da mãe, foi arrastado pelo vento.
            O restante virou...