- Você esta bem?
- Sim – ela respondeu naquele tom
monótono.
Ele não disse mais nada, deixaria as
coisas dessa forma, não por descaso, medo ou receio, mas mesmo assim por todas
essas coisas, como por nenhuma delas.
Ele havia dirigido por quatro horas,
atravessando grandes plantações, algumas vezes casas esparsas, que pareciam
construções perdidas na imensidão do mundo. Havia tanto tempo que não via
campos, havia ainda mais tempo que não via sua irmã, sentada ali ao lado.
Segurando o pote, segurando as lágrimas.
O céu acima deles se abria claro, e
mesmo isso lhe parecendo um ultraje, ainda que parecesse condizente com toda a
situação, era melhor dessa forma, essa infinidade azul calma, caindo como um
véu sobre as tristezas cinzentas que pairavam em seus olhos umedecidos pelos
últimos acontecimentos, recentes demais para não transbordarem delicadamente.
Yann havia visto Marieta limpar as lágrimas que escorriam eventualmente em seus
olhos, com aquela delicadeza e discrição, que se ele não a conhecesse jamais
teria notado. Esse era o tipo de coisa que ele sabia e reconhecia em sua irmã,
4 anos mais nova, e ainda assim tão decidida e dedicada.
Ele voltou os olhos para a estrada
de terra. Queria mentir, falar que logo chegariam, mais para retirar aquele
peso de seu coração, que insistia em abandonar a viagem o mais rápido possível,
do que para consolar a Marieta, que alias, parecia desejar o tardar, se
encolhendo todas as vezes que reconhecia parte do trajeto, calculando
mentalmente quanto lhe restava.
Mas sinceramente, não lhe restava
nada.
Ele correu toda a colina abaixo,
indo muito mais rápido do que ela poderia acompanhar, pelo simples prazer de
correr, e pelo desejo de se ver livre dela. Mas Marieta, ainda que pequena, e
fraca e frágil acompanhava Yann, gritando para que ele a esperasse.
Depois, com os anos a situação de
inverteria, quando ele ficasse perdido, ela já estaria correndo muito á frente;
quando ele a chamasse, ela estaria longe demais para ouvir, ou estaria correndo
para se ver livro dele também, mas isso é numa outra época, que nesse dia, eles
ainda nem imaginam acontecer.
Yann era magro, com os cabelos
lisos, naquele castanho claro que as crianças tem, as roupas lhe caiam no
corpo, que era apenas um cabide para estas. Ele descia sorrindo, chegando a
parte mais baixa da colina, e usando o impulso para continuar correndo, gostava
do vento no rosto, gostava da sensação de liberdade e a liberdade de gostar de
algo. Ali, Yann se sentia inteiro, e inteiramente ele mesmo, sem precisar usar
a mascara do irmão mais velho comportado, sem precisar ser o filho adorável, o
estudando dedicado, o orgulho do pai, o amor dos avós. Nada. Ali, Yann era apenas
Yann, puramente.
Mas Marieta vinha atrás, gritando
para que ele diminuísse, ela queria andar ao lado dele, ela queria a atenção
dele, mas ele queria deixar o mundo todo para trás. E ela gritava:
E ele nem sequer pensava em parar.
Ela queria perguntar se ele estava
bem, mas sabia que assim que abrisse a boca as palavras sairiam erradas, as
lágrimas despencariam, ele a veria chorar mais uma vez. Dessa vez ela não teria
como disfarçar.
Mas ela queria saber se ele estava
bem. Ali, ele parecia tão forte, o volante nas mãos, o olhar certo,
concentrado, focado... Marieta havia se esquecido do quão forte era seu irmão,
havia se esquecido que ela era fraca e frágil, e que, mesmo depois de construir
um futuro, ela ainda era um baralho de cartas, ela ainda era a mais suscetível
a cair e desmanchar.
Entretanto a reação seria igual a
perguntar se ele estava bem. Ela cairia, mais uma vez.
Ele não parecia perdido, triste sim,
cansado sim, mas não perdido. E ela, de tudo, o que mais lhe preenchia, ou
esvaziava, era justamente essa falta de direção, que a fazia se ver em uma
inação angustiante, ela estava para lá longe... Ela queria voltar para casa.
Yann voltou os olhos para ela,
levemente preocupado, mas não disse nada, afinal, Marieta voltou os olhos para
a janela.
- Mas o que? São três horas da
manhã!
- São? Bem, eu não sabia...
- Marieta, eu não estou bem.
- Eu não estou bem... Sério.
- Você andou bebendo de novo?
- Yann, por favor, tenha vergonha na
cara!
- Marieta, eu só tenho você...
- Você bebeu! De novo! O que quer
que eu faça!?
- Com o que? Eu não posso fazer você
ter escolhas melhores.
- Já falou com o pai, ou com a mãe?
- Você acha mesmo que o pai vai me
ajudar?
- Eu não posso decepcioná-la assim...
- Isso é verdade. Você já
decepcionou a todos nós, mude alguma coisa, Yann!
- Marieta eu preciso te ver.
- Por favor, eu preciso sair daqui.
- Saia, faça o que quiser. Pode pular
da ponte, pode sumir do país, pode dormir com os seus amigos, pode ir para o
inferno, mas não peça para me ver.
- Mas eu preciso de você.
- Mas eu não, e eu não quero ver
você depois de tudo aquilo.
- Aconteceu. Pare de me aborrecer.
- Nunca mais ligue para mim, Yann.
Ouviu? Nunca mais.
O carro andava numa velocidade
média, sem acelerar demais, nem tardar. E dentro do carro iam Marieta e Yann em
silencio, resumidos a o que ainda eram... Pequenos.
Marieta se apoiou na ponta dos pés
para vê-la costurar. Eram aqueles tecidos finos se transformando em um coelho.
A mãe sempre fazia coelhos, por alguma razão que talvez nem ela desconfiasse ou
entendesse.
Aquilo era mágico, porque, mesmo
tentando compreender como todo processo acontecia, Marieta apenas via panos
dobrando-se, uma linha pulando, formando pontos, como golfinhos costurando o
mar, e então vinha uma cabeça, um pé, uma figura inteira, uma composição
perfeita. Aquelas formas antes bidimensionais saiam de seu plano, tornavam-se
concretas. E ela amava isso.
Mas todas as vezes que Marieta se
pôs a tentar criar algo daquela maneira, tudo lhe saia errado, as figuras
tortas, pequenos monstros tristes saídos de uma criação incompleta, e
incompreensivelmente falha. E a pequenina decepcionava consigo mesma.
E ali se encontrava Yann, que
passando pela mãe parava uns minutos, e quando ela lhe oferecia a agulha, ou
lhe pedia ajuda, ele se sentava ao seu lado, as mãos muito mais habilidosas que
as de sua irmãzinha, ele fazia casas para botões sem dificuldade, e pregava-os
correspondentes, sem parecer se interessar por tal afazer, apenas tentando
agradar a mãe.
Marieta apenas olhava as próprias
mãos, decepcionada consigo mesma.
Ela segurava o pote com muita força.
Yann percebia, havia nela aquela ansiedade, como se ainda tivessem tempo de
fazer algo, como se, se eles optassem pelo caminho certo as coisas fossem
voltar, e o pote deixaria de existir. Provavelmente se isso acontecesse, eles
não estariam se falando, ela estaria longe, em algum lugar que ele desconhecia,
crescendo na carreira, que foi apenas o que lhe restou, e ele, bem sabia,
estaria no mesmo lugar que estivera nos últimos 5 anos; em casa, trabalhando
com textos e composições de piano, esquecendo-se de limpar as vidraças que
estavam constantemente sujas, esquecendo de recolher as cartas, e ainda assim
ele parecia bem, quase como se no lugar certo.
Ele imaginou o que aconteceria
depois daquele dia, mas já não havia nada em sua mente que pudesse guiá-lo,
havia errado tantas premissas, mais que isso, quebrado tantos princípios e leis
que, agora, as coisas eram indefinidas, borrões em sua vidraça, que ele não se
preocupava em limpar mais.
Mas ela se preocuparia, ela estava
sem rumo, havia se pautado demais em todas as regras, e essas acabaram
arrastando-a para baixo, afogando-a no desespero. A vida havia dado uma
guinada, jogando por de baixo do pano, tirando cartas dos oponentes, e depois
de ganhar uma quantia enorme das fichas, continuava ali, a sorrir
sorrateiramente, mas Marieta não sabia trapacear, e iria cair se continuasse
assim.
Yann suspirou. Por que ela não
poderia enfrentar as coisas de uma forma melhor? Entretanto, pensar dessa forma
era uma maldade, ela estava fazendo seu melhor, segurando as pontas, tentando
não quebrar. Ele já era quebrado, farelos a mais, farelos a menos, não mudavam
o fato de que não voltaria a ser o que deveria ser e ter sido.
O pai sempre levava Marieta para
passear, ela era sua garotinha, e por ser alem de menina, a caçula, havia ali,
uma adoração que retirava as responsabilidades dela, dando-a uma liberdade
sempre ampla demais para a idade, e uma redenção mais rápida aos seus crimes.
Ela nunca ficava de castigo, não importava o quanto estivesse errada, ou o que
tivesse quebrado.
Depositava então a responsabilidade
no irmão mais velho, não só por si mesmo, mas por sua pequena, para ele o irmão
deveria proteger a irmã, livrá-la dos problemas, resgatá-la de perigos, lutar
por suas escolhas, auxiliá-la em quaisquer que fossem seus desejos, era isso
que ele acreditava. E sob o pequeno Yann, já havia a responsabilidade por si e
por Marieta.
A mãe retirava um pouco desse peso
das costas do filho, de certa forma porque via a ação do pai dos dois, em
partes porque Yann parecia brilhar a seus olhos de uma forma especial. Ela,
inclusive lhe diria isso todos as noites, mas é estranho, trágico e também
engraçado que, por mais que ela lhe dissesse, ele não chegaria a acreditar
realmente naquilo, sendo ou não uma verdade.
A estrada seguia calma. Agora
estavam tão perto, mas tão perto que Marieta quis brecar o carro, quis segurar
o pote com força e sair correndo, mas não havia para onde correr ali, eram só
campos, e Yann sempre correria mais rápido. Ele estava correndo agora, e ela
queria que ele parasse, que ele segurasse sua mão e a trouxesse de volta para
casa.
- Yann, poderia tocar novamente
aquela música que eu gosto?
E o garotinho debruçava-se sobre o
piano, segurando o livro de partituras da mãe, que ela desistira ainda quando
pequena, acreditando não ter talento para a coisa, enquanto seu primogênito
parecia ter nascido com aquele dom, que o tornava especial e, mais que
especial, o tornava absolutamente distinto de todos os demais. Ela se orgulhava
dele, não por conseguir algo que ela não havia conseguido, mas por conquistar
algo por si.
E ele tocava... Com toda a alma e
felicidade que poderia existir dentro de si.
Ainda naquele ano ele começaria a
escrever suas próprias partituras, e depois disso nunca mais voltaria aos
livros, não por não admirá-los, mas por considerar a leitura das notas tediosa,
tendenciosa, e terrivelmente inibidora. Yann passaria a correr pelo piano a seu
modo, e com isso ele ganharia espaço na vida.
Era justamente o piano que o
ajudaria quando tudo caísse, inclusive o orgulho do pai, o carinho da mãe, o
apoio da irmã.
- Eu realmente amo quando você toca
essa música – a mãe disse.
O garotinho se encheu de orgulho e
felicidade.
- Só mais essas colinas e vamos
chegar – ele disse.
Não havia sido a intenção dele falar
aquilo em voz alta, mas depois de ter repetido várias vezes dentro de sua
mente, e ainda assim nada daquilo tomasse uma consistência satisfatória, ele
acabou deixando as palavras saírem lentamente por seus lábios, sem uma ênfase,
ou destaque, apenas um sopro leve, que, no entanto, ressoaram dentro da cabeça
da irmã com um peso infinitamente grande. Ele só percebeu o erro quando viu os
olhos dela brilhares por um momento, e as mãos apertarem o pote, tornando os
nós dos dedos brancos devido à força exagerada.
Uma brisa leve acariciou o carro e
os rostos dos irmãos, tentando lhes levar as lágrimas, sem sucesso.
Marieta disse em resposta ao
sussurro.
Medo... Medo? E Yann não compreendeu
o que ela queria dizer com isso. Eles apenas fariam o que deveriam fazer e
iriam embora, não havia perigo, não havia risco, nem monstros, eram apenas
eles, em uma tarde ensolarada, e...
Mas era só isso. Só isso e nada
mais.
Ele havia caído nas garrafas. Mas
como isso havia acontecido ele mesmo não sabia dizer. O que foi que ele quis
esquecer quando começou a beber? Havia funcionado tão bem que ele não tinha
mais idéia? Ou estava se enganando de novo? É, ele gostava de se enganar,
tornava as coisas um pouco mais coloridas, e então, quando olhava sobriamente o
mundo, tudo lhe parecia tão cinza, que voltava a sua realidade. Falsa.
Individualizada. Egoísta.
Yann estava a praticamente 1 ano e
meio preso dentro de si, ia e vinha do bar para o apartamento. Não conseguia
tocar piano, não estava mais desenhando, nem escrevendo, sentia-se vazio...
Ele não conseguia falar com o pai,
sabia que este o acharia um fracassado.
Ele não conseguia falar com a mãe,
porque isso lhe quebraria o coração...
Ele não conseguia falar com a irmã,
porque ela o abandonou.
E Yann via-se sozinho. Tão sozinho
que se sentia pequeno, e sendo pequeno o mundo inteiro o engolia. Ele queria
gritar, mas porque sentia-se tão fraco para algo tão instintivo? Porque havia
essa letargia em seu ser?
Havia dias que ele simplesmente não
conseguia levantar da cama, e deitado, perdido entre um mar de cobertores, ele
naufragava e ressurgia, para voltar a afundar, em um ciclo continuo de dor e de
pesadelos. Tudo tinha uma aparência monocromática, em pastel e cinza, dentro do
apartamento, e mesmo a rua, olhada pelas janelas embasadas, parecia melancólica
e depressiva.
Ele então fechava os olhos, tentava
esquecer o mundo.
No andar de baixo o piano fazia
silencio, observando seu dono nas sombras.
Perguntou intrigado. Embora ele
soubesse que o silencio era, se não mais seguro, ao menos mais confortável.
E Marieta não quis responder.
- Sim, eu estou indo viajar amanhã –
ela disse rapidamente ao telefone.
As bagagens estavam arrumadas. Eram
duas malas, uma de mão, composta por documentos, dinheiro, e uma quantidade um
pouco exagerada de livros, a outra era feita de roupas, muitas e variadas, para
que, diante de qualquer situação, ela pudesse se ver preparada.
- Não, mãe – ela respondeu um pouco
ríspida demais para a situação.
Pegou a nécessaire, colocou uma pasta
de dente nova, e a escova.
- Sim, estou levando agasalho...
- Não, minha intenção não é ficar
indo em bares...
Sentou-se na cama, retirando o
celular do ombro, para segurá-lo devidamente.
- Eu vou sair, mas a minha intenção
não é... – pausa – mãe, você sabe que eu estou indo a trabalho, eu não pretendo
ficar saindo por ai... – pausa – sei, como se esses contos de fada fossem
verdade – pausa – mãe... – pausa.
E Marieta observou-se no espelho,
passando os dedos pelos cabelos castanhos, levemente ondulados.
- Não, não acredito nisso.
- Mãe, isso tudo é falso – e havia
uma acidez em suas palavras – você sabe que eu vou terminar sozinha. Agora –
ela interrompeu propositalmente a mãe – eu preciso ir, ainda tenho que tomar
banho, se não chego atrasada – pausa – também te amo, obrigada, eu ligo assim
que voltar.
Jogou-se na cama. Mas ela já havia
tomado banho.
Sentiu-se triste. Quis chorar. Quis
alguém para lhe apertar a mão, crianças para correr ao seu redor... Mas estava
sozinha.
A mãe teria que contar apenas com
Yann para ter netos.
Mas, qual era o problema, ela sempre
havia contado mais com Yann...
Marieta ficou em silencio. Travou os
dentes.
Yann deixou que ela ficasse assim,
não perguntou mais nada.
O vento voltou para lhes afagar. Mas
não conseguiu fazê-los sorrir, nem mesmo por um pequeno momento.
Já era possível avistar a pequena
propriedade que moraram quando pequenos, ela ainda se mantinha ali, em um
branco sujo pela terra carregada pelo vento e lavado pela chuva, dava aquele ar
de rusticidade que toda a infância daqueles dois. O sol parecia brilhar com
mais força, com mais intensidade, as cores tinham gosto de casa, a casa tinha
cor de vida, a vida parecia certa, e ainda assim tão errada.
Quando Marieta viu a casa ela perdeu
o ar.
Ele brincava com cavalinhos feitos
de pau, frutos verdes e palitos de fósforos...
Ele brincava na terra, e sua pequena
fazenda era só mais uma em toda a extensão de fazendas que existiam ao seu
redor, e ainda assim ele se sentia fazendo algo único.
Aqueles bichinhos, que ele nomeava,
se apagava, guardava cuidadosamente em seu quarto, sempre cheios de terra e
lama, eventualmente apodreciam, as perninhas de palitos ficavam bambas, a
cabeça pendia, o corpo desfigurava-se. E Yann os assistia morrer...
E, no entanto, era aquele carinho e
apego, de uma criança frágil e sem amigos em uma realidade frágil e solitária,
que fazia com que ele simplesmente não conseguisse jogar fora as coisas com
facilidade a partir do momento que ele admitia para si mesmo a existência desses
personagens. Ele escondia esse fato de todos, não deixava que percebessem esse
seu afeto por seus pequenos animais de fazenda, que eram frutas, não deixava
nem mesmo que alguém o visse brincar com eles.
Yann conversava avidamente com todos
os seus bichinhos. Eles discutiam sobre o mundo, que para eles era uma
realidade fantasiosa, eles falavam sobre si mesmos, tinham histórias, amigos,
família, memórias, medos, nomes, desejos, anseios...
Mas essas frutas secavam,
apodreciam...
E o garotinho, que geralmente brincava
sozinho corria colina abaixo com o moribundo nos braços. Corria tão rápido que
despistava qualquer um que tentasse se aproximar, fugia do mundo inteiro, e lá
longe, em uma colina que foi marcada por ele mesmo com uma pedra, encontrava-se
o cemitério...
Ele se sentava junto de seu
bichinho, eles conversavam, ele lhe fazia uma cova, o coração apertado em mãos,
e o enterrava junto de uma flor que colhia no caminho. Só deixava o lugar ao
entardecer, quando já não podia mais ficar ali, e então voltava para casa
correndo, em disparada, sentindo o ar queimar o pulmão, repuxar a pele,
agarrar-lhe os cabelos, sussurrar em seu ouvido.
Quando chegava em casa colocava um
sorriso no rosto, independentemente de como estivesse se sentindo. Ninguém nem desconfiava.
Yann teria lidado com a morte muito
mais vezes do que as crianças estão acostumadas, e ele compreenderia melhor
seus mecanismos, tristeza, aceitação, medo, ansiedade, ressentimento,
melancolia, muito melhor do que a maior parte das pessoas.
Yann assistiu suas criações
morrerem, ele se sentia muitas vezes abandonado.
Olhar a casa ao longe não lhe trouxe
aquela sensação de familiaridade que fez Marieta ficar estática. Foi apenas aquele
reconhecimento vago, aquela memória incomodando ao fundo, remexendo-se sem sair
de seu canto. Yann não se sentia inspirado ou incomodado, era apenas a casa em
que cresceu, mas já não era criança.
Era apenas o lugar onde nasceu, mas
não havia mais raízes que o prendessem a qualquer lugar...
Era apenas o lugar onde viveram, mas
haviam tantos partido...
Agora a casa, era apenas a casa. E a
memória, memória.
Ela quis desligar assim que ouviu a
voz ao telefone.
- Marieta é importante! – ele disse
com urgência.
Ela acabou respondendo. Não porque
acreditasse que ele merecia qualquer uma de suas palavras, ou mesmo seu tempo.
Mas havia ali aquela ansiedade, uma necessidade clara de lhe falar algo...
Mesmo assim isso não teria sido
suficiente, ou mesmo relevante. Yann havia ligado diversas vezes pedindo
socorro, havia caído na máquina de recados, e as vezes ouvia-o chorar baixinho,
pedindo perdão, falando que não estava bem, mas isso fazia pelo menos oito
meses, ele havia desaparecido completamente por esse tempo todo, nenhum recado,
nenhuma palavras, nem mesmo o silencio ao telefone... Nada.
E ali estava ele ligando novamente.
Mas havia algo de diferente dessa
vez, uma nota de sobriedade em sua voz e atitude, uma sobriedade que a deixou
preocupada. Não que ela não estivesse feliz pelo irmão mais velho, que foi na
infância toda a sua referencia de vida, que acabou com seus sonhos, esse herói
que acabou caindo. Ela estava feliz por ele, mais feliz do que imaginou que
ficaria, mas... Ainda assim, aquela sobriedade...
E juntamente com a coesão de suas
palavras havia aquele tom sério, de perigo, de urgência.
E isso a deixou ainda mais
preocupada. As palavras que se seguiriam acabariam com ela. Elas também haviam acabado
com ele...
- Não sei como te falar, mas...
Em seu apartamento, Marieta escutou
atentamente a voz do irmão, as lágrimas brotaram dos olhos antes dele terminar
de explicar a situação, pela primeira vez em anos, sentia-se novamente pequena
frágil, fraca, insuficientemente prática para lidar com a situação. Ela se viu
cair no chão, as lagrimas correndo, os soluços fazendo o corpo se curvar, arremessando-o
sobre si mesmo, curvando-se em movimentos esparsos, era seu castelo de cartas a
desabar.
Pela primeira vez em anos, ela
queria que Yann aparecesse.
Mas ela não conseguia falar nada.
Do outro lado o irmão escutava.
Nenhum dos dois tinham palavras para
consolar e destruir a dor.
Yann estacionou o carro perto da
casa.
O sol estava se ponto, deitando-se
lentamente por de trás das colinas verdes.
Ele saiu do carro antes dela.
Demorou-se alguns segundo olhando o sol, mas não se deixou ficar por muito
tempo, e com passos calmos caminhou ate a porta de madeira, gasta, antiga, e
tão familiar, que era a entrada. O molho de chaves o desafiou um pouco, mas
nada como a memória reavivada pelo mesmo ambiente para fazer com que as
lembranças surgissem, e a chave levemente avermelhada, semi-oxidada, grande e
pesada, correspondente dessa porta de madeira, também bruta, foi encontrada sem
muitas dificuldades.
Ao entrar o cheiro de pó o invadiu,
e pela primeira vez desde que havia iniciado a viagem sentiu-se realmente
triste. Aquilo não era todo o passado deles morrendo também? Virando pó?...
- É sim, Yann – o pai disse – ela é
muito pequena, e é por isso que temos que cuidar dela.
- Papai, qual vai ser o nome dela?
- Precisamos de um nome forte, e ao
mesmo tempo doce – ele respondeu olhando ternamente para o pequeno bebe em seu
colo.
A criança ainda tinha o rosto
amassado, olhos fechados, bochechas gordinhas, uma pele levemente rosada. Era
tão pequenina, tão delicada, que por vezes o pai se perdia na expressão doce do
bebe, e ficava apenas observando-a.
Mas nenhum dos nomes foi aprovado.
A mãe escolheu Marieta, por causa de
um livro infantil. Contava a história de uma gatinha, que era pequena demais
para a idade, e que queria ser grande. O pai não gostava muito do nome, foi a
insistência da mãe que o fez aceitar. Mas ela acertou perfeitamente, a criança,
assim como a gatinha, tinha essa ânsia por crescer, por se tornar grande, e
assim que conseguisse a independência, ela subiria rapidamente na vida, tão
rápido que sua família acreditaria que a perdeu.
Assim como acreditavam ter perdido o
primogênito.
Marieta ficou mais alguns minutos no
carro. A respiração acelerada, o coração disparado. Havia quantos anos que
havia deixado a casa? Mais de cinco? Mais de dez? Era tanto tempo assim? Ou
tudo não se passava de uma impressão errada sobre as datas e lugares que
esteve? Mas ela acreditava ter ido embora daquela casa muito mais cedo, quando
ainda não havia se mudado, e, no entanto, passava a maior parte do tempo
sonhando que estava longe dali.
Agora, em casa novamente, ela sentia
a mesma brisa e o conforto da familiaridade das lembranças e memórias, ela
poderia se deixar embalar nesses sentimentos, e haveria então apenas o conforto
de voltar as origens. Mas havia um pote em suas mãos, cujo destino era aquela
mesma propriedade, cuja existência era fruto da morte, embalado na dor, feito
de tempo e de memórias.
Se não houvesse o pote, a volta
seria puramente prazerosa.
Mas ela sabia, claramente que, se
não tivesse o pote, nada a faria voltar para casa. Nada a faria ver o irmão
mais velho. Nada a faria desviar-se de sua rota.
Entretanto, ali, não havia mais
rota, caminho certo, caminho errado. Estava novamente nas colinas, descendo o
mais rápido que seus pezinhos conseguiam, ela não sabia os caminhos e as
trilhas, e devia apenas basear-se na direção que Yann corria. Sua única
referencia.
Ela quis rir. Não havia crescido
nada... Não é mesmo?
Mas não tinha resposta. O pai, que
havia lhe protegido, havia morrido a muito tempo atrás. A mãe seguiu o mesmo
caminho...
Levantou-se do carro, andando
lentamente em direção a casa. Sentindo o tempo voltar sob seus passos.
Havia um caderno onde ele desenhou
todas as coisas que morriam. Eram seus animais frutas, o peixinho da irmã, as
flores da mãe...
Esse caderno havia sido guardado
cuidadosamente entre a parede e a cabeceira maciça da cama. Havia sido tão bem
guardado que ainda continuava ali, sem que ninguém o tivesse retirado, ou mesmo
desconfiado de sua existência. Era antigo, tinha parte da capa dura amassada,
uma queda errada causara o dano, tinha um tom marrom azulado, como se a sua cor
original tivesse sido azul escuro, e o tempo tivesse deitado suas garras sobre
esta, arrastando-a, tentando esgotá-la, destruí-la, acabou assim, um marrom com
resquícios de outro tempo, outra época.
Não se lembrava de como o caderno
lhe caiu em mãos, mas lembrava-se que os lápis de cor eram parte do material
escolar, e, adquiridos no inicio do ano, junto de uma caderneta e mais alguns
utensílios, sendo que parte destes nunca seriam utilizados, e deixados no fundo
da pequena bolsa, ou do estojo, permaneceriam timidamente calados. Mas os lápis
eram gritantes, suas cores vivas fantasiavam a mente do garoto, e Yann se viu
maravilhado.
Entretanto, nessa época, onde o
lápis e o caderno de memórias ainda eram relíquias indispensáveis para a sua
vida, o pequenino Yann não sabia, acreditava, ou conseguia imaginar que, antes
de partir da casa, desenharia a si próprio, depois o pai... Depois...
Mas essa época ainda é de sonhos, e
ele desenhava seus pequenos animais frutas que haviam apodrecido, não por um
sentimento tétrico, de miséria e solidão, mas uma continuidade a memória, que
ali os fazia continuar vivos e reais.
Pobre Yann, parecia tão valente a
irmã, tão bondoso a mãe, tão correto ao pai. E ele era apenas um garotinho, que
tinha medo de esquecer e ser esquecido.
Marieta entrou na casa com receio.
A resposta veio de outro cômodo. Ele
parecia estar inspecionando o lugar, certificando-se que nenhum animal selvagem
havia adentrado a casa, e que era seguro, então, passar a noite por ali.
E as palavras de Marieta sumiram.
Ela não conseguiu terminar a frase
sem desmanchar em lágrimas.
- Esta tarde, você vai voltar para
casa?
O rapaz perguntou ao outro, mas o
outro permaneceu em silencio.
Ele tinha realmente que responder?
- Yann, porra, fala logo – reclamou,
sem realmente se sentir bravo.
- Porra Jean, vai embora logo! ...
Mas ele se demorou alguns segundo,
observando o amigo no balcão do bar, sem se atrever a falar mais nada, sem
saber o que dizer. Por fim abaixou os olhos, arrumou o casaco sobre os ombros
largos, saiu.
Sentaram-se na mesa da cozinha,
velha, gasta. Havia ainda as marcas de xícaras quentes que haviam sido
colocadas quando ainda eram pequenos, marcando a madeira, pelo que parecia,
eternamente. Havia partes lascadas, marcas de canetas e tinta, um dos
banquinhos ainda estava bambo. A disposição parecia a mesma, e ainda assim, sem
que nada tivesse realmente mudado, parecia um lugar completamente novo, como
se, nenhum daqueles dois jamais estivesse estado naquela casa campestre.
Mas foi ali que viveram, e as marcas
de suas infâncias estavam firmemente cravadas em todos os utensílios deixados
para trás, seja por eles mesmos, seja pelos pais, ou melhor, pela mãe.
O pote foi cuidadosamente colocado
em cima da mesa, as mãos de Marieta ainda ao seu redor. Nenhum dos dois parecia
com ânimo, ou mesmo com palavras para iniciar e manter uma conversa, mas ainda
cedo demais para dormirem, naquela casa que agora lhes parecia tão infamiliar,
e era tarde demais para voltarem.
Yann disse, sem esperar resposta.
Marieta assentiu, sem se certificar
de que o irmão havia visto.
Marieta
dormiu de luz acessa desde os quatro, ate os vinte anos de idade.
Depois
simplesmente não conseguiu mais dormir sem que o quarto estivesse em absoluta
escuridão.
O
motivo de dormir de luz acessa era um medo de que algo estivesse a espreita,
coisa que, em geral, as crianças acabam criando, e levando consigo pela vida.
O
motivo de dormir de luz apagada era um misto de que, dessa vez ela queria que
algo estivesse a espreita, e que não existisse um dia seguinte, em meio ao fato
de que ela não queria mais saber onde estava, como era sua vida, como era sua
casa. A luz acessa mostrava os contornos dos móveis, antigos, ou, quando novos,
baratos, parte de uma transição da infância acolhedora a um mundo terrivelmente
hostil, que se mostraria mais cínico e desolado do que ela mesma esperava
encontrar.
Deitada
em sua cama, ela também via os cadernos em cima da mesa, ainda havia tanto o
que fazer, mas ela não poderia desistir agora. As expectativas que um dia
haviam sido do irmão mais velho recaíram sobre ela quando ele se viu cair, era
sua vez de brilhar, de ser a estrela da família, mas nela não residia aquele
talento inato que parecia brotar do irmão, voltava-se então a dedicação
extrema, passava horas sobre a escrivaninha, debruçando-se sobre livros e
estudos, teorias e teóricos...
Quando
voltava a casa da infância, visitando os pais, o que acontecia cada vez mais
raramente, ela se mostrava orgulhosa de si, na expectativa de que seus pais
tivessem orgulho dela, mas não havia uma demonstração mais afobada, nem mais
forte de tal, não porque eles não sentiam orgulho, mas porque sempre sentiam orgulho
dela. Marieta ressentia-se com isso, voltava para casa apenas para debruçar-se
sobre os livros mais uma vez.
-
Eu acho que vou dormir – Marieta anunciou.
Yann
assentiu, tomando um longo gole do café, amargo, forte, necessário.
Ela
se dirigiu a seu quarto, a cama ainda estava onde ela a deixara, encostada na
parede, frente a porta, como um posto de vigia. Deitou-se sem trocar de roupa,
não tinha ânimo para remexer na bolsa, feita as pressas por ter protelado toda
aquela viagem, não tinha ânimo para ver sua própria desorganização, afinal,
isso era o indicio de que algo realmente estava errado, de que estava fora de
quem ela realmente era.
Do
lugar onde estava podia ver a porta do quarto dos pais.
Quando
pequena a mãe ficava horas a costurar em uma poltrona colocada no canto do
quarto, cuja visão dava justamente para o quarto da filha. Marieta via a mãe
mexer a agulha e panos, ate finalmente cair no sono, isso a deixava calma.
Naquela época as coisas pareciam tão corretamente colocadas em seus lugares...
Mas
ali, décadas depois, lá estava a filha, deitada no mesmo quarto, a porta dos
pais fechada, sem pais para se postarem por detrás da madeira escura que
separava o corredor do cômodo.
E
agora as coisas pareciam terrivelmente erradas.
Entretanto,
por mais estranho que pareça, a filha não tinha problemas mais para cair no
sono, e mesmo sem a mãe para observar, ela caiu no sono, embalada em uma
melancolia e roupas amassadas.
-
Realmente, essas músicas são muito boas
-
Entraremos em contanto Sr...
Em
duas semanas ele tinha um contrato em mãos, dinheiro na conta,
responsabilidades de um adulto, orgulho de uma criança, e um mundo inteiramente
novo a espera.
O
café estava amargo demais, mesmo para ele, que passava a maior parte do tempo
tomando café sem açúcar.
Havia
desenvolvido aquela mania, não sabia dizer se era porque lembrava-lhe o pai, e,
para que ele não desaparecesse completamente de sua vida, como ele sentia que
desapareceu, pegou o habito, segurando-o firmemente, como um garotinho
assustado.
Seja
forte. Era isso que seu pai sempre dizia? Pare de chorar. Faça alguma coisa.
Pare de reclamar. Você não é a vitima. Você não é mais uma criança.
E o garotinho tinha apenas nove
anos.
- Papai, o que você acha que vai
acontece?
Essa era uma pergunta freqüente de
Marieta. Talvez porque a forma lenta com que o desenrolar de sua infância
discorria a fizesse acreditar que em algum momento isso tudo seria levado
embora, mas se ela realmente tinha consciência disso, é algo que, se ela teve,
esqueceu, e se não teve, não há o que lembrar.
O pai demorava para responder. Em
partes porque ele não tinha uma boa resposta, e para a pequena garotinha, ele
queria ter as respostas certas, parecer sábio e inteligente, alguém com que ela
sempre pudesse buscar respostas. Em partes porque aquela pergunta era algo que
ele também desejava a resposta, e sentia-se inapto a respondê-la.
Ele dizia sério, como se fosse sobre
isso que ela perguntou.
E a filha ria, aquele riso leve e
comprido que as crianças tem, falando em seguida:
- Nãããão papai, eu quero saber o que
vai acontecer no futuro.
E as palavras saiam com aquela
ênfase que as crianças tem o costume de dar para as coisas, como se os adultos
realmente não compreendessem nada de que elas estiveram falando.
- Vão acontecer as coisas que você
desejar acontecer – o pai dizia passando a mão nos cabelos da filha, que
sorria.
E a filha nunca quis isso.
Marieta sonhou com golfinhos.
Eles pulavam, costurando o mar.
Havia uma grande tempestade de pó.
Não havia jangadas, nem barcos, nem
nada.
E ainda assim, ela não quis acordar.
Mas no meio da noite seus olhos se
abririam em desespero. Ela se sentiria pequena. Ela seria pequena de novo.
Estaria escuro. Silencioso.
E Marieta iria desejar ter alguma
luz acessa.
Yann observou o pote. Ele ainda
estava sentado na mesa da cozinha.
Era a primeira vez que via o pote
realmente, sem que ele estivesse semi oculto por Marieta, seu novo apêndice.
Era delicado, com desenhos finos de
flores. O tom da louça era de um bege, e as flores de um rosa pálido, assim
como o marrom claro dos galhos e os três tons de verde das folhas. Havia uma
certa tristeza na imagem, mas Yann achou adequada, ou ao menos muito mais
adequada do que o lindo céu aberto e as cores brilhantes que teve de lidar
durante todo o percurso.
Aquele embotamento pálido bege
realmente fazia mais sentido.
Todos os desenhos de Yann sobre
aqueles que haviam morrido eram feitos em folhas de papel bege. Aquela cor o
consolava. Parecia simplesmente... Certa. Não era como o branco, berrante,
exigindo atenção, exigindo massa, densidade, volume, sobre si, o bege era
discreto, queria apenas segurar a memória, abraçá-la docemente, mantê-la
viva...
O bege realmente era uma boa cor.
Yann quis encostar no pote. Mas por
algum motivo sentiu-se como um traidor ao estender a mão para fazê-lo. E
recolheu a mão lentamente.
Havia passado tanto tempo longe...
Ele olhou atentamente a cozinha.
Havia decepcionado tanto, todos
eles...
A infância toda estava ali.
Era tarde de mais para se redimir,
ele sabia...
Tomou mais um gole de café.
E o garotinho chorou sozinho.
E o garoto correu para junto da
irmãzinha.
Ela apontou o por do sol.
E os dois ficaram sentados entre as
flores observando o sol descer lentamente.
E mesmo anos depois disso, sem que
nenhum deles conversasse sobre aquela tarde, nenhum deles conseguiria esquecer
as cores, nem a imagem, os sons, os cheiros e a sensação de sentarem-se para
ver o por do sol.
Essa seria a imagem que guardariam
um do outro pelo resto de suas vidas.
Ela começou a falar, mas as lágrimas
começaram a correr, a garganta travou.
Marieta não conseguiu responder,
estava tentando não começar a chorar novamente.
- Semana que vem – Yann disse, sem
olhar diretamente para o rosto da irmã – faça uma mala, nada chique, não vai
ser necessário.
- Não vai me... - mas não conseguiu
terminar.
- Não, você provavelmente
cancelaria.
Ele começou a se afastar.
E ele voltou os olhos sem parar,
vendo a irmã apontar para o pote.
- Não, se ficar comigo eu
provavelmente vou quebrar, e você vai me matar por isso
Mas ele não completou que ele se
mataria por isso.
Ela ficou parada ali, observando o
irmão mais velho se afastar, sentindo raiva. As lágrimas começavam a brotar
novamente, e ela, com a cara emburrada, o nariz vermelho e os olhos inchados
lançou os braços ao redor do pote, em uma instintiva vontade de protegê-lo.
Percebeu então que estava chorando.
Lá do lado de fora, um homem
vestindo um sobretudo havia parado em uma rua vazia, ele havia caminhado com
muita pressa para lá, com uma urgência que não sentia a anos. Apoiou-se na
parede de tijolos, gasta. Chorou. E como ele odiava chorar...
- Yann, você não pode desmoronar
agora.
A noite era calma e quente.
Mas a brisa, leve e constante,
impedia que o ar ficasse abafado.
Muitas crianças dormiam. Uma mãe
fazia seu chá, conversando com o marido. Um ursinho de pelúcia caiu no chão. Um
cão fungava no tapete da cozinha. Um gato andava no muro, silenciosamente. Um
pote parecia respirar. Uma criança lia pela primeira vez um livro de histórias
a mãe. Um pai dava boa noite aos filhos. Uma estudante calculava funções
trigonométricas. Um escritor relia seus contos. Uma moça dormia curvada sobre si.
Um avô escutava opera na vitrola. Um rapaz escovava os dentes. Um homem tomava
café.
E a noite transcorria calma.
- O que você quer ser quando
crescer? – o pai perguntava a sua menina.
E ela, pequena, sentada em seu colo,
observando seus olhos atentamente, tentava encontrar algo que o fizesse
orgulhoso.
Ela diria quase todas as coisas ao
pai. Ela seria presidenta, dentista, médica, empresária, astronauta, advogada,
cientista, criaria ate uma nova profissão, para que pudesse sempre fazer algo
novo.
E o pai ria, orgulhoso da
criatividade e imaginação da filha.
Mas a pequena simplesmente não sabia
o que ser, se não a predileta do pai, se não a caçula, que todos ajudavam em
tudo o que lhe causava problema, se não a mais frágil. Entretanto, ela ainda não
sabia que as coisas seriam assim. E dentro de alguns anos ela teria que se
agarrar com todas as forças em alguma coisa, que acabou sendo seu trabalho, uma
vez que o irmão que deveria ser o modelo caiu, o pai morreu. A mãe já tinha seu
predileto...
Na infância ela pensou em ser
absolutamente tudo.
Mas quando a realidade realmente
despertou, ela percebeu que o que quer que fosse ser teria de gastar toda sua
energia, tempo e disposição, porque ela precisava de um apoio que fosse firme o
suficiente para substituir tudo o que caiu, ou ela cairia também.
A primeira música que Yann escreveu
não tinha nome, mas era obvio para quem ele a havia escrito. E a mãe ficava
toda orgulhosa disso.
Depois passou a repetir músicas para
cada um deles, para seus animais frutas. Eventualmente escreveria para alguma
garota, mas nunca com o compromisso de lhe dar-lhe, assim, quando terminassem,
a música não teria o gosto delas.
Mas todas que ele fez na infância
tinham gosto de seus personagens. As notas calmas e controladas da música da
mãe, as agudas da irmã, a rapidez e a força do pai, eles estavam ali. Assim,
quando a bebida tomou conta da vida de Yann, e ele se perdeu pelas ruas, pelos
bares e por casas e construções desconhecidas, quando conseguia voltar ao
pequeno flat alugado, onde ainda havia um colchão e um piano de gaveta gasto e
antigo, ele se sentava ali, e tocava todas essas melodias esquecidas.
E então queria voltar para casa.
E tinha certeza de que não o
aceitariam.
- Sim... – ela parecia
desconfortável ao telefone.
Nessa época Yann estava fazendo
bastante sucesso, havia a alguns anos saído de casa, brigado com os pais. Ele
já bebia de forma alucinada, mas nada como viria a beber dali a alguns meses.
Marieta já se sentia desconfortável com a atitude do irmão, que ela esperava
que fosse seu exemplo.
Mas ele havia largado a faculdade de
música. Bebia. Ia em festas. Acabava preso as vezes... Ela não o reconhecia, e
ainda assim tinha que conversar com aquele estranho ao telefone, contando-lhe
algo, que não só era difícil, como era pessoal, e ele ainda assim usava aquele
tom de voz impertinente e esnobe.
Ela ainda não havia se tornado dura.
Mas isso mudaria dali uns meses.
E ele esperou. Sem surpresa. Quase
irritando-se.
Ate que ele ouviu a irmã chorar do
outro lado da linha.
E ela reconheceu a preocupação de
irmão mais velho, de responsável, de protetor.
- Ah, meu Deus Yann... Ele tem
câncer!
E ele se engasgou com uma palavra
que não usava á anos. Papai.
A mãe pendurava todos os lençóis em
varais que se estendiam entre as arvores. E era só estarem todos pendurados que
Yann e Marieta corriam para lá, para passar por entre eles.
Os dias de verão eram quentes, e o
sol radiante, acima da cabeça das duas crianças, teimava em fazer a terra
arder. E passando por entre os lençóis, que ainda estavam molhados, eles riam.
A brisa batendo. Os lençóis passando pelas crianças. O riso enchendo o ar
quente de verão.
Marieta se sentia como se estivesse
dentro de nuvens. Yann se imaginava passando por ondas do mar.
A mãe desaprovava isso. Eles sujavam
as roupas que haviam acabado de ser lavadas, e os lençóis comumente apareciam
com marcas de mãos marrons, ou manchadas de terra. Ela sentia que todo o
trabalho havia sido inútil, nesses dias, mas então as crianças cresceram. E
mesmo com toda a roupa lavada chegando limpa, ela sentia falta de vê-los ali.
Ela percebeu que estava ficando
velha.
O pote permaneceu em cima da
escrivaninha durante toda a semana entre o dia em que Marieta o levou para
casa, ate o dia da viagem, que ela finalmente voltou a depositá-lo em seus
braços, aconchegantemente, temerosa de que alguma coisa pudesse o ferir.
Mas, durante a semana em que o pote
ficara em sua casa ela mal pode encostar neste. Ela sequer conseguiu ficar no
apartamento, incomodando-se, não com a presença do pote, mas a representação
que ele havia adquirido em sua vida.
Ela não era a preferida... E ainda
assim, no final das contas, era ela quem tomara a responsabilidade, era ela que
estivera ali, era ela quem restou, não teria merecido mais compaixão no
passado? Afinal, ela não havia decepcionado ninguém, nem o pai, nem a mãe, nem
o irmão, nem os amigos, ela havia cumprido tudo, ao ponto de desgastar-se,
acabar-se, reduzir-se a uma centelha, sem a mesma alegria que um dia era parte
de seu ser.
E agora, com o pote sobre a
escrivaninha, sobrava apenas dor, ressentimento, memória e a mesma ânsia que
lhe revirava inteira. Sentia-se absolutamente sozinha.
Quis correr para fora do
apartamento.
Ele não sabia bem onde havia errado.
Eram tantas as opções, e ele sabia, hoje, que fez todas as erradas. Isso o
fazia ficar acordado durante a noite, e fazia com que ele sempre se sentisse
culpado por não ter feito mais, por ter desistido tão cedo, e recomeçado tão
tarde. Mas mesmo que pudesse fazer algo diferente, que alias, ele sempre
teimava em pensar a respeito, nunca conseguia encontrar uma saída válida para
tudo.
Ele não poderia fazer nada a
respeito disso.
A irmã havia entrado em choque e
depressão pela morte do pai.
Ele não sabia o que fazer a respeito
disso.
A mãe havia ficado sozinha.
Ele não conseguiu fazer nada a
respeito disso.
Ele havia quebrado, mais uma vez...
E ainda agora, meses e anos depois
de tudo, ainda sentia sob a tênue e fina camada da sanidade de seu ser, sua
ética, moral e consciência quebradas, as vezes as pontas tencionavam em rasgar
todo o tecido, em despedaçá-lo de novo, derrubá-lo ao chão. Entretanto, dessa
vez ele tomava as precauções, ficava longe das coisas que ele sabia que
poderiam acabar com ele. Eram as memórias antigas e mais adoráveis. Ele não
abria os antigos livros de escola. Ele não ligava para os velhos amigos. Ele
não tinha fotos em casa. Ele não tinha flores no jardim. Ele não voltava para casa.
E mesmo assim, durante a noite, ele
prometia a si mesmo que, quando finalmente recuperado, ele se levantaria
daquele ninho de rato, e caminharia de volta para casa. Abraçaria a mãe, e
pediria desculpas por tudo, faria com que todos os seus pecados fossem
extirpados, que toda a dor fosse substituída. Ele abraçaria a irmã, e cuidaria
dela, porque ela era pequena, frágil, inocente. Ele seria o orgulho do pai, ele
faria tudo dar certo...
Mas o tempo que levou para ele
tentar se recuperar levou todos embora.
O ninho de rato teria de se tornar
seu lar.
Marieta se apaixonou várias vezes.
Mas ela nunca conseguiu admitir
isso. Então nunca conseguiu verdadeiramente se apaixonar, e amar puramente por
amar... Isso resultaria no fato de que ela nunca vira a se casar, e sem
casamento, quando a velhice se abater sobre ela, não haverá crianças para
chorarem em seu leito...
Ninguém para levá-la para casa após
morte.
Isso ainda vai desencadear uma
grande depressão, que aparecerá quando ela estiver próxima aos quarenta. E que
vai resultar em mais de dez anos de analises psiquiátricas. Duas tentativas de
suicídio. Um suicídio.
Yann vai morrer de falência múltipla
dos órgãos. Velho, tão velho que sua pele se enrugou sobre os ossos frágeis.
Ele não vai ter a mesma rapidez dos tempos de juventude, nem o mesmo sorriso,
ou a mesma memória, vai restar apenas os mesmo olhos, com uma sagacidade fora
do normal, ainda que cheios de um ressentimento e cansaço em decorrência a toda
a sua história.
Ele vai se casar. Mas vai preferir
não o tê-lo feito, eles viverão pouco tempo juntos, ela vai lhe dar uma linda
menina, que eles batizarão de Nina. Sua esposa, Marie, vai morrer pouco depois
disso. Acidente de carro.
Ele vai se casar com ela pela
fragilidade que a moça se apresenta, ela parece pequena, parece quebradiça,
como uma rosa seca dentro de um livro. Ele vai, de inicio, tentar se manter
longe dela, justamente pela sua apresentação, mas isso o encantará de tal forma
que, eventualmente, ele cederá ao sorriso doce ao olhar meigo, a fala calma, e
ao sentimento recíproco de admiração e carinho. O que dizer? Ela funcionava
para ele.
Yann pousou a mão sobre o ombro de
Marieta, que acordou sobressaltada.
E ela olhou o rosto dele.
Parecia que não havia dormido. Sob
os olhos determinados havia aquela camada de cansaço, as olheiras se tornando
profundas, marcando o rosto de uma forma que parecia definitiva. A boca parecia
um traço, fina, sem parecer melancólica, nem feliz, apenas um traçado reto,
inexpressivamente forte, e terrivelmente definitiva na face. O cabelo estava
bagunçado, apontando direções distintas e terrivelmente controversas...
Levantou-se. Mudou de roupa.
Yann a esperou, já do lado de fora.
O pote em mãos... Pela primeira vez.
Toda a realidade pode parecer
triste. Um fim, como um fim. Uma vida, como uma vida...
Mas Yann, Marieta, Eu, Você, todos
os demais, só temos isso, e agarrados nessa coisa que nem sempre pode parecer
ou mesmo ser real, é, para cada um de nós, a única e verdadeiramente forma de
existir como ser.
Mas isso não importa. Nós nos
esquecemos desse tipo de coisa.
Yann foi na frente, ainda segurando
o pote, ele o havia oferecido a Marieta, mas ela não queria mais carregá-lo,
estaria sendo injusta se não deixasse o irmão levá-lo a seu destino final. Esse
era o fardo do irmão. Ele deveria cumpri-lo.
A colina era tão verde quanto fora
da infância dos dois, quando o irmão ainda pequeno corria sem olhar para trás,
sem se preocupar com a garotinha que sonhava em segui-lo. Pareciam tão
distantes dessa época agora, ele não liderava mais nada, ela não o seguia, ele
não corria, ela não gritava por ele, ele via ela, ela temia a ele, ele
reconstruiu-se, ela se destruiria, ele percorreria um longo trajeto, ela o
faria mais curto, ele seguiria em frente, ela sentia-se estagnada... Ele e ela.
Ela e ele. Eram os dois de volta a infância, sem infância a se ver.
Mas as colinas eram as mesmas. O céu
ainda se abria azul sobre suas cabeças, seus cabelos ainda reviravam-se ao
vento, que continuava a lhes sussurrar segredos, o cheiro era o de grama e
terra, ainda havia laços sanguíneos entre eles, ainda havia tempo.
Entretanto eles subiriam as colinas.
E toda a miséria que sentiam e que os fazia ficar juntos passaria... E o tempo,
que deveria juntá-los levaria ambos a caminhos e realidades diferentes.
Esse seria um dos últimos dias que
Yann veria Marieta viva. E um dos últimos que Marieta veria Yann, se não nas
fotos que mantinha consigo, e na memória que sempre revirava e revivia.
- Dos bichos estranhos que estão nos
armários
- Não tem nada nos armários, durma.
Yann não apareceu no velório do pai.
Ele
tinha medo de ser julgado pela própria família, porque de fato ele se julgava
indigno de estar lá. Era o filho que deveria ser o prodígio, e que, no entanto,
havia caído na desgraça... Era o suposto orgulho do pai, que agora era a
descrença... Era o protetor, que havia se tornado somente o irresponsável...
Era...
Era
quem o pai gostaria que estivesse ali por ele.
Era
quem o pai gostaria que estivesse ajudando a família.
Era
quem a mãe precisava abraçar.
E
mais que isso, era o único que conseguiria ajudar a irmã naquele momento.
Mas
ele não sabia disso...
Mas Marieta apenas balançou a cabeça
negativamente.
Ele olhou o pote... Era só aquilo
que havia restado? Era só aquilo?
- Nós vamos sentir sua falta – ele
disse.
Mas ao invés de ‘nós’, ele quis
dizer ‘eu’, e ao invés de ‘vamos sentir’ ele quis dizer ‘sinto’. Ele queria dizer
que era culpa dele, que ele sentia saudades, que ele queria desesperadamente
ajuda, ele queria redenção, queria um abraço, queria que ela passasse as mãos
em seu cabelo, que dissesse que tudo daria certo, queria ter que pregar botões
de novo, tocar musicas no piano, agradá-la, simplesmente pelo sorriso dela,
queria que tudo voltasse a mesma simplicidade e veracidade que ele teve na
infância, que ele sentia falta agora, que ele não encontrava mais.
Marieta ao invés de dizer nada,
queria dizer tudo. Queria saber porque não era a predileta, queria o abraço
carinhoso, o sorriso maternal, o olhar doce pousado sobre ela, as perguntas
calmas sempre atentas a sua vida, e ate mesmo a casual distração. Queria tê-la
ao lado, só para tê-la ali, para lhe dizer coisas que provavelmente a deixariam
furiosa, e para que, furiosas, elas brigassem, sem que isso nunca fosse afetar
nada no relacionamento delas.
Eles queriam muitas coisas.
Mas tinham apenas um pote...
Yann olhou para Marieta e lentamente
virou-o.
De lá de dentro as cinzas caíram, e
antes mesmo de tocarem a grama o vento as recolheu em seus braços e a
espalharam para todo o mundo.
Sentiram-se pequenos e
desprotegidos.
Marieta começou a chorar, soluçando.
Yann sentiu a garganta se fechar
sobre as palavras, mas ele fez questão de dizê-las, para que o vento as
carregassem também.
E esses pequenos seres humanos
ficaram na colina.
O resto do que foi o corpo da mãe,
foi arrastado pelo vento.