domingo, 21 de setembro de 2014

Setembro

            Todo ano é a mesma coisa.
            Batem-me a porta a noite. Uma voz que conheço, chama-me com cuidado. As cortinas nas janelas balançam com a brisa fresca dessa estação. E eu sei que o tempo chegou.
            Sempre abro a porta, não por desejo nem por vontade, mas por certeza de que, se não o fizer, ele vai voltar a aparecer... Vai entrar pela janela, dar um jeito de destrancar a porta, passar pelas frestas, telefonará repetidamente, teimará em aparecer em meus sonhos, em passar em frente aos meus olhos... E eu não posso suportar esse tempo que se estende... Que é ansiedade e medo do encontro e do confronto que sei que esta sempre por vir, então, quando a campainha toca, eu reconheço que não tenho escolha e a abro.
            Ele entra e tira o chapéu, nem está tão frio assim. A brisa que trás consigo e morna e doce, com um gosto de tempos antigos, com gosto de várias lembranças que não controlo. Tira o casaco leve, mas carrega a maleta consigo, mesmo quando eu me ofereço para guardá-la para ele.
            Segue-me até a sala, e sentamo-nos em poltronas diferentes, quase distantes. Eu ofereço água, ele recusa, ofereço chá, ele recusa, ofereço café, e ele só quer conversar... Bem que preferia que desejasse algo, que fosse dinheiro, que fosse uma bebida, que fosse um tempo, mas não, ele vem e me fala do tempo.
            Começa me falando da época...
            Aqui estamos de novo...
            E minha garganta trava, engasgada de palavras, nem mesmo o chá pode me ajudar.
            O tempo passou... E isso me entristece, não pelo tempo em si, mas por mim dentro desse tempo.
            Ele se debruça para frente, uma tentativa de se aproximar de mim, de me fazer entender. O tempo passou. Ele fala que alguns sonhos morreram... Algumas coisas quebraram... Alguma coisa deu errado no caminho todo, e que eu tenho que reconhecer... Agora, porque o tempo passou, e não tenho mais tempo para fingir que tudo esta bem, que tudo deu certo, e que a felicidade esta ao meu alcance.
            Eu choro... E ele deixa a poltrona em que estava para se sentar perto a mim. Não me acolhe, não encosta sequer uma mão em meu ombro, mas abaixa-se para me olhar nos olhos, já marejados.
Ele fala que estou longe de casa, que a casa da infância sumiu, que o amor da infância se perdeu, que os amigos da infância desapareceram, e que quem fui na infância morreu... E que não há volta para essas coisas, porque já existem em outros tempos, e estão longe de meus braços...
Entrega-me um lenço, e mais palavras, que gostaria que não tivesse me dado. Mas sei que é assim que funciona. Ele veio para falar-me... Ele veio porque o tempo passou... E eu estou ainda alguns anos atrás, e alguns sonhos a frente, e preciso que ele venha...
Fala-me dessas ilusões que fiz, e as quebra em frente aos meus olhos. Segura meus pés com força, e os coloca no chão. Diz e aponta o fato de que nenhuma mão segura a minha, que quanto mais o tempo passa, mais certeza tem de minha solidão. Retira os sonhos mortos de meus braços e os esfarela no ar da noite. Fala que me torno amarga e angustiada, embora não dura. Aperta minhas mãos, apenas para falar que elas parecem mortas...
E tudo o que desejo é que vá embora.
Mas ele não vai...
Suas palavras abrem as feridas antigas, e eu causo algumas novas para completar. Se tivesse como, sei que me esfolaria para que ficasse nova... Arrancaria meus cabelos com as mãos se isso fosse resolver algo... Mas apenas fervo a água para que eu possa me escaldar, e após as lágrimas terem lavado parte de mim, que seja o fogo o próximo a me limpar.
Ele me acompanha durante todo o trajeto,
E eu, triste e melancólica, com os pés arrastando no chão, vou para a cama, com um sono e cansaço imensos. Com dores que não suporto. E a realidade que não conhecia...
Mas ele vem junto.
E em minha cama, ele me abraça. Deitados juntos ele me embala, canta canções antigas, e deixa a familiaridade fazer parte do mundo, o que me acalma. Passa seus dedos em meus cabelos molhados, deixa que minhas faces molhadas vão de encontro a seu peito, e deixa que minhas mãos frias e mortas sejam reconfortadas por suas mãos quentes e mornas. Ele nunca diz que as coisas vão ficar bem... Porque não vão, o tempo para isso já acabou, e tenho que lidar com o tempo que tenho, e com os sonhos que não morreram, e as possibilidades que ainda podem vir. Ele nunca diz que as coisas serão melhores, mas fica ao meu lado e recita Drummond e Vinícius em meu ouvido...
Caio no sono, jamais com o coração feliz, mas saciada.
Ele passa a noite ao meu lado.
E na manhã seguinte, quando acordo, ele esta em frente a janela. Levanto-me e vou até ele.
Sob a janela se estendem milhares de flores, que colorem a vista até irem de encontro ao céu. Há em minha frente algo idílico como uma pintura, mas com os movimentos leves e delineados dos bailarinos, e o som leve e doce de uma orquestra...
Setembro não me fala nada. Ele passa sua mão pelos meus cabelos e então, quando sua mão toca meu ombro, puxa meu corpo para perto do seu. Em silencio pousa os lábios sobre minha cabeça num beijo calmo, num carinho doce. Quando finalmente paro de olhar as flores e volto meus olhos para sua face, olho seus olhos com cuidado... Deles vem toda aquela matéria, tudo o que se estende em frente... E embora saiba que tudo aquilo também é despedida, porque logo mais ele vai afastar-se, pegar a pasta e vestir o casaco leve, saindo pela porta da frente, sem mais nenhuma palavra sequer, como todos os anos... Mesmo assim, depois de tudo, Setembro ainda veio e trouxe-me a primavera.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Parágrafo único

São as dálias e as margaridas que eu prensei no livro antigo. Eu digo tentando acalmar-me e dormir. São só as dálias secas... Fica calma e vai dormir. Mas nenhum sono me embala. Há um sussurrar antigo, não das flores, mas de mim, que vem como palavras engasgadas de muito tempo, todas desimportantes, mas agora, sem quem ouvi-las tornam-se as únicas lembranças que tenho. Memórias de algo que não fiz... Recolho meus murmúrios, minhas flores, meus tempos perdidos e rabiscos, não me aquieto, não há como. Dentro de mim correm as memórias das coisas mortas, e seus veios seguem num pulsar do sangue, lá eles cantam, recitam e declamam as palavras livremente como você e como nunca... 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O tigre

            O tigre era de um alaranjado cor-de-abobora. Sua cabeça, que já deveria ser grande, na realidade era enorme... Do tamanho do que três cabeças normais de tigre seriam. O corpo, gigantesco, apresentava listras do tamanho de um palmo. Mas eram os olhos que eram mais enormes que tudo... Amarelos até então abrir-se uma fenda a um infinito.

            Eu sempre acordei cedo. Quando pequena saia da cama para ver o sol e pular no sofá, andar pela casa vazia e deserta, com até mesmo os animais dormindo. As vezes um gato ou outro saía brincar comigo, vinha a seguir meus passos, como sombra. Mas geralmente fazia-o sozinha. E o mundo inteiro surgia e nascia daquele acordar repentino, daquela madrugada que secava, daquelas cores que surgiam magicamente, de uma vida nova que sempre esteve ali e sempre foi o destino.
            Eu gosto de acordar cedo.
            Mas faz um mês que um sonho me vem á cabeça, que todas as noites é a mesma coisa, o mesmo desespero e ainda assim nada...
            Faz um mês que durmo em desespero. E faz um mês que acordo desesperada.

            Há uma calma enorme. Nunca em mim, mas eu sinto-a quando começo a cair dentro do infinito dos olhos daquele tigre enorme. Ele me olha pelo lado de fora de uma janela. Há apenas um vidro fino que nos separa. Uma mesa de jantar duas cadeiras, um par de tênis, um metro e meio e, por fim, um vaso de flores. Mas tudo parece desaparecer, e a distância não é nada... Porque um salto e ele estaria onde eu fico parada olhando.
            Nem eu nem ele nos movemos.

            Eu nunca sei como é realmente o sonho... Ele sempre parece difuso. Todas as manhãs quando acordo fico desesperada para saber o que foi que você me disse.
            Tudo o que sei é que é importante. De alguma forma...
            Mas apenas me lembro de como era sentir sua mão na minha e ver a grama verde do lado de fora.
            Por que estávamos mesmo caminhando?
            Faz mais ou menos quatro anos desde que finalmente deixei o apartamento que estive morando para ir para uma casa. Escolhi uma que tinha um quintal gramado, que, embora seja as vezes incomodo manter, é a visão mais reconfortante que tenho quando acordo e tomo meu café da manhã.

            Eu espero. Eu sei que estou esperando e que não cabe a mim fazer o primeiro movimento. E ficamos assim durante um tempo incontável. Até que, com um leve movimento da cabeça o tigre deixa de olhar diretamente para mim. E com isso vem o desespero.

            As suas palavras eram sobre algo que eu devia fazer... Mas tudo o que lembro era que a sua mão estava na minha quando estávamos caminhando. Que você me beijava antes de me falar comigo, que era importante, e que eu concordava...
            Era uma promessa feita, mas que eu não sabia como manter.
            Então lembro-me de voltarmos a andar.
            Sorriamos os dois... Numa felicidade que parecia transbordar silenciosamente e se espalhar pelo caminho todo... Até vir o desespero e eu acordar.

            A partir disso os caminhos mudavam. Haviam algumas poucas opções. E eu, sabendo que o tigre rondava a casa, não mais especulando o que havia lá dentro, mas me reconhecendo como presa circulava, comigo presa dentro dos olhos.
Eu corria.

            O resto do dia ficava com o sonho na cabeça, temendo-o, sem saber suas palavras, sem entender a ligação. Falam que os sonhos mostram alguma coisa do nosso interior, mas suas palavras nem mesmo eu conhecia, ou, se conhecia até mesmo de mim eu as tinha escondido.
            Pelas manhãs, enquanto ainda tinha o sonho fresco, sentindo o odor da grama e a quentura de sua mão, eu pensava. Retomava-o desesperadamente... Mas sem respostas.

            Enquanto me debatia e a casa encolhia, ouvia barulhos incômodos... Imaginava que era o tigre entrando pela cozinha, quebrando a janela dos quartos, entrando pela sacada dos quartos, vindo em minha direção pelo corredor. E eu corria, num desespero para tentar sair por algum espaço, uma solução. Mas as paredes continuavam encolhendo e eu fugia dos sons que vinham de todos os lados.

            Havia uma calma e singeleza quando você me olhava nos olhos, antes de me dar um beijo e antes de me falar as palavras que devia lembrar, mas nunca lembrava... Olhava para seus olhos de céu, que se estendiam infinitamente em um castanho comum para me ver pequenina reluzindo dentro deles. E isso já era toda a felicidade do mundo.
            Mas sempre acordava sem entender o porque. O tempo havia passado e nada disso era real, ainda que eu voltasse a esse ponto todas às vezes e todas as noites.
            Esse um mês era eterno.

            Num último momento encontro-me presa no fim e um corredor, que sequer sei como surge na casa. Fico ali, desesperada. Imaginando o tigre virar a curva e me ver.
            Nada aparece.
            Nada nunca aparece.
            E eu fico assustada esperando algo que nunca vai acontecer.
            Isso é sempre o pior.

            Eu continuo acordando todos os dias cedo, e me sentando sozinha na cozinha para tomar café.
            Mas hoje, quando desci as escadas e parei em minha sala de jantar para olhar o gramado, havia um tigre enorme do outro lado do vidro.
            Seus olhos eram enormes e dentro deles morava o infinito.