Todo ano é a mesma coisa.
Batem-me a porta a noite. Uma voz
que conheço, chama-me com cuidado. As cortinas nas janelas balançam com a brisa
fresca dessa estação. E eu sei que o tempo chegou.
Sempre abro a porta, não por desejo
nem por vontade, mas por certeza de que, se não o fizer, ele vai voltar a
aparecer... Vai entrar pela janela, dar um jeito de destrancar a porta, passar
pelas frestas, telefonará repetidamente, teimará em aparecer em meus sonhos, em
passar em frente aos meus olhos... E eu não posso suportar esse tempo que se
estende... Que é ansiedade e medo do encontro e do confronto que sei que esta
sempre por vir, então, quando a campainha toca, eu reconheço que não tenho
escolha e a abro.
Ele entra e tira o chapéu, nem está
tão frio assim. A brisa que trás consigo e morna e doce, com um gosto de tempos
antigos, com gosto de várias lembranças que não controlo. Tira o casaco leve,
mas carrega a maleta consigo, mesmo quando eu me ofereço para guardá-la para
ele.
Segue-me até a sala, e sentamo-nos
em poltronas diferentes, quase distantes. Eu ofereço água, ele recusa, ofereço
chá, ele recusa, ofereço café, e ele só quer conversar... Bem que preferia que
desejasse algo, que fosse dinheiro, que fosse uma bebida, que fosse um tempo, mas
não, ele vem e me fala do tempo.
Começa me falando da época...
Aqui estamos de novo...
E minha garganta trava, engasgada de
palavras, nem mesmo o chá pode me ajudar.
O tempo passou... E isso me
entristece, não pelo tempo em si, mas por mim dentro desse tempo.
Ele se debruça para frente, uma
tentativa de se aproximar de mim, de me fazer entender. O tempo passou. Ele
fala que alguns sonhos morreram... Algumas coisas quebraram... Alguma coisa deu
errado no caminho todo, e que eu tenho que reconhecer... Agora, porque o tempo
passou, e não tenho mais tempo para fingir que tudo esta bem, que tudo deu
certo, e que a felicidade esta ao meu alcance.
Eu choro... E ele deixa a poltrona
em que estava para se sentar perto a mim. Não me acolhe, não encosta sequer uma
mão em meu ombro, mas abaixa-se para me olhar nos olhos, já marejados.
Ele
fala que estou longe de casa, que a casa da infância sumiu, que o amor da
infância se perdeu, que os amigos da infância desapareceram, e que quem fui na
infância morreu... E que não há volta para essas coisas, porque já existem em
outros tempos, e estão longe de meus braços...
Entrega-me
um lenço, e mais palavras, que gostaria que não tivesse me dado. Mas sei que é
assim que funciona. Ele veio para falar-me... Ele veio porque o tempo passou...
E eu estou ainda alguns anos atrás, e alguns sonhos a frente, e preciso que ele
venha...
Fala-me
dessas ilusões que fiz, e as quebra em frente aos meus olhos. Segura meus pés
com força, e os coloca no chão. Diz e aponta o fato de que nenhuma mão segura a
minha, que quanto mais o tempo passa, mais certeza tem de minha solidão. Retira
os sonhos mortos de meus braços e os esfarela no ar da noite. Fala que me torno
amarga e angustiada, embora não dura. Aperta minhas mãos, apenas para falar que
elas parecem mortas...
E
tudo o que desejo é que vá embora.
Mas
ele não vai...
Suas
palavras abrem as feridas antigas, e eu causo algumas novas para completar. Se
tivesse como, sei que me esfolaria para que ficasse nova... Arrancaria meus
cabelos com as mãos se isso fosse resolver algo... Mas apenas fervo a água para
que eu possa me escaldar, e após as lágrimas terem lavado parte de mim, que
seja o fogo o próximo a me limpar.
Ele
me acompanha durante todo o trajeto,
E
eu, triste e melancólica, com os pés arrastando no chão, vou para a cama, com
um sono e cansaço imensos. Com dores que não suporto. E a realidade que não
conhecia...
Mas
ele vem junto.
E
em minha cama, ele me abraça. Deitados juntos ele me embala, canta canções
antigas, e deixa a familiaridade fazer parte do mundo, o que me acalma. Passa
seus dedos em meus cabelos molhados, deixa que minhas faces molhadas vão de
encontro a seu peito, e deixa que minhas mãos frias e mortas sejam
reconfortadas por suas mãos quentes e mornas. Ele nunca diz que as coisas vão
ficar bem... Porque não vão, o tempo para isso já acabou, e tenho que lidar com
o tempo que tenho, e com os sonhos que não morreram, e as possibilidades que
ainda podem vir. Ele nunca diz que as coisas serão melhores, mas fica ao meu
lado e recita Drummond e Vinícius em meu ouvido...
Caio
no sono, jamais com o coração feliz, mas saciada.
Ele
passa a noite ao meu lado.
E
na manhã seguinte, quando acordo, ele esta em frente a janela. Levanto-me e vou
até ele.
Sob
a janela se estendem milhares de flores, que colorem a vista até irem de
encontro ao céu. Há em minha frente algo idílico como uma pintura, mas com os
movimentos leves e delineados dos bailarinos, e o som leve e doce de uma
orquestra...
Setembro
não me fala nada. Ele passa sua mão pelos meus cabelos e então, quando sua mão
toca meu ombro, puxa meu corpo para perto do seu. Em silencio pousa os lábios
sobre minha cabeça num beijo calmo, num carinho doce. Quando finalmente paro de
olhar as flores e volto meus olhos para sua face, olho seus olhos com
cuidado... Deles vem toda aquela matéria, tudo o que se estende em frente... E
embora saiba que tudo aquilo também é despedida, porque logo mais ele vai
afastar-se, pegar a pasta e vestir o casaco leve, saindo pela porta da frente,
sem mais nenhuma palavra sequer, como todos os anos... Mesmo assim, depois de
tudo, Setembro ainda veio e trouxe-me a primavera.