Setembro
veio em agosto.
Encontrou-me
sentada na cadeira de estudos. Eu mirava o teto, mas olhava o céu... Estava ha
mais de nove horas da mesma forma, ali, no nada. Através de minha pele ondas se
formavam, e eu sentia arrepios que corriam por meu corpo como um mar em
tempestade. Dentro de meus olhos chuvas corriam, e transbordavam em lentas
gotas que cortavam minha pele. As mãos e os pés estavam em carne viva...
Setembro
veio em agosto, quando soube que algo havia atrapalhado o tempo.
Encontrou
a casa desarrumada, por tudo havia pó e pelos dos gatos... Na sala viu todas as
ilusões já partidas, quebradas, em milhares de pedaços no chão. Havia uma cola
deixada ali ao lado, uns pedaços juntados inutilmente, de forma errada, numa
tentativa desastrosa e triste. Pelas minhas mãos e pés ele sabia que havia
caminhado e me cortado enquanto tentava colar os pedaços de tudo aquilo, que
agora era só um desastre.
Setembro
veio em agosto, porque precisava concertar as coisas.
Mas
acabou que elas já estavam quebradas... E eu estava mais quebrada ainda,
olhando o teto, mas vendo o céu, com as mãos e pés que não podiam tocar em nada
sem doer profundamente.
Ele
passou os braços pelo meu corpo e me suspendeu, como uma pequena boneca. Colocou-me
na cama como se eu pudesse dormir, cobriu-me com a coberta de infância. Desceu
as escadas para limpar as coisas, mas meu choro, soluçado e vazio, o fez
voltar. Ele retirou os sapatos e deitou na cama, segurando com força meu corpo,
que balançava como se houvessem ventos dentro de mim. Ele me segurou como se eu
pudesse ser arrastada dali como um pano, uma folha, uma vida.
Lembro-me
de dormir em seu peito. Mas lembro disso de quase todos os dias... Todo agosto
e todo setembro, era só Setembro a me consolar. Eu solucei a maior parte das noites
em seu corpo, que me apertava contra o dele como se para me confortar com sua
chegada. Ele disse que viria... Ele veio.
Setembro
veio em agosto, porque todos os anos Setembro veem, para quebrar as ilusões,
ajeitar os caminhos, fazer com que eu entenda o que está acontecendo, levar as
coisas mortas e deixar-me pronta para seguir. Ele me bate a porta e entra com a
brisa leve, primeiro anuncio da primavera. Mas dessa vez não... Dessa vez ele
entrou pela janela do segundo andar, como um ladrão. Veio para colocar meus pés
no chão, para desanuviar meus olhos de sonho, para que eu visse a realidade,
mas o trabalho já estava feito... De forma muito malfeita. Ele me encontrou
pela metade, como se saqueada, e decidiu não mexer em mim.
Setembro
veio em agosto e ficou em setembro, porque eu precisava.
Ele
jogou fora as coisas que estavam quebradas, limpou a sala, lavou os quartos e
tirou as teias. Ele segurou minhas mãos quando estive prestes a arrancar
cabelos, e me levantou da cama quando senti que meus ossos estavam quebrados.
Setembro me forçou a comer, me embalou até dormir, recitou poesias nos meus
ouvidos. Nunca me disse ‘vai ficar tudo bem’, eu e ele estamos muito velhos
agora para essas coisas, nós dois sabemos que essa época já passou ha muito
tempo, só ás vezes eu que insisto em não perceber, ás vezes sou ingênua.
Mas
setembro veio e lavou meus cabelos, não deixou que eu dormisse muito, nem que
eu dormisse pouco, arrastou-me para os compromissos. Fez com que sentisse o
gosto da morte algumas vezes em minha boca, mas nunca me deixou morrer...
‘Eu
estou cansada’ eu repetia. Ele insistia em não me ouvir.
‘Agora’
ele dizia, após me dar uma ordem.
Havia
urgência. Nesses dois meses sempre houve...
Se
eu parasse, sabíamos que era o fim. Que estava caindo... E é tão difícil
levantar quando as pernas não andam, e os braços não mexem... Como é difícil
comer sem fome e sorrir sem gosto, como é impossível não chorar em publico e do
nada quando se sente afogar dentro de si mesmo. É tão difícil ser inteira, quando,
na verdade, tu é só pedaços.
Setembro
levou tudo da casa e a deixou outra. Ela,
depois de sua passagem, me parece vazia, sua decoração colorida e amável se
foi. Há uns retratos antigos, mas as paredes são brancas, lisas e insipidas. Não
há planos dessa vez. Não há caminhos... Pela primeira vez não há um futuro
estampado nas minhas paredes. Nada. Pela primeira vez sou eu também vazio. Ele
queimou tudo o que achava necessário do passado e enterrou no tempo o resto,
prendeu minhas mãos e disse firme ‘aqui você não mexe mais’. Eu obedeci.
‘Último
dia’ ele me anuncia, preocupado. Setembro ficaria em outubro...
Ele
me abraça com força e pede desculpas. Dessa vez sem ser culpa dele... Porque
esse ano veio só para acalmar as tempestades que passaram antes. Mas as
desculpas não são por isso, eu só perceberei muito tarde, muito longe...
Setembro veio e arrastou tudo com ele, e o que ele deixa é pouco. Estou muito
mais dura do que era, ele vê, eu só percebo que não choro mais.
Beija-me
a testa com cuidado, segura meus ombros e ajeita meus cabelos, bagunçados como
minha cabeça. Não me promete coisas, mas sei que queria poder fazer algo.
Esse
ano nem a primavera ele conseguiu trazer. Aqui ainda é muito frio e nada em mim
parece florescer. A terra e eu, dois campos vastos, onde a vista se perde,
repletos de um grande nada, estamos áridos. Mas o verão se anunciará, sabemos.
Em algum momento, obviamente, as flores devem surgir. Ainda há muito tempo para
lá, se nada o interromper.
Setembro
avisa. ‘Último dia’. Abraça-me com força.
Ele
fala ‘último dia’ como se quisesse dizer ‘última vez’.
Ele
me deixa com um pinheiro. Esperando que também eu crie raízes. E fecha a porta
atrás de si com medo, de que não tenha que voltar no ano seguinte.