A casa em que cresci sumiu. A casa
em que cresci já não é minha, já não tem minha família, já não me tem.
Ela sumiu. Soterrou-se sob paredes
novas e tintas frescas, embalou-se com muros mais altos, abrigou outros que já
não sei, que nunca vi, que nunca a viram. Foi mudando, tornando-se outra da que
uma vez foi... Deixando o passado, saindo de casa. Essa era a casa em que
cresci.
Mas ela já não existe. Em seu lugar
existe outra, sobre os esqueletos e ossos, de meu passado, de minha infância,
de um tempo que parece ser só meu, vívido em minha memória, sem casa fixa para
ficar, sem ninguém que não eu para sustentá-la.
A casa em que cresci nasceu comigo,
foi feita a mim, desenhada a minha infância, a meu tempo de criança, mas eu cresci...
Ela não cresceu comigo, eu não cresci com ela. Mas se crescemos, se mudamos, se
morremos, já não sabemos... Não sei onde ela foi parar, ela já não sabe de mim.
Estamos longe.
Estou longe de onde vim,
Ela também não esta no mesmo lugar.
Sobrou seus ossos, um esqueleto
colorido sob tintas distintas, de tons que não reconheço, que não recordo, que
não entendo como puderam mudar! Hoje vejo na casa, construída sobre meu
passado, resquícios de um tempo antigo; a grama não é a mesmas, mas a nova se
põem no mesmo lugar, o lugar em que corri, em que brinquei, o chão e as paredes
também são outros, estruturas sobre estruturas do pretérito, iguaiszinhas e,
ainda assim, inexatas.
Lá está minha casa, sob a casa que
desconheço.
Ela também não se lembra de mim. Não
reconhece em meus traços os mesmos olhos infantis, a mesma forma leve e lenta
de falar, a mesma posição dos pés e joelhos quanto parada, os olhos perdidos no
ar. Esta casa não é minha, observa-me intrigada e então se repudia com essa
intimidade que eu acredito ter com ela, e, na verdade, não há.
A casa em que cresci sumiu...
Mas eu também sumi de lá. Não me
lembro do que disse, será que falamos ‘adeus’? Prometi voltar? Lembrar? Ficar?
O que ela me prometeu? Só sei que me vi chorar... Ela não chorou por mim, nem
por nenhum de nós que ali viveu, cresceu e se foi. Era mais forte, mesmo sendo
tão jovem quanto eu, mas, de qualquer forma, alguém precisava chorar.
Só eu chorei por nós, pelas tardes
no gramado, as brincadeiras na rede, os bonecos pelo chão. As noites de apagão,
o lamentar do piano, o barulho e gosto da chuva, que batia no telhado, será que
ela se lembra disso? Será que eu não vou esquecer?
‘Sumiu para onde?’ pergunto a casa
sobre os esqueletos da casa em que cresci.
‘Morreu’, responde.
A casa em que cresci morreu...
E com ela toda essa referência de
infância e de passado foi passando, tornando-se cada vez mais insólita, mais
irreal. Já não havia nada que sustentasse a lembrança, que não memória, que não
os restos largados e pedaços quebrados dos dias antigos. Não sobrou muito, um
boneco, uma foto, um instante, depois nada mais.
A casa em que cresci morreu.
Suspiro.
Então nada mais me prende a essa
terra, a esse sítio. Não há mais pátria, nem lugar para voltar, não há mais
cidades velhas para onde retornar, nem infância para recorrer. Estou sozinha.
Estamos longe. Ela correu anos, cresceu, viveu, morreu, sem mim. Eu fugi
milhas, indo para qualquer lugar, perdendo-me para me perder, sem a intenção de
me achar, de retornar.
Mas a casa em que cresci morreu...
E se fugi para brincar, para irritar
e provocar, como são as crianças teimosas, então voltei tarde demais. Tarde
demais para ela... Tarde demais para mim.
Pergunto-me se foi esse tempo que
matou, se foi ausência, se foi esquecimento ou foi mudança. Foi a distância? E
já não sei quem abandonou quem... Se nos deixamos, se a deixei, se me deixou.
Por que não voltamos? Não sei a resposta, não recebo resposta, mas, agora, já
não importa.
A casa em que cresci morreu.
Suspiro. Entendo.
E a menina que ali cresceu morreu
comigo.
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