domingo, 8 de dezembro de 2013

Lagartas

            Lívia era a estranha em nossa família.
            Lívia, pequena e mirrada, com seus braços e pernas curtas.
            Lívia, minha prima, mas de quem eu não gostava...
            Minha tia, Ana Luiza, era a mãe de Lívia. Mas vivia em um estado ausente, sem entender, por vezes, o que realmente estava se passando. Minha avó, e também minha mãe, falavam que tudo isso era por causa do acidente de carro, no qual, inclusive, meu primo e tio morreram, e que fizeram com que tia Ana Luiza ficasse louca.
            Não louca... Minha mãe me repreendia quando dizia que alguém era louco, especialmente quando era da família... Sempre dizia que se eu falasse assim, logo todo o resto da cidade também falaria, e a família ficaria marcada, e me perguntava, num tom forte e desafiador, é isso o que você quer? Mas eu não sabia bem o que queria...
            Queria que Lívia não cuspisse em mim...
            Lívia e sua baba. Vivia constantemente de boca aberta, olhando um mundo invisível, balbuciando palavras incompreensíveis, e me assustando com seus gritos.
            Tudo culpa das lagartas. Isso era o que minha avó achava.
            A culpa estava nas lagartas.
            Demorou anos até entender.
            Antes, quando pequena, simplesmente não fazia sentido. Lívia era estranha por causa das lagartas... Eu recordava a fala da avó, e ficava a espionar a prima, como se pudesse entender. Nunca entendia. Saia então ao jardim, na busca das lagartas, como se elas tivesse uma melhor capacidade de explicar do que Lívia.
            Perseguia lagartas a manhã inteira. Subia com elas nas árvores, ficava a vigiar os pássaros para que elas pudessem comer tranquilamente, aprendia a diferenciá-las e também a encontra-las em todas as situações. Não me davam respostas, mas faziam-me uma companhia melhor que a de Lívia quando estava na antiga casa rural em que minha avó vivera a vida toda, e que agora também abrigava tia Ana Luiza e Lívia.
            Havia muitas lagartas, o ano todo, o tempo todo. Elas corriam pelas frestas da janela da casa e entravam... Faziam casulos nas paredes, atrás da televisão, entre os livros da estante... Uma ocupação lenta, mas formidável! Não havia ninguém que pudesse impedi-las. Eu brincava com elas, as adorava. Mas só até minha mãe descobrir.
            Quando soube, segurou meu braço com força, seus dedos prensando a carne até a região ficar vermelha, os nós dos dedos de minha mãe, brancos. Falou ríspida, que diabos você esta fazendo menina? Quer ficar louca? Eu teria respondido alguma coisa, provavelmente brava, tanto pela forma ríspida quanto pelo fato de usar a palavra louca... Que eu não podia usar, mas os olhos de minha mãe estavam desesperados, brilhantes que lágrimas que ela não chorou, que eu não entendia, mas ainda assim ali, presentes, resquício de alguma história que não me foi dita. Calei-me. E ela disse finalmente, largando meu braço, não faça mais isso.
            Mas as lagartas ainda me encantavam... Estranhamente encantavam Lívia também. Era nossa única ligação.
            Lívia parecia saber onde as lagartas se escondiam ainda melhor do que eu e, quando minha mãe estava longe e Lívia controlada, ela me apontava com seus pequenos dedos roliços locais onde as lagartas estavam escondidas em uma sala. Eu seguia suas dicas, e segurava na mão várias delas, que depositávamos entre nós duas. Nosso tesouro. Mas Lívia era desajeitada, ou quem sabe, cruel, e suas mãos terminavam por amassar e rasgar as lagartas, delas saia um denso líquido, algumas vezes lembro-me de serem verde, outras de um negro com um leve tom rubro...  Tudo muito triste. Eu ficava indignada e lhe arrancava as lagartas da mão. E então Lívia gritava...
            Gritava como se estivesse a morrer...
            A lhe nascer um filho...
            A lhe esfacelar a carne...
            E eu, com medo, atirava todas as lagartas pela janela, as vezes até mesmo do segundo andar, sem nenhuma hesitação. Se mamãe descobre, e se mamãe descobre? Pensava. Quando podia também eu pulava a janela e fugia, ia me embrenhar nas árvores, até escurecer, esperando que Lívia tivesse diversos ataques de nervos, vários gritos e urros, e que todos esses episódios se confundissem e que ninguém descobrisse minha parcela de culpa em um deles. Nem sempre isso acontecia, eu voltava e era investigada... O que você fez para Lívia ficar nervosa? Nada, eu respondia...
            Ficava sem sobremesa, sem televisão, sem brinquedos, sem comida até. Mas não falava das lagartas... As lagartas não! Era perigoso eu ficar sem a certeza, vai que minha mãe me jurava que eu era louca... Até então eu poderia jurar que estava sã, mas o que fazer depois que sua família lhe aponta a loucura? Eu não sabia.
            Lívia, que parecia ausente, não se esquecia. Na primeira oportunidade cuspia em mim. Algumas vezes no rosto, mas geralmente no peito. Depois assumia uma expressão abobada que ninguém, inclusive eu mesma em alguns momentos, poderia afirmar que ela fizera de propósito...
            O cuspe escorria lento...
            Eu chorava... De raiva.
            Mãe! A Lívia cuspiu em mim de novo! Gritava, como se alguém da casa fosse fazer alguma coisa. Não faziam. E eu ficava a arder por dentro, com um ódio que não nutria por mais nada, por mais ninguém que não Lívia.
            As vezes, em sonho, trocávamos de lugar, eu era Lívia, mas Lívia nunca era eu... Lívia era uma lagarta. Eu a rolava com meus dedos, pequenos e roliços, eu a apertava, a princípio delicadamente, depois mais forte. Eu a via correr desesperada pela mesa, e impedia seu caminho. Virava-a de barriga para cima, prendia-a nessa situação com o indicador, suas pernas mexiam-se no ar, seu corpo se retorcia numa tentativa vã de virar e então correr, eu não deixava... Quanto mais ela esperneava, mais eu a apertava. Via as pequenas mandíbulas se abrirem num desespero, a pequena cabeça rodar, o corpo vermiforme debatia-se, debatia-se... Sentia o êxtase do poder! Soltava-a... Via-a correr, e então me divertia em repetir a situação... Mas então Lívia explodia. Dela saia um líquido branco... Espirava em mim sempre. E de seu corpo mutilado gritos surgiam, eram urros, eram vaias, eram... Não sei bem o que.
            Eu tentava tapar os ouvidos... Mas tornavam-se mais fortes.
            Não tinha tempo de me preocupar com os ouvidos sangrando, os tímpanos destruídos. Todas as vezes, o estranho líquido branco lentamente começava a queimar, e então tornava-se fogo. Não o vermelho das fogueiras noturnas. Mas o azul e branco dos maçaricos... E eu queimava... Meus gritos sobrepunham os gritos vindos do corpo de Lívia-lagarta, e gritávamos duas vezes mais alto, mais forte, com mais dor.
            Acordava embebida em suor... Mas, muito pior, mortificada de medo.
            Sentia a cabeça pesada, como se tivesse explodido.
            Os dedos do pé e das mãos formigavam incomodamente. No peito, uma palpitação desesperada. Meus olhos ardiam.
Mas meu ódio... Meu ódio morria em lugar do medo, tornava-me só medo. Ficava dias sem sequer chegar a colocar os olhos em Lívia, fugia das lagartas, passava o tempo todo em meu quarto... Esperando que nada acontecesse. A cada hora que nada acontecia, eu respirava um pouco mais aliviada... Não vou queimar... Não vou morrer. Chorava e soluçava... De angustia e de alegria. Sobrevivera.
Nesses dias passava quase exclusivamente meu tempo na janela de meu quarto. Via as árvores se mexendo, lentamente. Via a avó andando de um lado para o outro no quintal, fumando um cigarro escondido. Via minha mãe ao telefone, as vezes falando calmamente, outras vezes gesticulando de forma enérgica, ralhando com a pessoa que estava do outro lado. Mas a mais curiosa de todas era tia Ana Luiza... Ela saia com cuidado, não deveria ir para fora da casa, e remexia em galhos e em folhas, olhava muito o chão, e para os lados, temendo que qualquer um a avistasse... Não entendia o que estava fazendo... Pegava algumas coisas, colocava rapidamente para dentro do casaco...
A atividade durava horas... As vezes ficava mais de uma hora tentando mover uma mesma pedra sem nenhuma pausa, só para voltar andar um pouco mais, e como se tivesse esquecido, voltar a mesma atividade... A pedra continuava avidamente em seu lugar. Mas minha tia não parecia suspeitar disso tudo.
Tudo terminava quando minha mãe ou minha avó aparecia, pegava Ana Luiza pelo braço, e a arrastava para dentro. Minha tia, debilmente, tentava se livrar dos dedos... Mas os dedos de minha mãe e avó eram muito mais fortes, rígidos como ferro, tornavam-se grilhões...
Eu perdia minha diversão...
Ficava então a contar coisas... A escrever pequenos versos, ler pequenos livros, e viver em meu pequeno mundo, porque Lívia estava lá fora, e eu a temia nesses dias.
Mas o tempo passava. E eu não morria... Sequer queimava.
A raiva vinha lentamente, por condená-la como meu algoz. Fora Lívia que me aprisionara, que me deixara a exclusão, que me impedia de sair... A culpa era dela! E então o medo sedia lugar a raiva... Que lentamente sedia lugar ao ódio... Até o medo voltar.
Não era feliz durante o tempo que ficava na fazenda de minha avó. Não era. Ia emburrada todas as vezes que tínhamos que ficar lá, esperneava para não ir, tentava barganhar, pedia para ficar com papai (como se ele tivesse tempo para mim! ...), cheguei a odiar as férias por causa da fazenda... E odiar a fazenda por causa de Lívia. Hoje vejo que Lívia tinha um certo poder, realmente conseguia impregnar as coisas ao seu redor, mesmo sendo pequena, diminuta, sem quase uma presença corporal, era capaz de marcar a família inteira, atormentar nossos dias, perseguir-me em sonho...
Jamais consegui fugir das viagens... Todas as vezes... Eu acabava na fazenda.
Era como um imã...
E eu estava condenada a acabar lá, sempre.
Mas os anos em que passei por lá foram úteis. Aprendi várias coisas da fazenda em si. Não sabia, mas ela viria a parar em minhas mãos, com um misto de felicidade, medo e também raiva... Sempre existiu uma parcela de raiva em mim. Mas quanto á fazenda, era porque ela me lembrava de tanta coisa... E eu achei que, casando, conseguiria fugir de toda a história...
Família louca...  
Eu não falava, mas mesmo assim as outras pessoas diziam. Comentavam por ai. Eu bem sabia...
Falavam de minha tia como uma coitada... Caiu louca depois do acidente... E ainda mais! Acabou prejudicando a filha!
Eu não entendia o que queria dizer com isso... Tia Ana Luiza era meio estranha, mas não fazia nada a Lívia... Era a filha que era o problema! Eu quis gritar para as pessoas. Minha mãe via me ficando emburrada e logo segurava meu braço, com força, dedos brancos, o braço vermelho, eu entendia que era para me calar. Engolia...
Família louca, eles diziam... Mas nenhum jamais vira Lívia, nem a entendia.
Também eu não a entendia. Eu apenas a odiava...
Mas também lhe dividia as lagartas.
A fazenda era cheia de lagartas... Tantas que não cabiam nas mãos juntas, caiam por entre os dedos, como uma cascata de vermes, como um punhado de lenços, como somente lagartas conseguem ao se esgueirar para fora das mãos das crianças e cair na terra molhada. Eram tudo o que tinha de mais precioso ali, na infância.
Depois as lagartas tornaram-se um estorvo.
            Eu já estava com quinze, quando finalmente entendi porque minha mãe quase chorou ao saber que eu brincava com lagartas. Nessa época as lagartas ainda era minha maior diversão. Não conseguia ler na fazenda, não conseguia estudar, não conseguia ouvir músicas, nem conseguia ficar dentro da casa livremente, se não fosse meu quarto... Quarto que me enjoava, que me lembrava de pesadelos... Saia.
            Deambulava por ai.
            Caçava lagartas.
            Num desses dias minha tia me apareceu no jardim. Ainda vestia um camisolão desalinhado sobre o corpo magro, tinha o cabelo castanho, que vira nas fotos sempre tão bonito, desarrumado. Andava curva, temendo que alguém fosse vê-la, fugia de coisas invisíveis, falava consigo mesma não me notando. Olhou-me com medo de que eu fosse agarrá-la. Mas eu achava graça de vê-la andar por ai, achava até mesmo que devia! Ficar o tempo todo dentro da casa lhe faria mal, assim pensava. Ela ia passando quando notei seus pés descalços.
            Assustei-me! A fazenda era cheia de espinhos, pedras e bichos! Ela não podia andar descalça. Resoluta, eu peguei a lagarta que estava observando, e fui em direção a minha tia. Com a mão livre lhe segurei o ombro, fazendo com que ela olhasse, com grandes olhos arregalados, para mim. Tia, precisamos voltar, você esta sem sapatos, eu disse. Mas ela apenas reparou em minha mão fechada, e com seus dedos, finos como galhos, quis abri-la. Eu lhe mostrei a lagarta.
            Como se jamais tivesse visto nada no mundo, Ana Luiza ficou maravilhada.
            Olhou-a.
            Num tempo que me pareceu eterno.
            Até que seus dedos fizeram uma pinça e ela retirou o pequeno bicho de minha mão. Escancarou a boca. E eu, percebendo o movimento, lhe bati no braço, lançando a lagarta na lama.
            Com um dos braços, minha tia me empurrou para trás. Cai na lama, torcendo perigosamente o tornozelo, como a radiografia daquela tarde iria mostrar, os ossos ficaram mais separados do que o normal, um pouco mais e poderia ter quebrado ou ao menos trincado...
            Minha tia, que não se importou com meu grito, correu atrás da lagarta, que ainda se retorcia sobre a terra, agarrou-a, e a engoliu. Na verdade não, ela a comeu... Mastigou lentamente o pequeno animal, saboreou-o, acho que até o degustou-o antes de engolir. Nos cantos da boca ainda com terra, úmida e escura.
            Minha mãe foi quem nos encontrou. Embora tenha sido minha avó quem escutou o grito.
            Tiveram que me ajudar a andar... Demorou muito.
            O tornozelo latejava... A cabeça latejava... As ideias latejavam...
            A partir dai comecei a ter problemas com as lagartas.
            Sonhava com a boca de minha tia as mastigando, lentamente... A saliva se misturando com os interiores coloridos das lagartas. As vezes os sonhos se uniam, via Lívia-lagarta ser mastigada, e então tia Ana Luiza sendo queimada viva... Também via-me frequentemente sendo perseguida por lagartas, e eu corria, desesperada, jamais soube o que aconteceria se elas conseguissem chegar a mim, mas sempre soube que não era algo bom.
            Passei a evitar minha tia.
            Comecei a entender o peso de minha avó.
            Eu, que ficava apenas algumas semanas naquela casa de campo, sentia-me angustiada. Jamais soube como minha avó conseguiu aguentar anos com Lívia e tia Ana Luiza, e todas as preocupações que vinham junto delas. Era um fardo por demais grande. Talvez o fato de sentir-se responsável por sua filha a fizesse continuar. Não sei... Talvez jamais chegue a entender.
            Compreendi a lagarta e a loucura.
            Passei a gostar menos ainda da fazenda. Perdera minha única distração... Não havia mais nada para fazer. Então tentava ajudar nas coisas da casa.
            E, infelizmente, também com Lívia.
            Nunca conseguimos nos dar bem, eu ainda a odiava, as vezes como resquício da infância, as vezes como situação atual. Continuava a cuspir em mim, mas agora eu sabia prever quando o faria, e desviava da maioria. Sentia-me orgulhosa. Você errou! Eu queria gritar. Ficava as vezes a ver a baba branca no piso, o rosto transtornado de Lívia. Agora tinha ela também tanta raiva de mim quanto eu dela. Na verdade, nessa época, talvez ela me odiasse mais, era a primeira vez que estava vencendo, e sentia-me ótima, e esse era seu maior incômodo.
            Deixei de buscar lagartas para Lívia.
            Mas ela continuava a me apontar onde estavam escondidas.
            As vezes eu até as pegava, mas tão logo as tinha em mãos, as jogava para fora da janela. Lívia urrava.
            Talvez esse tenha sido o grande começo do ódio dela em direção a mim.
            Este se nutriu com o tempo.
            Eu ia crescendo. Lívia parecia se alongar, levemente. Mas nunca soube direito, vivia envolta em cobertas, roupas largas, mantas... Ainda assim mantinha a expressão infantil, o rosto débil, os finos cabelos das crianças, mas que pareciam lentamente rarear em sua pequena cabeça. Entretanto suas mãos, pequenas e gorduchas continuavam as mesmas.
            Ficava na duvida sobre seu crescimento.
            Mas pouco me demorava nessa questão. Eu já estava grande, e queria fugir de toda essa história.
            Fugi.
            Casei-me e fui embora.
            Achei que nada me aconteceria, que estava livre de tudo.
            Chegou-me uma carta dizendo que minha avó havia falecido. Informava a data do velório... Não soube bem o que fazer. Ir, ficar? Temia qualquer possibilidade de voltar a fazenda e reviver a história. Telefonei para minha mãe, ela me afirmou que estava indo morar na casa de campo. Tranquilizei-me...
            Não teria meu destino arruinado!
            Acabei por ir ao velório, e então voltar para os braços de meu marido. Feliz, calma, radiante. Eu podia viver aquilo, eu não precisava voltar para as lagartas.
            Minha mãe não teve tanta sorte. Tinha agora a irmã, Ana Luiza, e a sobrinha, Lívia, para cuidar. Havia se divorciado de meu pai a alguns anos já, e não tinha mais ninguém com quem contar... O tempo passou. E minha tia também veio a falecer.
            Nesse enterro eu não compareci, temendo que meus pesadelos retornassem. Ainda assim sonhei com o velório... No caixão, minha tia estava bem vestida, mas tinha terra nos cantos da boca, eu me inclinava para limpar, e lagartas saiam das flores, e do forro do caixão, logo minha tia estava coberta por elas... Os presentes corriam para de encontro com as lagartas e as devoravam, sobre o cadáver de minha tia. Todas as vezes eu queria gritar, mas em minha língua também escorregava uma lagarta... Era Lívia. Ela caia em minhas mãos e rodava e rolava, e como eu não a apertava, ela começava a crescer, forçando a si mesma a explodir. Não explodia. Ficava tão grande que me escorria pelas mãos e caia no chão com um baque... Percebia então que era a Lívia, já não mais lagarta, e sim pessoa. Tinha o crânio rachado, e dele saiam pedaços do cérebro e também uma vasta quantidade de sangue. Ela ainda gaguejava palavras incoerentes. Eu assustada e tremendo, tentava entender o que ela dizia... Abaixava-me e aproximava o rosto. E então Lívia cuspia em mim... Um sangue e baba viscosos...
            Eu chorava.
            No sonho e também de verdade. Acordava com os olhos molhados. Tremendo.
            Saia da cama e ia tomar um chá... Um leite... Um café... Qualquer coisa.
            Sonhos me perseguiam as vezes. Mas depois passavam.
            Sumiam. E eu dormia tranquila mais uma vez. Feliz até.
            Mas então minha mãe telefonou. Estava doente. Teria de ficar fora da fazenda por um tempo. Pediu-me para ficar em seu lugar, cuidar das coisas, cuidar de Lívia. Só por alguns dias, ela reforçou ao telefone. Pela família, disse, mas quis dizer, para que não saibam das lagartas e da loucura... Para que isso fique só entre nós.
            Eu concordei. Sem querer concordar.
            Fiz as malas, emburrada.
            Beijei meu marido. Não desejava que ele visse nada de meu passado relacionado com a fazenda, ainda não sabia que teria de ceder, e mostrar a ele ao menos aquele local. E então fui.
            O caminho era longo...
            Mas não longo o suficiente para que eu nunca conseguisse chegar. Então, ao entardecer, eu parava o carro na frente da casa. Apenas a luz da cozinha estava acessa, como minha mãe avisou que deixaria.
            Entrei receosa, carregando a mala. Não havia ninguém na cozinha... O vento passava pelas frestas das janelas, imaginei que as lagartas também. Havia louça na pia, um copo, duas colheres, nada mais. A geladeira ainda fazia um som estranho. Uma maça descansava na fruteira... Tudo parecia tão triste.
            Deixei a mala no chão.
            Gritei por Lívia. Nada... Nem som, nem resmungo... Apenas vento.
            Segui pela casa acendendo as luzes, o céu escurecia rápido, tornando os cômodos negros como breu. Só fui encontrar Lívia no segundo andar, sentada em sua cadeira... Mas Lívia me parecia estranha. Tinha as mãos, pequenas e roliças, mais pequenas e mais roliças do que antes... Ou assim parecia, comparando o corpo que se alongava. Parecia ter crescido, mas nem de longe apresentava um rosto de uma mulher na casa dos 30. Tinha o mesmo olhar débil, os mesmos olhos, o nariz pequeno, a boca que cuspia continuamente... Só os cabelos haviam caído mais, agora tinha apenas uma pequena camada deles, caiam lisos até um pouco abaixo das orelhas. Estavam tão ralos que era possível ver seu couro cabeludo.
            Lívia? Eu a chamei, mas não obtive resposta.
            Não insisti.
            Por algum motivo, naquela tarde, sua visão me dava calafrios.
            Desci, peguei a mala e coloquei-a em meu quarto. Não me preocupei em apagar as luzes. A raiva inicial já sedia lugar ao medo. É por pouco tempo, tentei me tranquilizar. Fui para a cozinha, e remexi o armário em baixo da pia em busca de uma panela. Fervi água para um café, e também fiz uma sopa, precisava enganar o estômago... As borboletas pareciam estar lá dentro. Nervoso, eu repetia a mim mesma. Mas a sensação e a expressão “borboletas no estômago” apenas faziam com que eu me sentisse pior...
            Nessa noite eu chorei. Achando que o mundo era ruim.
            Mas nem tudo foi tão mal.
            A fazenda tinha muitas coisas para me ocupar. E Lívia acabava sendo apenas alguns momentos de meu dia, nada mais que isso. Acabava tão cansada a noite que não tinha sequer forças para sonhar, quanto mais chorar, como fizera no primeiro dia. Estava bem, ficaria bem.
            E assim o tempo foi passando.
            Meu marido me ligava todos os dias, trazia sempre saudade, uma vontade de pegar o carro e ir para casa, de esquecer a fazenda e tudo mais. Mas não dava. Ainda assim eram esses telefonemas que me faziam sorrir o dia inteiro. Quando voltasse... E eu sonhava. Minha mãe me ligava também, mas era bem mais ocasional. Falava vagamente da doença, ninguém lhe explicava o que era, e ela mesma me explicava ainda menos, mas vinha me perguntar das coisas, perguntava de tudo, querendo se certificar de que estava fazendo tudo certo. Eu estava. Ela sempre dizia que estava orgulhosa. Perguntava por Lívia, eu lhe jogava algumas palavras... Não sabia bem o que falar de Lívia... Não sabia se ela estava bem.
            Lívia era um mistério.
            Passava o dia em sua cadeira. Na grande sala de leitura. No meio do pó, do silêncio e das lagartas que perambulavam por lá...
            Não me dizia nada.
            Mas comia tudo que colocava em sua frente... Mas isso se eu saísse da sala, nunca comia comigo perto. Não sabia o porque.
            Engordava. Parecia crescer... Mas aquele rosto de criança me colocava em dúvida.
            E eu duvidava.
            Dizer o que sobre ela? Eu não sabia.
            As vezes ainda me apontava uma ou outra lagarta que andava por sobre o tapete ricamente bordado, eu ignorava o pequeno dedo dela, a frustração no olhar. As vezes eu a flagrava brincando com uma lagarta em suas mãos... Nunca soube como conseguia apanhá-las. As vezes lhe arrancava da mão, mas acabei parando depois dela me morder... Comecei a deixar as lagartas a seu bel prazer...
            A mordida de Lívia havia sido funda. Suficientemente dolorida e preocupante para me fazer sair da fazenda, com a mão enrolada em um pano, e dirigir até a cidade. Xingando de tempos em tempos. E vendo o sangue empapar o pequeno pano de pia que peguei do varal enquanto corria para o carro. O ódio me revirava e me revivia tanta coisa de meu passado. Vontade de cuspir em Lívia... De lhe fazer ser lagarta em minhas mãos...
            No hospital tive que tomar várias injeções, suturar o corte, receber receitas...
            Aproveitei o dia para ir para casa, e ficar com meu marido. Voltaria á fazenda na manhã seguinte. Nada de mais.
            Voltei. Novamente sem querer voltar. E fiquei.
            Estava começando a ficar com medo. Cada vez mais havia roupas minhas dentro do guarda-roupa. Vários pares de sapatos. Algumas vezes meu marido apareceu para ficarmos um final de semana inteirinho juntos... Temia, de repente, estar morando ali...
Minha mãe parecia estar ficando cada vez pior.
            Ninguém entendia o porque.
            Eu entendia menos ainda... E temia mais.
            Temia por ela, mas também por mim. Temia pela fazenda, pelo futuro, pelo marido...
            Mas tão logo esses medos vinham, eu os tirava da cabeça, com trabalho ou palavras reconfortantes. Calma, logo ela esta de volta. Mas nenhum telefonema vinha para me livrar da situação. Nada sobre minha mãe. E meu coração se apertava.
            Então me telefonaram.
            O médico disse para vir, e eu fui. Tremia dos pés a cabeça. Me indicou o quarto em que ela estava, e eu fui na direção apontada. Quando entrei encontrei uma moça magra sob as cobertas brancas, tinha os olhos castanhos cansados, na boca um sorriso fraco, as maças do rosto saltadas, os cabelos lhe caiam pelo travesseiro como longas linhas, como cabelos de uma boneca, as mãos estavam finas, e os braços que pareciam galhos descansavam sobre a coberta, apoiando-se no corpo... Minha mãe.
            Sorriu-me mais quando viu que era eu.
            Ora! Finalmente! Foi isso o que me disse.
            Explicou-me que estivera tentando falar comigo a bastante tempo já, mas que os médicos não deixavam, falavam que isso poderia deixa-la mais nervosa. Minha mãe sempre foi bastante nervosa. Mas, como nenhum tratamento parecia estar sendo eficiente, finalmente decidiram acatar sua decisão e eu fui chamada. Não havia nada de mais para me falar, mas disse que sentia saudade de minha presença.
            Passei a tarde ali. No hospital. Falamos de coisas triviais, e rimos de bobeiras... E essas coisas que mãe e filha fazem juntas.
            Mas, na hora de ir embora, as mãos de minha mãe agarraram meu braço. Se alguma coisa me acontecer tome conta da fazenda, sim? Ela me perguntou. Eu apenas maneei a cabeça, um aceno leve. Foi o suficiente para que soltasse o meu braço. Beijei-lhe o rosto e fui.
            Ainda assim no peito ficava uma sensação ruim.
            Uma dor.
            Dentro do carro, chorei ao volante. Chorei pelas mãos, agora fracas, de minha mãe.
            Voltei para a fazenda. Desolada.
            Mas tive que me esquecer do episódio.
            As coisas tornavam-se difíceis. Lívia parecia cada vez mais propensa a ataques... Não sei dizer se vinham da raiva, do medo, de alguma dor ou tristeza. Mas ela gritava, como se estivesse a queimar por dentro. Lagartas, eu pensava. Nada me falava. Eu a via se contorcer em sua cadeira. Grunhia. Ficava pensando no que deveria fazer... De devia leva-la a algum hospital. Se devia chamar alguém... Não sabia. Mas como os ataques, começados do nada, também terminavam sem explicação, acabava deixando por isso mesmo.
            Talvez estivesse sentindo falta de alguma coisa... Quem sabe, não era de sua tia, minha mãe?
            Lívia parecia ainda mais distante. E, embora fosse preocupante, isso também me era consolador. Cuspia menos. Desse jeito ela facilitava meu trabalho.
            Tinha sempre muito que pensar, que fazer, como agir, resolver os problemas... Havia sempre problemas! Quase como se não houvesse espaço para mais nada em minha vida. Pensava continuamente em voltar para a minha casa. Nesse ponto, meu marido já estava morando comigo na fazenda, ficava mais ou menos uns 3 ou 4 dias da semana por aqui, dependia muito da demanda do emprego. Não se mudou definitivamente porque eu não queria acreditar que havíamos nos mudado para cá... Não. Dessa vez não.
            Eu ainda ficava imaginando voltar para a cidade. A minha cama, grande e deliciosa. Minhas estantes de livros. Minha televisão. Todo o conforto e felicidade do mundo, ao lado de meu amor. Tudo perfeito!
            Eu acreditava. Sonhava.
            Mas então minha mãe morreu.
            E eu soube que isso era o fim.
            Telefonaram-me. E eu atendi sem desconfiar de nada. Solucei até. Era o fim. Perdera o último ente de minha família que eu realmente gostava... Sobrara apenas eu... E Lívia.
            Os dias se passaram pesados nessa época.
            Eu mal percebia Lívia. Lívia mal me percebia.
            Os ataques de Lívia diminuíram. E ela parecia crescer, mesmo mantendo os braços e pernas curtos... Mas eu reparava pouco. Falava pouco. Queria só silêncio.
            Fui ao enterro.
            O céu estava nublado. Havia uma brisa leve que parecia denunciar a chuva que se seguiria. Fiquei conversando e ouvindo histórias sobre minha mãe. Quanto não daria para sentir uma última vez ela me segurar o braço com força e falar brava comigo. Devo ter herdado sua raiva, sua forma de falar, contestadora, brava, rígida. Criou-me forte, mas eu era cheia de fissuras. Sua presença faria falta.
            Sua ausência era sufocante.
            Voltei para a minha casa da cidade...
            Mas não conseguia dormir...
            Ficava a pensar... Incomodada como nunca.
            No meio da madrugada acordei meu marido. Vou lá para a fazenda. O que? Ele disse, ensonado. Vou para a fazenda, volto logo, fique aqui e durma. Ele me ignorou dessa vez.
            Escrevi-lhe um bilhete, temendo que não se lembrasse da conversa. E fui, embrulhada em um casaco antigo, ainda vestindo pijamas.
            A noite estava calma, e logo eu cheguei. Entrei pela porta da cozinha. Não havia barulho algum. Não me incomodei com as luzes... Fazia agora tanto tempo que estava por ali que não fazia sentido ficar temendo monstros na casa. Subi as escadas. Decidi por ir para meu quarto, cheguei a acender a luz ainda sem entrar... Mas por algum motivo, decidi, no último instante que daria uma olhada em Lívia antes. Deixei a porta de meu quarto  aberta, a luz acessa, assim podia distinguir melhor a sala de leitura.
            Estranhamente Lívia não estava em sua cadeira...
            No chão estavam suas pequenas peças de roupa...
            E, no canto, onde se encontravam o teto e a parede, pendia uma grande crisálida... Não completamente formada, mas na metade do caminho. Mas ao invés de uma lagarta, era Lívia que estava ali...
            Fiquei observando-a por um tempo que me pareceu eterno. Tempo que era fruto do medo, do desespero, mas também do sonho e da fantasia.
            Não lhe chamei o nome. Não disse nada.
            Sai da sala. Apaguei a luz do quarto. Tranquei a porta da cozinha e fui para o carro.
            Dirigi até em casa, e me deitei...
            No dia seguinte vendi a fazenda por um preço absurdamente barato.
            Nunca mais ouvi falar de Lívia.