Lívia era a estranha em nossa
família.
Lívia,
pequena e mirrada, com seus braços e pernas curtas.
Lívia,
minha prima, mas de quem eu não gostava...
Minha
tia, Ana Luiza, era a mãe de Lívia. Mas vivia em um estado ausente, sem
entender, por vezes, o que realmente estava se passando. Minha avó, e também
minha mãe, falavam que tudo isso era por causa do acidente de carro, no qual,
inclusive, meu primo e tio morreram, e que fizeram com que tia Ana Luiza
ficasse louca.
Não
louca... Minha mãe me repreendia quando dizia que alguém era louco,
especialmente quando era da família... Sempre dizia que se eu falasse assim,
logo todo o resto da cidade também falaria, e a família ficaria marcada, e me
perguntava, num tom forte e desafiador, é isso o que você quer? Mas eu não
sabia bem o que queria...
Queria
que Lívia não cuspisse em mim...
Lívia
e sua baba. Vivia constantemente de boca aberta, olhando um mundo invisível,
balbuciando palavras incompreensíveis, e me assustando com seus gritos.
Tudo
culpa das lagartas. Isso era o que minha avó achava.
A
culpa estava nas lagartas.
Demorou
anos até entender.
Antes,
quando pequena, simplesmente não fazia sentido. Lívia era estranha por causa
das lagartas... Eu recordava a fala da avó, e ficava a espionar a prima, como
se pudesse entender. Nunca entendia. Saia então ao jardim, na busca das
lagartas, como se elas tivesse uma melhor capacidade de explicar do que Lívia.
Perseguia
lagartas a manhã inteira. Subia com elas nas árvores, ficava a vigiar os
pássaros para que elas pudessem comer tranquilamente, aprendia a diferenciá-las
e também a encontra-las em todas as situações. Não me davam respostas, mas
faziam-me uma companhia melhor que a de Lívia quando estava na antiga casa
rural em que minha avó vivera a vida toda, e que agora também abrigava tia Ana
Luiza e Lívia.
Havia
muitas lagartas, o ano todo, o tempo todo. Elas corriam pelas frestas da janela
da casa e entravam... Faziam casulos nas paredes, atrás da televisão, entre os
livros da estante... Uma ocupação lenta, mas formidável! Não havia ninguém que
pudesse impedi-las. Eu brincava com elas, as adorava. Mas só até minha mãe
descobrir.
Quando
soube, segurou meu braço com força, seus dedos prensando a carne até a região
ficar vermelha, os nós dos dedos de minha mãe, brancos. Falou ríspida, que
diabos você esta fazendo menina? Quer ficar louca? Eu teria respondido alguma
coisa, provavelmente brava, tanto pela forma ríspida quanto pelo fato de usar a
palavra louca... Que eu não podia usar, mas os olhos de minha mãe estavam
desesperados, brilhantes que lágrimas que ela não chorou, que eu não entendia,
mas ainda assim ali, presentes, resquício de alguma história que não me foi
dita. Calei-me. E ela disse finalmente, largando meu braço, não faça mais isso.
Mas
as lagartas ainda me encantavam... Estranhamente encantavam Lívia também. Era
nossa única ligação.
Lívia
parecia saber onde as lagartas se escondiam ainda melhor do que eu e, quando
minha mãe estava longe e Lívia controlada, ela me apontava com seus pequenos
dedos roliços locais onde as lagartas estavam escondidas em uma sala. Eu seguia
suas dicas, e segurava na mão várias delas, que depositávamos entre nós duas.
Nosso tesouro. Mas Lívia era desajeitada, ou quem sabe, cruel, e suas mãos
terminavam por amassar e rasgar as lagartas, delas saia um denso líquido,
algumas vezes lembro-me de serem verde, outras de um negro com um leve tom
rubro... Tudo muito triste. Eu ficava
indignada e lhe arrancava as lagartas da mão. E então Lívia gritava...
Gritava
como se estivesse a morrer...
A
lhe nascer um filho...
A
lhe esfacelar a carne...
E
eu, com medo, atirava todas as lagartas pela janela, as vezes até mesmo do
segundo andar, sem nenhuma hesitação. Se mamãe descobre, e se mamãe descobre?
Pensava. Quando podia também eu pulava a janela e fugia, ia me embrenhar nas
árvores, até escurecer, esperando que Lívia tivesse diversos ataques de nervos,
vários gritos e urros, e que todos esses episódios se confundissem e que
ninguém descobrisse minha parcela de culpa em um deles. Nem sempre isso
acontecia, eu voltava e era investigada... O que você fez para Lívia ficar
nervosa? Nada, eu respondia...
Ficava
sem sobremesa, sem televisão, sem brinquedos, sem comida até. Mas não falava
das lagartas... As lagartas não! Era perigoso eu ficar sem a certeza, vai que
minha mãe me jurava que eu era louca... Até então eu poderia jurar que estava
sã, mas o que fazer depois que sua família lhe aponta a loucura? Eu não sabia.
Lívia,
que parecia ausente, não se esquecia. Na primeira oportunidade cuspia em mim.
Algumas vezes no rosto, mas geralmente no peito. Depois assumia uma expressão
abobada que ninguém, inclusive eu mesma em alguns momentos, poderia afirmar que
ela fizera de propósito...
O
cuspe escorria lento...
Eu
chorava... De raiva.
Mãe!
A Lívia cuspiu em mim de novo! Gritava, como se alguém da casa fosse fazer
alguma coisa. Não faziam. E eu ficava a arder por dentro, com um ódio que não
nutria por mais nada, por mais ninguém que não Lívia.
As
vezes, em sonho, trocávamos de lugar, eu era Lívia, mas Lívia nunca era eu...
Lívia era uma lagarta. Eu a rolava com meus dedos, pequenos e roliços, eu a
apertava, a princípio delicadamente, depois mais forte. Eu a via correr
desesperada pela mesa, e impedia seu caminho. Virava-a de barriga para cima,
prendia-a nessa situação com o indicador, suas pernas mexiam-se no ar, seu
corpo se retorcia numa tentativa vã de virar e então correr, eu não deixava...
Quanto mais ela esperneava, mais eu a apertava. Via as pequenas mandíbulas se
abrirem num desespero, a pequena cabeça rodar, o corpo vermiforme debatia-se,
debatia-se... Sentia o êxtase do poder! Soltava-a... Via-a correr, e então me
divertia em repetir a situação... Mas então Lívia explodia. Dela saia um
líquido branco... Espirava em mim sempre. E de seu corpo mutilado gritos
surgiam, eram urros, eram vaias, eram... Não sei bem o que.
Eu
tentava tapar os ouvidos... Mas tornavam-se mais fortes.
Não
tinha tempo de me preocupar com os ouvidos sangrando, os tímpanos destruídos.
Todas as vezes, o estranho líquido branco lentamente começava a queimar, e
então tornava-se fogo. Não o vermelho das fogueiras noturnas. Mas o azul e
branco dos maçaricos... E eu queimava... Meus gritos sobrepunham os gritos
vindos do corpo de Lívia-lagarta, e gritávamos duas vezes mais alto, mais
forte, com mais dor.
Acordava
embebida em suor... Mas, muito pior, mortificada de medo.
Sentia
a cabeça pesada, como se tivesse explodido.
Os
dedos do pé e das mãos formigavam incomodamente. No peito, uma palpitação desesperada.
Meus olhos ardiam.
Mas meu ódio... Meu
ódio morria em lugar do medo, tornava-me só medo. Ficava dias sem sequer chegar
a colocar os olhos em Lívia, fugia das lagartas, passava o tempo todo em meu
quarto... Esperando que nada acontecesse. A cada hora que nada acontecia, eu
respirava um pouco mais aliviada... Não vou queimar... Não vou morrer. Chorava
e soluçava... De angustia e de alegria. Sobrevivera.
Nesses dias passava
quase exclusivamente meu tempo na janela de meu quarto. Via as árvores se mexendo,
lentamente. Via a avó andando de um lado para o outro no quintal, fumando um
cigarro escondido. Via minha mãe ao telefone, as vezes falando calmamente,
outras vezes gesticulando de forma enérgica, ralhando com a pessoa que estava
do outro lado. Mas a mais curiosa de todas era tia Ana Luiza... Ela saia com
cuidado, não deveria ir para fora da casa, e remexia em galhos e em folhas,
olhava muito o chão, e para os lados, temendo que qualquer um a avistasse...
Não entendia o que estava fazendo... Pegava algumas coisas, colocava
rapidamente para dentro do casaco...
A atividade durava
horas... As vezes ficava mais de uma hora tentando mover uma mesma pedra sem
nenhuma pausa, só para voltar andar um pouco mais, e como se tivesse esquecido,
voltar a mesma atividade... A pedra continuava avidamente em seu lugar. Mas
minha tia não parecia suspeitar disso tudo.
Tudo terminava
quando minha mãe ou minha avó aparecia, pegava Ana Luiza pelo braço, e a
arrastava para dentro. Minha tia, debilmente, tentava se livrar dos dedos...
Mas os dedos de minha mãe e avó eram muito mais fortes, rígidos como ferro,
tornavam-se grilhões...
Eu perdia minha
diversão...
Ficava então a
contar coisas... A escrever pequenos versos, ler pequenos livros, e viver em
meu pequeno mundo, porque Lívia estava lá fora, e eu a temia nesses dias.
Mas o tempo
passava. E eu não morria... Sequer queimava.
A raiva vinha
lentamente, por condená-la como meu algoz. Fora Lívia que me aprisionara, que
me deixara a exclusão, que me impedia de sair... A culpa era dela! E então o
medo sedia lugar a raiva... Que lentamente sedia lugar ao ódio... Até o medo
voltar.
Não era feliz
durante o tempo que ficava na fazenda de minha avó. Não era. Ia emburrada todas
as vezes que tínhamos que ficar lá, esperneava para não ir, tentava barganhar,
pedia para ficar com papai (como se ele tivesse tempo para mim! ...), cheguei a
odiar as férias por causa da fazenda... E odiar a fazenda por causa de Lívia.
Hoje vejo que Lívia tinha um certo poder, realmente conseguia impregnar as coisas
ao seu redor, mesmo sendo pequena, diminuta, sem quase uma presença corporal,
era capaz de marcar a família inteira, atormentar nossos dias, perseguir-me em
sonho...
Jamais consegui
fugir das viagens... Todas as vezes... Eu acabava na fazenda.
Era como um imã...
E eu estava
condenada a acabar lá, sempre.
Mas os anos em que
passei por lá foram úteis. Aprendi várias coisas da fazenda em si. Não sabia,
mas ela viria a parar em minhas mãos, com um misto de felicidade, medo e também
raiva... Sempre existiu uma parcela de raiva em mim. Mas quanto á fazenda, era
porque ela me lembrava de tanta coisa... E eu achei que, casando, conseguiria
fugir de toda a história...
Família louca...
Eu não falava, mas
mesmo assim as outras pessoas diziam. Comentavam por ai. Eu bem sabia...
Falavam de minha
tia como uma coitada... Caiu louca depois do acidente... E ainda mais! Acabou
prejudicando a filha!
Eu não entendia o
que queria dizer com isso... Tia Ana Luiza era meio estranha, mas não fazia
nada a Lívia... Era a filha que era o problema! Eu quis gritar para as pessoas.
Minha mãe via me ficando emburrada e logo segurava meu braço, com força, dedos
brancos, o braço vermelho, eu entendia que era para me calar. Engolia...
Família louca, eles
diziam... Mas nenhum jamais vira Lívia, nem a entendia.
Também eu não a
entendia. Eu apenas a odiava...
Mas também lhe
dividia as lagartas.
A fazenda era cheia
de lagartas... Tantas que não cabiam nas mãos juntas, caiam por entre os dedos,
como uma cascata de vermes, como um punhado de lenços, como somente lagartas
conseguem ao se esgueirar para fora das mãos das crianças e cair na terra
molhada. Eram tudo o que tinha de mais precioso ali, na infância.
Depois as lagartas
tornaram-se um estorvo.
Eu
já estava com quinze, quando finalmente entendi porque minha mãe quase chorou
ao saber que eu brincava com lagartas. Nessa época as lagartas ainda era minha
maior diversão. Não conseguia ler na fazenda, não conseguia estudar, não
conseguia ouvir músicas, nem conseguia ficar dentro da casa livremente, se não
fosse meu quarto... Quarto que me enjoava, que me lembrava de pesadelos...
Saia.
Deambulava
por ai.
Caçava
lagartas.
Num
desses dias minha tia me apareceu no jardim. Ainda vestia um camisolão
desalinhado sobre o corpo magro, tinha o cabelo castanho, que vira nas fotos
sempre tão bonito, desarrumado. Andava curva, temendo que alguém fosse vê-la,
fugia de coisas invisíveis, falava consigo mesma não me notando. Olhou-me com
medo de que eu fosse agarrá-la. Mas eu achava graça de vê-la andar por ai,
achava até mesmo que devia! Ficar o tempo todo dentro da casa lhe faria mal,
assim pensava. Ela ia passando quando notei seus pés descalços.
Assustei-me!
A fazenda era cheia de espinhos, pedras e bichos! Ela não podia andar descalça.
Resoluta, eu peguei a lagarta que estava observando, e fui em direção a minha
tia. Com a mão livre lhe segurei o ombro, fazendo com que ela olhasse, com
grandes olhos arregalados, para mim. Tia, precisamos voltar, você esta sem
sapatos, eu disse. Mas ela apenas reparou em minha mão fechada, e com seus
dedos, finos como galhos, quis abri-la. Eu lhe mostrei a lagarta.
Como
se jamais tivesse visto nada no mundo, Ana Luiza ficou maravilhada.
Olhou-a.
Num
tempo que me pareceu eterno.
Até
que seus dedos fizeram uma pinça e ela retirou o pequeno bicho de minha mão.
Escancarou a boca. E eu, percebendo o movimento, lhe bati no braço, lançando a
lagarta na lama.
Com
um dos braços, minha tia me empurrou para trás. Cai na lama, torcendo
perigosamente o tornozelo, como a radiografia daquela tarde iria mostrar, os
ossos ficaram mais separados do que o normal, um pouco mais e poderia ter
quebrado ou ao menos trincado...
Minha
tia, que não se importou com meu grito, correu atrás da lagarta, que ainda se
retorcia sobre a terra, agarrou-a, e a engoliu. Na verdade não, ela a comeu...
Mastigou lentamente o pequeno animal, saboreou-o, acho que até o degustou-o
antes de engolir. Nos cantos da boca ainda com terra, úmida e escura.
Minha
mãe foi quem nos encontrou. Embora tenha sido minha avó quem escutou o grito.
Tiveram
que me ajudar a andar... Demorou muito.
O
tornozelo latejava... A cabeça latejava... As ideias latejavam...
A
partir dai comecei a ter problemas com as lagartas.
Sonhava
com a boca de minha tia as mastigando, lentamente... A saliva se misturando com
os interiores coloridos das lagartas. As vezes os sonhos se uniam, via
Lívia-lagarta ser mastigada, e então tia Ana Luiza sendo queimada viva...
Também via-me frequentemente sendo perseguida por lagartas, e eu corria,
desesperada, jamais soube o que aconteceria se elas conseguissem chegar a mim,
mas sempre soube que não era algo bom.
Passei
a evitar minha tia.
Comecei
a entender o peso de minha avó.
Eu,
que ficava apenas algumas semanas naquela casa de campo, sentia-me angustiada.
Jamais soube como minha avó conseguiu aguentar anos com Lívia e tia Ana Luiza,
e todas as preocupações que vinham junto delas. Era um fardo por demais grande.
Talvez o fato de sentir-se responsável por sua filha a fizesse continuar. Não
sei... Talvez jamais chegue a entender.
Compreendi
a lagarta e a loucura.
Passei
a gostar menos ainda da fazenda. Perdera minha única distração... Não havia
mais nada para fazer. Então tentava ajudar nas coisas da casa.
E,
infelizmente, também com Lívia.
Nunca
conseguimos nos dar bem, eu ainda a odiava, as vezes como resquício da
infância, as vezes como situação atual. Continuava a cuspir em mim, mas agora
eu sabia prever quando o faria, e desviava da maioria. Sentia-me orgulhosa.
Você errou! Eu queria gritar. Ficava as vezes a ver a baba branca no piso, o
rosto transtornado de Lívia. Agora tinha ela também tanta raiva de mim quanto
eu dela. Na verdade, nessa época, talvez ela me odiasse mais, era a primeira
vez que estava vencendo, e sentia-me ótima, e esse era seu maior incômodo.
Deixei
de buscar lagartas para Lívia.
Mas
ela continuava a me apontar onde estavam escondidas.
As
vezes eu até as pegava, mas tão logo as tinha em mãos, as jogava para fora da
janela. Lívia urrava.
Talvez
esse tenha sido o grande começo do ódio dela em direção a mim.
Este
se nutriu com o tempo.
Eu
ia crescendo. Lívia parecia se alongar, levemente. Mas nunca soube direito,
vivia envolta em cobertas, roupas largas, mantas... Ainda assim mantinha a
expressão infantil, o rosto débil, os finos cabelos das crianças, mas que
pareciam lentamente rarear em sua pequena cabeça. Entretanto suas mãos,
pequenas e gorduchas continuavam as mesmas.
Ficava
na duvida sobre seu crescimento.
Mas
pouco me demorava nessa questão. Eu já estava grande, e queria fugir de toda
essa história.
Fugi.
Casei-me
e fui embora.
Achei
que nada me aconteceria, que estava livre de tudo.
Chegou-me
uma carta dizendo que minha avó havia falecido. Informava a data do velório...
Não soube bem o que fazer. Ir, ficar? Temia qualquer possibilidade de voltar a
fazenda e reviver a história. Telefonei para minha mãe, ela me afirmou que
estava indo morar na casa de campo. Tranquilizei-me...
Não
teria meu destino arruinado!
Acabei
por ir ao velório, e então voltar para os braços de meu marido. Feliz, calma,
radiante. Eu podia viver aquilo, eu não precisava voltar para as lagartas.
Minha
mãe não teve tanta sorte. Tinha agora a irmã, Ana Luiza, e a sobrinha, Lívia,
para cuidar. Havia se divorciado de meu pai a alguns anos já, e não tinha mais
ninguém com quem contar... O tempo passou. E minha tia também veio a falecer.
Nesse
enterro eu não compareci, temendo que meus pesadelos retornassem. Ainda assim sonhei
com o velório... No caixão, minha tia estava bem vestida, mas tinha terra nos
cantos da boca, eu me inclinava para limpar, e lagartas saiam das flores, e do
forro do caixão, logo minha tia estava coberta por elas... Os presentes corriam
para de encontro com as lagartas e as devoravam, sobre o cadáver de minha tia.
Todas as vezes eu queria gritar, mas em minha língua também escorregava uma
lagarta... Era Lívia. Ela caia em minhas mãos e rodava e rolava, e como eu não
a apertava, ela começava a crescer, forçando a si mesma a explodir. Não
explodia. Ficava tão grande que me escorria pelas mãos e caia no chão com um
baque... Percebia então que era a Lívia, já não mais lagarta, e sim pessoa.
Tinha o crânio rachado, e dele saiam pedaços do cérebro e também uma vasta
quantidade de sangue. Ela ainda gaguejava palavras incoerentes. Eu assustada e
tremendo, tentava entender o que ela dizia... Abaixava-me e aproximava o rosto.
E então Lívia cuspia em mim... Um sangue e baba viscosos...
Eu
chorava.
No
sonho e também de verdade. Acordava com os olhos molhados. Tremendo.
Saia
da cama e ia tomar um chá... Um leite... Um café... Qualquer coisa.
Sonhos
me perseguiam as vezes. Mas depois passavam.
Sumiam.
E eu dormia tranquila mais uma vez. Feliz até.
Mas
então minha mãe telefonou. Estava doente. Teria de ficar fora da fazenda por um
tempo. Pediu-me para ficar em seu lugar, cuidar das coisas, cuidar de Lívia. Só
por alguns dias, ela reforçou ao telefone. Pela família, disse, mas quis dizer,
para que não saibam das lagartas e da loucura... Para que isso fique só entre
nós.
Eu
concordei. Sem querer concordar.
Fiz
as malas, emburrada.
Beijei
meu marido. Não desejava que ele visse nada de meu passado relacionado com a
fazenda, ainda não sabia que teria de ceder, e mostrar a ele ao menos aquele
local. E então fui.
O
caminho era longo...
Mas
não longo o suficiente para que eu nunca conseguisse chegar. Então, ao
entardecer, eu parava o carro na frente da casa. Apenas a luz da cozinha estava
acessa, como minha mãe avisou que deixaria.
Entrei
receosa, carregando a mala. Não havia ninguém na cozinha... O vento passava
pelas frestas das janelas, imaginei que as lagartas também. Havia louça na pia,
um copo, duas colheres, nada mais. A geladeira ainda fazia um som estranho. Uma
maça descansava na fruteira... Tudo parecia tão triste.
Deixei
a mala no chão.
Gritei
por Lívia. Nada... Nem som, nem resmungo... Apenas vento.
Segui
pela casa acendendo as luzes, o céu escurecia rápido, tornando os cômodos
negros como breu. Só fui encontrar Lívia no segundo andar, sentada em sua
cadeira... Mas Lívia me parecia estranha. Tinha as mãos, pequenas e roliças,
mais pequenas e mais roliças do que antes... Ou assim parecia, comparando o
corpo que se alongava. Parecia ter crescido, mas nem de longe apresentava um
rosto de uma mulher na casa dos 30. Tinha o mesmo olhar débil, os mesmos olhos,
o nariz pequeno, a boca que cuspia continuamente... Só os cabelos haviam caído
mais, agora tinha apenas uma pequena camada deles, caiam lisos até um pouco
abaixo das orelhas. Estavam tão ralos que era possível ver seu couro cabeludo.
Lívia?
Eu a chamei, mas não obtive resposta.
Não
insisti.
Por
algum motivo, naquela tarde, sua visão me dava calafrios.
Desci,
peguei a mala e coloquei-a em meu quarto. Não me preocupei em apagar as luzes.
A raiva inicial já sedia lugar ao medo. É por pouco tempo, tentei me
tranquilizar. Fui para a cozinha, e remexi o armário em baixo da pia em busca
de uma panela. Fervi água para um café, e também fiz uma sopa, precisava
enganar o estômago... As borboletas pareciam estar lá dentro. Nervoso, eu
repetia a mim mesma. Mas a sensação e a expressão “borboletas no estômago”
apenas faziam com que eu me sentisse pior...
Nessa
noite eu chorei. Achando que o mundo era ruim.
Mas
nem tudo foi tão mal.
A
fazenda tinha muitas coisas para me ocupar. E Lívia acabava sendo apenas alguns
momentos de meu dia, nada mais que isso. Acabava tão cansada a noite que não
tinha sequer forças para sonhar, quanto mais chorar, como fizera no primeiro
dia. Estava bem, ficaria bem.
E
assim o tempo foi passando.
Meu
marido me ligava todos os dias, trazia sempre saudade, uma vontade de pegar o
carro e ir para casa, de esquecer a fazenda e tudo mais. Mas não dava. Ainda
assim eram esses telefonemas que me faziam sorrir o dia inteiro. Quando
voltasse... E eu sonhava. Minha mãe me ligava também, mas era bem mais
ocasional. Falava vagamente da doença, ninguém lhe explicava o que era, e ela
mesma me explicava ainda menos, mas vinha me perguntar das coisas, perguntava
de tudo, querendo se certificar de que estava fazendo tudo certo. Eu estava.
Ela sempre dizia que estava orgulhosa. Perguntava por Lívia, eu lhe jogava
algumas palavras... Não sabia bem o que falar de Lívia... Não sabia se ela
estava bem.
Lívia
era um mistério.
Passava
o dia em sua cadeira. Na grande sala de leitura. No meio do pó, do silêncio e
das lagartas que perambulavam por lá...
Não
me dizia nada.
Mas
comia tudo que colocava em sua frente... Mas isso se eu saísse da sala, nunca
comia comigo perto. Não sabia o porque.
Engordava.
Parecia crescer... Mas aquele rosto de criança me colocava em dúvida.
E
eu duvidava.
Dizer
o que sobre ela? Eu não sabia.
As
vezes ainda me apontava uma ou outra lagarta que andava por sobre o tapete
ricamente bordado, eu ignorava o pequeno dedo dela, a frustração no olhar. As
vezes eu a flagrava brincando com uma lagarta em suas mãos... Nunca soube como
conseguia apanhá-las. As vezes lhe arrancava da mão, mas acabei parando depois
dela me morder... Comecei a deixar as lagartas a seu bel prazer...
A
mordida de Lívia havia sido funda. Suficientemente dolorida e preocupante para
me fazer sair da fazenda, com a mão enrolada em um pano, e dirigir até a
cidade. Xingando de tempos em tempos. E vendo o sangue empapar o pequeno pano
de pia que peguei do varal enquanto corria para o carro. O ódio me revirava e
me revivia tanta coisa de meu passado. Vontade de cuspir em Lívia... De lhe
fazer ser lagarta em minhas mãos...
No
hospital tive que tomar várias injeções, suturar o corte, receber receitas...
Aproveitei
o dia para ir para casa, e ficar com meu marido. Voltaria á fazenda na manhã
seguinte. Nada de mais.
Voltei.
Novamente sem querer voltar. E fiquei.
Estava
começando a ficar com medo. Cada vez mais havia roupas minhas dentro do
guarda-roupa. Vários pares de sapatos. Algumas vezes meu marido apareceu para
ficarmos um final de semana inteirinho juntos... Temia, de repente, estar
morando ali...
Minha mãe parecia
estar ficando cada vez pior.
Ninguém
entendia o porque.
Eu
entendia menos ainda... E temia mais.
Temia
por ela, mas também por mim. Temia pela fazenda, pelo futuro, pelo marido...
Mas
tão logo esses medos vinham, eu os tirava da cabeça, com trabalho ou palavras
reconfortantes. Calma, logo ela esta de volta. Mas nenhum telefonema vinha para
me livrar da situação. Nada sobre minha mãe. E meu coração se apertava.
Então
me telefonaram.
O
médico disse para vir, e eu fui. Tremia dos pés a cabeça. Me indicou o quarto
em que ela estava, e eu fui na direção apontada. Quando entrei encontrei uma
moça magra sob as cobertas brancas, tinha os olhos castanhos cansados, na boca
um sorriso fraco, as maças do rosto saltadas, os cabelos lhe caiam pelo travesseiro
como longas linhas, como cabelos de uma boneca, as mãos estavam finas, e os
braços que pareciam galhos descansavam sobre a coberta, apoiando-se no corpo...
Minha mãe.
Sorriu-me
mais quando viu que era eu.
Ora!
Finalmente! Foi isso o que me disse.
Explicou-me
que estivera tentando falar comigo a bastante tempo já, mas que os médicos não
deixavam, falavam que isso poderia deixa-la mais nervosa. Minha mãe sempre foi
bastante nervosa. Mas, como nenhum tratamento parecia estar sendo eficiente,
finalmente decidiram acatar sua decisão e eu fui chamada. Não havia nada de
mais para me falar, mas disse que sentia saudade de minha presença.
Passei
a tarde ali. No hospital. Falamos de coisas triviais, e rimos de bobeiras... E
essas coisas que mãe e filha fazem juntas.
Mas,
na hora de ir embora, as mãos de minha mãe agarraram meu braço. Se alguma coisa
me acontecer tome conta da fazenda, sim? Ela me perguntou. Eu apenas maneei a
cabeça, um aceno leve. Foi o suficiente para que soltasse o meu braço.
Beijei-lhe o rosto e fui.
Ainda
assim no peito ficava uma sensação ruim.
Uma
dor.
Dentro
do carro, chorei ao volante. Chorei pelas mãos, agora fracas, de minha mãe.
Voltei
para a fazenda. Desolada.
Mas
tive que me esquecer do episódio.
As
coisas tornavam-se difíceis. Lívia parecia cada vez mais propensa a ataques...
Não sei dizer se vinham da raiva, do medo, de alguma dor ou tristeza. Mas ela
gritava, como se estivesse a queimar por dentro. Lagartas, eu pensava. Nada me
falava. Eu a via se contorcer em sua cadeira. Grunhia. Ficava pensando no que
deveria fazer... De devia leva-la a algum hospital. Se devia chamar alguém...
Não sabia. Mas como os ataques, começados do nada, também terminavam sem
explicação, acabava deixando por isso mesmo.
Talvez
estivesse sentindo falta de alguma coisa... Quem sabe, não era de sua tia,
minha mãe?
Lívia
parecia ainda mais distante. E, embora fosse preocupante, isso também me era
consolador. Cuspia menos. Desse jeito ela facilitava meu trabalho.
Tinha
sempre muito que pensar, que fazer, como agir, resolver os problemas... Havia
sempre problemas! Quase como se não houvesse espaço para mais nada em minha
vida. Pensava continuamente em voltar para a minha casa. Nesse ponto, meu
marido já estava morando comigo na fazenda, ficava mais ou menos uns 3 ou 4
dias da semana por aqui, dependia muito da demanda do emprego. Não se mudou
definitivamente porque eu não queria acreditar que havíamos nos mudado para
cá... Não. Dessa vez não.
Eu
ainda ficava imaginando voltar para a cidade. A minha cama, grande e deliciosa.
Minhas estantes de livros. Minha televisão. Todo o conforto e felicidade do
mundo, ao lado de meu amor. Tudo perfeito!
Eu
acreditava. Sonhava.
Mas
então minha mãe morreu.
E
eu soube que isso era o fim.
Telefonaram-me.
E eu atendi sem desconfiar de nada. Solucei até. Era o fim. Perdera o último
ente de minha família que eu realmente gostava... Sobrara apenas eu... E Lívia.
Os
dias se passaram pesados nessa época.
Eu
mal percebia Lívia. Lívia mal me percebia.
Os
ataques de Lívia diminuíram. E ela parecia crescer, mesmo mantendo os braços e
pernas curtos... Mas eu reparava pouco. Falava pouco. Queria só silêncio.
Fui
ao enterro.
O
céu estava nublado. Havia uma brisa leve que parecia denunciar a chuva que se
seguiria. Fiquei conversando e ouvindo histórias sobre minha mãe. Quanto não
daria para sentir uma última vez ela me segurar o braço com força e falar brava
comigo. Devo ter herdado sua raiva, sua forma de falar, contestadora, brava,
rígida. Criou-me forte, mas eu era cheia de fissuras. Sua presença faria falta.
Sua
ausência era sufocante.
Voltei
para a minha casa da cidade...
Mas
não conseguia dormir...
Ficava
a pensar... Incomodada como nunca.
No
meio da madrugada acordei meu marido. Vou lá para a fazenda. O que? Ele disse,
ensonado. Vou para a fazenda, volto logo, fique aqui e durma. Ele me ignorou
dessa vez.
Escrevi-lhe
um bilhete, temendo que não se lembrasse da conversa. E fui, embrulhada em um
casaco antigo, ainda vestindo pijamas.
A
noite estava calma, e logo eu cheguei. Entrei pela porta da cozinha. Não havia
barulho algum. Não me incomodei com as luzes... Fazia agora tanto tempo que
estava por ali que não fazia sentido ficar temendo monstros na casa. Subi as
escadas. Decidi por ir para meu quarto, cheguei a acender a luz ainda sem
entrar... Mas por algum motivo, decidi, no último instante que daria uma olhada
em Lívia antes. Deixei a porta de meu quarto aberta, a luz acessa, assim podia distinguir
melhor a sala de leitura.
Estranhamente
Lívia não estava em sua cadeira...
No
chão estavam suas pequenas peças de roupa...
E,
no canto, onde se encontravam o teto e a parede, pendia uma grande crisálida...
Não completamente formada, mas na metade do caminho. Mas ao invés de uma
lagarta, era Lívia que estava ali...
Fiquei
observando-a por um tempo que me pareceu eterno. Tempo que era fruto do medo,
do desespero, mas também do sonho e da fantasia.
Não
lhe chamei o nome. Não disse nada.
Sai
da sala. Apaguei a luz do quarto. Tranquei a porta da cozinha e fui para o carro.
Dirigi
até em casa, e me deitei...
No
dia seguinte vendi a fazenda por um preço absurdamente barato.
Nunca mais ouvi falar de Lívia.