sábado, 13 de dezembro de 2014

Fita

14        Estamos passando de carro por várias ruas. Eu, meu pai, minha irmã...
            Numa das travessas eu vejo você... Sentado num carro, segurando o volante.
            Vejo que você vê meus olhos, mas nós passamos. Pela janela do carro, eu me desprendo do banco, fico com metade do corpo para fora, numa tentativa de te ver...
            O vento arranca a fita de meus cabelos... E nós passamos.
Finalmente...

07        A chuva veio como cavalos correndo por entre os azuis do céu. Eu ainda estava sentada no meio da grama, quando você se levantou e disse que era melhor irmos, antes que também ficássemos doentes. Eu me levantei e ajeitei vestido, sem querer realmente ir. Dobrei sem presa a toalha de piquenique e guardei-a no cesto. Você já estava irritado quando me pegou a mão...
            Lembro-me de suas reclamações. Eu ficaria melhor sem você. Você disse...
            Eu soltei sua mão e perplexo e cheio de raiva você me olhou, mas não mexeu no meu ressentimento, nem no inconformado vinco da minha testa... E se foi. Vi em passos furiosos você se afastar.
            E a chuva, os cavalos e você passaram por cima de mim.

01        Você passa seus dedos pelos meus cabelos, como se fossem longos rios. Eles deslizam...
            Apenas a minha mão consegue segurar você, e é por isso que corremos colina a baixo, que passamos pelo pátio, pela árvore, pelo portão, pelas escadas, pela rua, e pela rua seguinte, que tem aquela cantina deliciosa, pela pequena casa amarela que é minha favorita, pela igreja, pelos prédios e pelo universo.
            Lá no fim, paramos arfantes... Eu apoio minhas mãos nos joelhos, os cabelos sobre o rosto, mas você me dá uma fita, e joga-os para trás.
            Não deixa o vidro dos seus olhos ficar coberto, porque se não, não tenho como saber se ainda estou ai dentro da sua cabeça. E eu não deixei.

04        Dentro dos seus olhos tem longas estrelas, por isso quando estamos deitados no sofá eu sempre peço para que você fique de olhos abertos. Nas paredes surgem pequenas e maravilhosas luzes, que são como pequenos reflexos e cujos movimentos mimetizam meus sonhos e os vagalumes. Você fita o teto, levemente entediado, naquela sensação de conforto absoluto que talvez incomode sua natureza instável. Apenas o desritmado e louco som, cheio de sentidos diferentes, do meu coração é que faz com que você se acalme.
            E eu fico olhando você olhando o teto... E o vazio que lentamente se aproxima de nós.

08        Você tenta se aproximar de mim, e eu me viro chateada. Ainda estou pingando a chuva, ressentimento e vazio.
            Irritado, agora com você mesmo, você passa a mão pelo cabelo, abaixando a cabeça, num gesto claro de desespero e desesperança. Volta a me olhar, preocupado. Arruma a fita nos meus cabelos e fala calmamente comigo. Não deixa esses olhos embaçarem, que se não eu não tenho como ver quem eu sou.

10        Não deixa essas luzes dos seus olhos se apagarem, que eu não vou saber voltar para casa. Eu te digo quando passo as mãos pelas suas costas, arqueadas.
            Você está chorando sobre alguma coisa tão interna que eu mesma não sei o que é, mas a forma com que se dobra é igual ao murchar das plantas, o entortar do ferro sob o maçarico, tem a dor da árvore partida pelo raio. Eu passo os dedos pelas suas costas. Eu assisto você.
            Seus olhos se fecham. Tristemente...
            Eu percebo o quanto está escuro.

12        A gente está se separando... Parece que o chão ao nosso redor está se fragmentando lentamente, e nos pedaços vazios longas sombras surgem.
            Você grita alguma coisa, mas eu não escuto... Pela primeira vez.
            Antes qualquer sussurro seu era audível e eu sabia de suas palavras quando ainda estavam passando pela sua língua, esbarrando num dente ou n’outro... Agora tudo parecia só indistinguível...
Sua mão tenta retirar a fita de meus cabelos, mas eu me afasto mais rápido, e fujo...
Você nunca vai ter a fita de volta.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Eterno

Jamais desejaria a eternidade
Que sufoco deve ser
acordar para sempre assim sozinho...
que tristeza não ter mais pais, amigos, primos, tios
nem mesmo o gato de estimação...
Como deve ser infinitamente triste saber
que sua saudade é infinda
que sua dor é infinda
que sua melancolia infinda se espalha lentamente
pelos dias como uma angustia eterna

De que adianta viver para sempre
se não há mais forças para ver o mundo
nem há mais gosto para ver o mundo
Se até suas pequenas lembranças se perderam
Se a árvore do primeiro beijo foi derrubada
Se sobre o parquinho que correu um estacionamento surgiu
Se suas raízes apodreceram
e até a cidade natal agora te rejeita
Tudo o que sabe e sente é que está só!...

Pela primeira vez entende a palavra ‘completamente’

Também não desejo a morte a ninguém
Eu apenas a reconheço como uma necessidade
talvez, se muito, amiga
que se enrosca em meus cabelos e dorme
aconchegantemente nos meus pensamentos
como um pequeno gato perdido
Sua presença é a sólida revelação do tempo
que não volta...

Se eu pudesse mesmo desejar algo
queria o mundo todo imortal,
menos eu
Queria que todos vivessem a eternidade
menos eu
Para que pudesse viver sem suas mortes
e ainda assim pudesse partir
É de todas as coisas o meu maior egoísmo
não ter esse respeito por vê-los morrer
não ter forças para suas ausências...
Mas eu faria o favor de não atormentá-los com minha efemeridade
eu passaria transparente por suas vidas
num passo leve de ladrão e bailarina
eu passaria como se espera e deve uma brisa fria da manhã,
passaria como as vezes passo, num passo lento
de uns meses perdidos, conversas perdidas, abraços perdidos...
assim, tão distante...
Se isso pudesse ser real...
eu teria só o peso de um papel
ou de um poema esquecido

sábado, 29 de novembro de 2014

É por isso...

É por isso... Que seus olhos longos e seus sorrisos largos me impressionam. É por isso que a forma com que seu ombro curva, lentamente para frente, num segurar pesos invisíveis, me encanta. É por isso que quando fala, de forma simples, mas sempre muito real e verdadeira, suas palavras me embalam. É por isso que eu venho sentindo-me desesperada o tempo todo durante todos os momentos, na sua ausência, na sua presença, no limiar de te encontrar. É por isso que sua imagem me vem à mente... Que sei a forma de seu andar, sei o modo que gesticula, sei o barulho de sua risada, de sua fala, de seus suspiros... Longos e enormes que ecoam em minha mente. É por isso que acordo cedo, que me arrumo, que me faço minimamente apresentável... Mesmo quando triste. É por isso que eu desenho, que eu escrevo, que eu paro umas horas frente ao piano, ao acordeom... Por isso eu escuto as mesmas músicas durante dias. É por causa de tanta coisa que eu não consigo te explicar... Que nem chego perto dos motivos. Mas é por isso mesmo que eu não consigo esquecer...

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O taxi

Estou cansada... Percebo isso vagamente, como se mesmo para constatar esse fato esteja sem energia. Mas é sério, estou cansada. Tenho estado cansada ha bastante tempo já.
            Ao meu lado, no taxi, você monologa longamente. Suas palavras parecem infinitas, cruzando-se umas com as outras e assim elas se tornam uma enorme reza dos dias de hoje, do tempo que não acaba, porque já não se dorme à noite e não se dorme de dia, parte pelo trabalho, parte pela festa. Você fala sobre coisas importantes, como se estivesse a falar para multidões... A única multidão é você e suas vontades.
            Elas também são enormes... Vontades imensas que lhe invadem o peito, que lhe percorrem a carne, que comandam seu corpo, e com isso você cospe algumas palavras para o taxista. Vai para a rua tal. Que temos pressa!
            Mas que pressa? Pressa de quê? Para quê? Para onde?
            Eu não escuto. Eu olho o lado de fora da janela, meio embasada e sem limpeza já ha algum tempo, e vejo as luzes das casas que passam correndo por nós, um ou outro perdido a andar nas ruas ha essa hora absurda da noite. Se eu pudesse estava em casa... Mas se for pensar assim se eu pudesse estava sempre em casa. Estranho conforto.
            Não sei como você conseguiu me arrastar para fora do apartamento de novo. Às vezes acho que um dia você me raptou e nunca mais me deixou voltar...
            Você sorri longamente, estende o braço e o coloca sob meus ombros numa inútil tentativa de nos aproximar quando nós sabemos que estamos tão longe. Não me viro para você, então beija-me os cabelos e me aperta contra seu corpo.
            O taxi corre. Nas ruas vazia ele zune como se fosse um enorme inseto, uma barata gigante que circula as ruas, faz rápidas curvas perigosas no silêncio da noite, passa jogando a água acumuladas nas eventuais poças, mal desvia dos buracos para não perder tempo. Tudo no mundo tem pressa... Você tem pressa também para que as coisas ocorram, que comecem, que acabem. Tudo cabe nas oito horas de um comprimido... Inclusive eu.
            Eu duro muito pouco em sua vida, quase nada em sua mente. Nem minha presença é necessária, porque dentro de sua mente eu faço parte da multidão, lá você me mistura com outros rostos, outras histórias, outras palavras, sai uma quimera da qual você nada se lembra, mas que está bom assim.
            Mas eu não gosto... Não gosto de muita coisa, mas que tenho percorrido... Inutilmente tentado compreender. Eu não sei nada. Nem mesmo sei que não sei nada, tamanha minha ignorância do mundo. Mas sei que não me agrada sua quimera, nem a forma que me afaga os cabelos, nem seu discurso, nem o taxi ou a rua... Nada me toca sentimentalmente, entretanto sinto-me constantemente tocada pelas coisas, como se o universo inteiro tivesse posto as mãos em mim quando tentei abrir caminho para o banheiro da balada que você decidiu me levar.
            Incomodo havia sido a palavra que rodava minha mente. Hoje é cansaço...
            Muitas palavras devem rodar sua mente e elas vazam por sua boca como uma enxurrada. Não tenho ideia sobre o que você monologa nesses últimos tempos, percebi que não valia a pena ouvir ainda no começo, quando você me levou para sair a primeira vez e percebi que não me escutava. Diverti-me também ouvindo algumas coisas no começo e analisando silenciosamente... Mas até isso tem me enfadado.
            Avisos luminosos correm o lado de fora numa mistura de vagalumes e Las Vegas. Vários sons se misturam, bandas tocando em algum ponto da cidade, uma balada aberta logo na esquina seguinte, pessoas bêbadas rindo, carros com volumes no máximo... Que som deverá ter minha cama? Que falam minhas cobertas? Você fala algo sobre ontem... Mas eu não me lembro de ontem mais.
            Você me pergunta alguma coisa. Eu não respondo, mas sorrio, porque sorrir é ainda uma das únicas coisas que sei. Segura minha mão com força, antes de jogar duas notas de vinte para o taxista e reclamar que é um roubo. Você me arrasta para fora do taxi, apoia-se em mim porque está ainda meio bêbado, não tenho ideia de para onde você que seguir, mas caminho para frente como se tivesse alguma ideia.
            ‘É por isso que eu gosto de você!’ você fala depois de uma longa frase que eu não prestei atenção... E repete ‘é por isso’, como se eu realmente fosse entender. Tudo o que entendo é que tenho sido um bastão, um aplauso e um silêncio na sua vida... Nada que você precise, mas que decidiu, de repente, que quer. E na minha vida você tem sido o caos... Se eu soubesse voltar para casa largava sua mão, seu ombro, seu corpo todo entre a sarjeta e a calçada... Deixava você dormir em paz numa viela, numa escada, num monte de sacos de lixo... e ia embora.
            Andamos uma quadra e meia de forma capenga até você me apontar um bar antigo. Já está acenando para o garçom num gesto de amizade que ele não compreende... Eu te ajudo a sentar numa das mesinhas do lado de fora, mas não me sento. Você continua sinalizando ao garçom, mesmo diante da forma indiferente com que ele lhe trata. Eu começo lentamente a me afastar, são só alguns passos... Mas logo consigo dobrar a esquina e desaparecer de sua vista.
            As ruas estão escuras e fedem a urina e vômito. Há vários papeis jogados pelas ruas, algumas camisinhas perdidas, uns esgotos abertos, mas nada disso realmente me incomoda, sinto-me quase livre, quase limpa. Não que o cansaço tenha desaparecido, ele parece ser uma echarpe em meu pescoço, mas pareço estar na metade do caminho para minha cama. Olho o relógio aliviada, talvez em meia hora ou quarenta minutos eu já esteja em casa.
            Sigo até uma grande avenida movimentada, lá os carros correm como cometas para todas as direções. Espero em uma esquina, olhando cuidadosamente se há algum taxi vazio na rua, e, embora muitos carros passem, demora mais de dez minutos para finalmente encontrar um deles. Mas a felicidade é tanta que corro quase despreocupadamente em sua direção.
            Entro cuidadosamente na cabine do passageiro, do lado esquerdo. Mas assim que fecho a porta uma voz fala em meu lugar. Vai para a rua tal. Que temos pressa! Olho você ao meu lado, estupefata. Você me sorri calmamente, coloca o braço por cima de meu ombro e me segura perto de seu corpo, como se pudesse nos aproximar de novo.
            O taxi corre. Você me olha no rosto sem me compreender e decide monologar para me divertir. Fala sobre coisas importantes... Eu não escuto nada... Tudo o que sinto é o cansaço... Que parece aumentar na simples constatação de que essa noite será longa, se não eterna.

domingo, 21 de setembro de 2014

Setembro

            Todo ano é a mesma coisa.
            Batem-me a porta a noite. Uma voz que conheço, chama-me com cuidado. As cortinas nas janelas balançam com a brisa fresca dessa estação. E eu sei que o tempo chegou.
            Sempre abro a porta, não por desejo nem por vontade, mas por certeza de que, se não o fizer, ele vai voltar a aparecer... Vai entrar pela janela, dar um jeito de destrancar a porta, passar pelas frestas, telefonará repetidamente, teimará em aparecer em meus sonhos, em passar em frente aos meus olhos... E eu não posso suportar esse tempo que se estende... Que é ansiedade e medo do encontro e do confronto que sei que esta sempre por vir, então, quando a campainha toca, eu reconheço que não tenho escolha e a abro.
            Ele entra e tira o chapéu, nem está tão frio assim. A brisa que trás consigo e morna e doce, com um gosto de tempos antigos, com gosto de várias lembranças que não controlo. Tira o casaco leve, mas carrega a maleta consigo, mesmo quando eu me ofereço para guardá-la para ele.
            Segue-me até a sala, e sentamo-nos em poltronas diferentes, quase distantes. Eu ofereço água, ele recusa, ofereço chá, ele recusa, ofereço café, e ele só quer conversar... Bem que preferia que desejasse algo, que fosse dinheiro, que fosse uma bebida, que fosse um tempo, mas não, ele vem e me fala do tempo.
            Começa me falando da época...
            Aqui estamos de novo...
            E minha garganta trava, engasgada de palavras, nem mesmo o chá pode me ajudar.
            O tempo passou... E isso me entristece, não pelo tempo em si, mas por mim dentro desse tempo.
            Ele se debruça para frente, uma tentativa de se aproximar de mim, de me fazer entender. O tempo passou. Ele fala que alguns sonhos morreram... Algumas coisas quebraram... Alguma coisa deu errado no caminho todo, e que eu tenho que reconhecer... Agora, porque o tempo passou, e não tenho mais tempo para fingir que tudo esta bem, que tudo deu certo, e que a felicidade esta ao meu alcance.
            Eu choro... E ele deixa a poltrona em que estava para se sentar perto a mim. Não me acolhe, não encosta sequer uma mão em meu ombro, mas abaixa-se para me olhar nos olhos, já marejados.
Ele fala que estou longe de casa, que a casa da infância sumiu, que o amor da infância se perdeu, que os amigos da infância desapareceram, e que quem fui na infância morreu... E que não há volta para essas coisas, porque já existem em outros tempos, e estão longe de meus braços...
Entrega-me um lenço, e mais palavras, que gostaria que não tivesse me dado. Mas sei que é assim que funciona. Ele veio para falar-me... Ele veio porque o tempo passou... E eu estou ainda alguns anos atrás, e alguns sonhos a frente, e preciso que ele venha...
Fala-me dessas ilusões que fiz, e as quebra em frente aos meus olhos. Segura meus pés com força, e os coloca no chão. Diz e aponta o fato de que nenhuma mão segura a minha, que quanto mais o tempo passa, mais certeza tem de minha solidão. Retira os sonhos mortos de meus braços e os esfarela no ar da noite. Fala que me torno amarga e angustiada, embora não dura. Aperta minhas mãos, apenas para falar que elas parecem mortas...
E tudo o que desejo é que vá embora.
Mas ele não vai...
Suas palavras abrem as feridas antigas, e eu causo algumas novas para completar. Se tivesse como, sei que me esfolaria para que ficasse nova... Arrancaria meus cabelos com as mãos se isso fosse resolver algo... Mas apenas fervo a água para que eu possa me escaldar, e após as lágrimas terem lavado parte de mim, que seja o fogo o próximo a me limpar.
Ele me acompanha durante todo o trajeto,
E eu, triste e melancólica, com os pés arrastando no chão, vou para a cama, com um sono e cansaço imensos. Com dores que não suporto. E a realidade que não conhecia...
Mas ele vem junto.
E em minha cama, ele me abraça. Deitados juntos ele me embala, canta canções antigas, e deixa a familiaridade fazer parte do mundo, o que me acalma. Passa seus dedos em meus cabelos molhados, deixa que minhas faces molhadas vão de encontro a seu peito, e deixa que minhas mãos frias e mortas sejam reconfortadas por suas mãos quentes e mornas. Ele nunca diz que as coisas vão ficar bem... Porque não vão, o tempo para isso já acabou, e tenho que lidar com o tempo que tenho, e com os sonhos que não morreram, e as possibilidades que ainda podem vir. Ele nunca diz que as coisas serão melhores, mas fica ao meu lado e recita Drummond e Vinícius em meu ouvido...
Caio no sono, jamais com o coração feliz, mas saciada.
Ele passa a noite ao meu lado.
E na manhã seguinte, quando acordo, ele esta em frente a janela. Levanto-me e vou até ele.
Sob a janela se estendem milhares de flores, que colorem a vista até irem de encontro ao céu. Há em minha frente algo idílico como uma pintura, mas com os movimentos leves e delineados dos bailarinos, e o som leve e doce de uma orquestra...
Setembro não me fala nada. Ele passa sua mão pelos meus cabelos e então, quando sua mão toca meu ombro, puxa meu corpo para perto do seu. Em silencio pousa os lábios sobre minha cabeça num beijo calmo, num carinho doce. Quando finalmente paro de olhar as flores e volto meus olhos para sua face, olho seus olhos com cuidado... Deles vem toda aquela matéria, tudo o que se estende em frente... E embora saiba que tudo aquilo também é despedida, porque logo mais ele vai afastar-se, pegar a pasta e vestir o casaco leve, saindo pela porta da frente, sem mais nenhuma palavra sequer, como todos os anos... Mesmo assim, depois de tudo, Setembro ainda veio e trouxe-me a primavera.

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Parágrafo único

São as dálias e as margaridas que eu prensei no livro antigo. Eu digo tentando acalmar-me e dormir. São só as dálias secas... Fica calma e vai dormir. Mas nenhum sono me embala. Há um sussurrar antigo, não das flores, mas de mim, que vem como palavras engasgadas de muito tempo, todas desimportantes, mas agora, sem quem ouvi-las tornam-se as únicas lembranças que tenho. Memórias de algo que não fiz... Recolho meus murmúrios, minhas flores, meus tempos perdidos e rabiscos, não me aquieto, não há como. Dentro de mim correm as memórias das coisas mortas, e seus veios seguem num pulsar do sangue, lá eles cantam, recitam e declamam as palavras livremente como você e como nunca... 

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O tigre

            O tigre era de um alaranjado cor-de-abobora. Sua cabeça, que já deveria ser grande, na realidade era enorme... Do tamanho do que três cabeças normais de tigre seriam. O corpo, gigantesco, apresentava listras do tamanho de um palmo. Mas eram os olhos que eram mais enormes que tudo... Amarelos até então abrir-se uma fenda a um infinito.

            Eu sempre acordei cedo. Quando pequena saia da cama para ver o sol e pular no sofá, andar pela casa vazia e deserta, com até mesmo os animais dormindo. As vezes um gato ou outro saía brincar comigo, vinha a seguir meus passos, como sombra. Mas geralmente fazia-o sozinha. E o mundo inteiro surgia e nascia daquele acordar repentino, daquela madrugada que secava, daquelas cores que surgiam magicamente, de uma vida nova que sempre esteve ali e sempre foi o destino.
            Eu gosto de acordar cedo.
            Mas faz um mês que um sonho me vem á cabeça, que todas as noites é a mesma coisa, o mesmo desespero e ainda assim nada...
            Faz um mês que durmo em desespero. E faz um mês que acordo desesperada.

            Há uma calma enorme. Nunca em mim, mas eu sinto-a quando começo a cair dentro do infinito dos olhos daquele tigre enorme. Ele me olha pelo lado de fora de uma janela. Há apenas um vidro fino que nos separa. Uma mesa de jantar duas cadeiras, um par de tênis, um metro e meio e, por fim, um vaso de flores. Mas tudo parece desaparecer, e a distância não é nada... Porque um salto e ele estaria onde eu fico parada olhando.
            Nem eu nem ele nos movemos.

            Eu nunca sei como é realmente o sonho... Ele sempre parece difuso. Todas as manhãs quando acordo fico desesperada para saber o que foi que você me disse.
            Tudo o que sei é que é importante. De alguma forma...
            Mas apenas me lembro de como era sentir sua mão na minha e ver a grama verde do lado de fora.
            Por que estávamos mesmo caminhando?
            Faz mais ou menos quatro anos desde que finalmente deixei o apartamento que estive morando para ir para uma casa. Escolhi uma que tinha um quintal gramado, que, embora seja as vezes incomodo manter, é a visão mais reconfortante que tenho quando acordo e tomo meu café da manhã.

            Eu espero. Eu sei que estou esperando e que não cabe a mim fazer o primeiro movimento. E ficamos assim durante um tempo incontável. Até que, com um leve movimento da cabeça o tigre deixa de olhar diretamente para mim. E com isso vem o desespero.

            As suas palavras eram sobre algo que eu devia fazer... Mas tudo o que lembro era que a sua mão estava na minha quando estávamos caminhando. Que você me beijava antes de me falar comigo, que era importante, e que eu concordava...
            Era uma promessa feita, mas que eu não sabia como manter.
            Então lembro-me de voltarmos a andar.
            Sorriamos os dois... Numa felicidade que parecia transbordar silenciosamente e se espalhar pelo caminho todo... Até vir o desespero e eu acordar.

            A partir disso os caminhos mudavam. Haviam algumas poucas opções. E eu, sabendo que o tigre rondava a casa, não mais especulando o que havia lá dentro, mas me reconhecendo como presa circulava, comigo presa dentro dos olhos.
Eu corria.

            O resto do dia ficava com o sonho na cabeça, temendo-o, sem saber suas palavras, sem entender a ligação. Falam que os sonhos mostram alguma coisa do nosso interior, mas suas palavras nem mesmo eu conhecia, ou, se conhecia até mesmo de mim eu as tinha escondido.
            Pelas manhãs, enquanto ainda tinha o sonho fresco, sentindo o odor da grama e a quentura de sua mão, eu pensava. Retomava-o desesperadamente... Mas sem respostas.

            Enquanto me debatia e a casa encolhia, ouvia barulhos incômodos... Imaginava que era o tigre entrando pela cozinha, quebrando a janela dos quartos, entrando pela sacada dos quartos, vindo em minha direção pelo corredor. E eu corria, num desespero para tentar sair por algum espaço, uma solução. Mas as paredes continuavam encolhendo e eu fugia dos sons que vinham de todos os lados.

            Havia uma calma e singeleza quando você me olhava nos olhos, antes de me dar um beijo e antes de me falar as palavras que devia lembrar, mas nunca lembrava... Olhava para seus olhos de céu, que se estendiam infinitamente em um castanho comum para me ver pequenina reluzindo dentro deles. E isso já era toda a felicidade do mundo.
            Mas sempre acordava sem entender o porque. O tempo havia passado e nada disso era real, ainda que eu voltasse a esse ponto todas às vezes e todas as noites.
            Esse um mês era eterno.

            Num último momento encontro-me presa no fim e um corredor, que sequer sei como surge na casa. Fico ali, desesperada. Imaginando o tigre virar a curva e me ver.
            Nada aparece.
            Nada nunca aparece.
            E eu fico assustada esperando algo que nunca vai acontecer.
            Isso é sempre o pior.

            Eu continuo acordando todos os dias cedo, e me sentando sozinha na cozinha para tomar café.
            Mas hoje, quando desci as escadas e parei em minha sala de jantar para olhar o gramado, havia um tigre enorme do outro lado do vidro.
            Seus olhos eram enormes e dentro deles morava o infinito.

domingo, 24 de agosto de 2014

As duas

Há em minha mente duas casas que se sobressaem. Morei em muitas outras além dessas, mas essas duas, pequenas e eternas referenciais de longos tempos, são os caminhos da infância e adolescência. São toda a história que tenho realmente.
            A primeira casa em que morei é só uma memória, que não é minha, mas que esta em minha mente de tanto ser recontada. Sei vagamente sua localização, sei que ela foi modificada, vejo-a e apenas sinto a felicidade de saber que eu a reconheço, sem nem lembrá-la.
            Mas as outras duas casas... Casas das quais eu sei a cor dos pisos, o tamanho dos quintais, a que altura eu subi na torre da televisão, em que ponto do telhado eu fiquei presa por horas por ter medo de altura... Reconheço as cores das paredes, de hoje, e também de ontem... Sei onde os móveis foram colocados, sei onde escondi todos os objetos que tenho, lembro-me onde de esconder-me nas brincadeiras, onde me sentar a noite para ver a lua e contar estrelas... Lá eu reconheço as transformações.
            Essas casas são minhas histórias.
            Nelas ainda há as únicas coisas que me sinto tentada a roubar. Coisas sem valor certamente, mas que são totens de minha história.
            Há nelas toda a menina e garota que fui. A pequena essência que às vezes sinto que perdi... Nelas há o silêncio e as dores, mas também os sorrisos e festas.
            Elas são as matérias de um tempo que passou, e reconhecendo isso sei que suas existências são irreais, e elas mesmas estão esfacelando-se entre os anos e minha ausência, que cresce cada vez mais, a cada passo que me coloca mais longe, a cada passo que eu preciso e quero dar. Elas estão fadadas a sumir, como toda a cidade de infância que tenho dentro de minha mente também tem se desfeito lentamente...
            Delas não levarei muito, porque não se pode colocar uma casa dentro de uma caixa. Como dimensionar o tamanho do conforto dos seus quartos e os medos que tive de caminhar pelos corredores no escuro? Como medir o comprimento de minha felicidade no Natal? Ou saber o peso das tarefas domésticas? Como fazer com que entendam o apreço que tenho por um determinado padrão no piso ou em quais quadrados pode-se pisar na cozinha? Como levar a casa sem levar isso? Porque a casa além de espaço sou eu.
            Mas, mesmo não levando nada concreto, levo um pouco dela, porque dentro de minha mente seus cômodos se estendem, e suas histórias se desenrolam, sob o gosto do tempo, que adoça lentamente tudo o que ficou para trás. As casas em que vivi não foram perfeitas, mas seus defeitos esmoessem e lentamente ganham espaço como detalhes... A gente se amontoou por meses em três cômodos da casa para fazermos reforma, eu quebrei o dedo naquele banheiro, torci a perna naquele quintal, fiquei presa naquele foro... Mas tudo bem, até que foi legal, até que não doeu, até que não deu medo.
            Ainda assim vê-las sumindo dói. Não uma dor que dilacera, mas aquela pequena certeza de que algo esta morrendo, como uma flor debruçada em um vaso, como o ressoar do piano durante a noite, como a luz das velas sobre a estante... É uma dor compreensível, mas incomprimível, que se estende para além do espaço e chega ao meu futuro.
            As duas casas, não as outras seis que morei também, apenas essas duas casas, tem tudo o que espero. Dentro delas se desenrolam a vida que quero, e a vida que um dia vai continuar até chegar á última casa, aquela que colocarei para mim como morada afinal. Dentro delas há um universo inteiro diferente que se estende além da compreensão do mundo, dentro delas há o dia-a-dia e sua repetição que conforta, dentro delas entende-se da forma mais pura e verdadeira o que realmente significa ser uma família...

terça-feira, 1 de julho de 2014

Deserto (Areias, parte III)

            Não há tristeza no deserto,
            não há mistério,
            não há vazio,
            nem há ausência
            Há longos passos e longos tempos
            Não há silêncio
            como o do deserto
            Só há espaço
            eterno, mas terrenamente...
            Sempre um lembrete,
            Sempre um ditado,
            Que vem no vento,
            mas que não se entende
            Ainda que empurre
            a perna,
            o torço,
            o ventre,
            A andar no grande caminho
            Circular
            (d/n)a última serpente

Dunas (Areias, parte II)

            Duas vezes antes, mas não dessa vez,
            Desceram as luzes de céus estrelados
            Mas nunca as chuvas prometidas
            Piscaram estrelas calidamente
            Mas de nada adiantou as terras áridas
            As areias de antes mantém-se
            Como se acomodadas a residência
            Os gravetos, que são mãos estendidas
            Furam o ar em busca de um vento
            Não há...
            Nem mesmo um vento para sussurrar-lhes
            Há só uma imensidão vazia
            Que se estende além dos olhos
            Percorre toda a carne e segue os veios
            Sentem os tendões um repuxar melancólico
            Quase cordas a arrebentar, o afinar de um violino
            Uma viola de um velho...
            Nessas terras contraditórias
            Horas tão quentes horas tão frias
            Passam-se os dias como se fossem eternidades
            Toda a solidão é suportável
            Entendível até...
            Que haverá além disso?
            Estendem-se dunas de areias
            Que escondem os brancos ossos dos mortos
            E numa certeza duma ferida aberta
            Sei que isso é tudo o que há no mundo

- (Areias, parte I)

Entre meus dois lábios, só há espaço.
Para palavras mortas, e promessas secas.
Tantas as secas, que chegam a inundar os olhos.
Tantas enchentes que acabaram por varrer as faces
Todas brancas e lavadas, limpas.
Há tanto sal, que chega a grudar cabelos,
Que em meio ao vento se descontrolam.
Mas dentro da mente, onde os sonhos moram,
Todos eles murcham e desaparecem.
Enquanto o peito árido enlouquece,
Nessa batida que é cotidiano.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A pais

            A paz nunca veio. Mas você me apareceu pela janela.
            Sentou-se entre o abajur e meus sonhos, e sussurrou para dentro de meu ouvido. Eu fiquei quieta e olhei Setembro, sentado sério ao meu lado esquerdo... Ele deu de ombros e ergueu o jornal, estava ali apenas de passagem... Ainda estávamos em fevereiro.
            Você.
            É sobre você que eu me preocupo, porque hoje vem como fantasma... Quando real fugiu-me a mão e meus dedos ficaram a buscar os seus em um mar distante. Meus dedos apenas encontraram algas, e eu me enganei quando achei que estas poderiam ser âncoras. Você mesmo disse que não viria, mas eu esperei mesmo assim. Insistindo em algo que nunca sequer existiu... A não ser para mim.
            Agora me volta como fantasma, que nem foge a janela, nem aos pensamentos... Não posso expulsá-lo de casa... Porque quando pensei que o havia feito, apenas o guardei seguro em uma caixa, que se abriu com o mais leve dos sorrisos doces...
            Fica agora a vontade de novamente te trancar...
            ...
            Você acaricia de leve meus cabelos. Faz a morte, que vive enroscada por esses fios, desaparecer. Desembaraça os nós... Sem nos desembaraçar...
            Se eu pudesse fazer a gente ficar juntos eu fazia, mas não posso.
            Setembro reclama alguma coisa a respeito da data, e a respeito do frio... Ele sabe melhor das coisas que estão por vir, das que já aconteceram, e dessa repetição tediosa e ainda assim uma surpresa para mim. Ele aconselha a desiludir para não chorar, mas eu, mais iludida do que nunca, escuto sempre vagamente, juntando palavras para que elas venham a ser o que eu queria que fosse. Só depois descubro que ouvi errado...
            Pergunto a seu fantasma onde você esta, ele nada me responde... Pergunto como você esta, ele não me responde... Pergunto quando, porque, quem e o que você esta, dessa vez ele apenas me suspira. Não vai dizer... Eu sei, porque já perguntei outras vezes, todas as vezes que me apareceu esse pequeno pedaço, que é luz e sonho, que também é parte de você.
            Desisto e silencio-me.
            Você apenas segura minha mão. Um toque leve... Inexistente.
            Quando o sono quase vem e o sonho é quase vida, você me solta a mão, e num passo fantasmagórico passa para fora da janela e se vai. Num susto eu me levanto, corro a tempo de segurar os panos que você usa... Se fossem correntes eu até tinha uma chance de te arrastar, mas corrente alguma te prende... Nem pano, nem laço algum... Fossem cadarços eu ficava feliz, mas não há nada... E minhas mãos apenas sentem o ultimo breve suspiro de sua presença que se vai, sem nem mesmo um adeus.
Indo, nunca tenho notícias suas, a não ser o que vejo pelo lado de fora da janela... Um mundo inteiro que eu não pertenço, mas que você é capaz de pertencer... Tão distante.
            Fico parada esperando. Esperar é algo que sei fazer bem...
            Mas Setembro me murmura algo, que na verdade é “sai” e eu ouço “vai”. E então espero, porque ele me disse que posso ir, e se eu for ainda há chance de dar certo. E mesmo quando não vou a janela, que digo, não volte, que chore e que fique... Ainda assim lá esta a pais a iluminar o caminho... Ela é âncora, e com o mais leve dos carinhos, o mais ingênuo dos sonhos, mostra todo o caminho a você, nem que eu me esconda no fundo das prateleiras de livros e dos certificados curriculares, ainda assim, você consegue me encontrar por causa da pais. Ela é âncora, que transcende a mim e se ascende a ti...
            Caminho estranho...
            Eu mesma não sei bem o que ela é. Mas temo muda-la de lugar e te perder... Estranho medo de saudade, que ninguém jamais pode sobreviver...
             Espero...
            Num silêncio nervoso... Numa espera infinda...
Num viver de vontades bobas... Vontade imensa de me afogar. Vontade imensa de fazer parte. Vontade imensa de entrelaçar meus dedos nos seus e falar sobre literatura... Coisas bobas. Viver juntos, almoçar juntos, ter gatos e filhos juntos e nada mais...
            De ter vento nos cabelos...
            De ter as estrelas de seus olhos para mim... Como você tem as minhas...
            De ter paz e ter pais e ter o céu acima...
            De saber que a rosa e o sentimento que plantei não apodreceram...