sábado, 8 de dezembro de 2012

Há relógios na parede


            Há relógios na parede, dois no pulso, um no peito. Ditam minha vida, meus passos, e meu andar. Ditam minhas palavras, racionam minhas memórias, cortam excessos, cortam os gastos.
           A noite retiro todos. Fica o do peito. Ele fala baixo, sussurra, ruídos, barulhos, tudo leve, tudo calmo, quase brisa. Quase não o ouço e temo. Temo que o tempo se torne eterno e essa noite nunca acabe. Não posso descansar direito. Deveria me despir para dormir bem, mas não descalço os sapatos com medo das visitas, dos vizinhos, do namorado, esses estranhos que me batem a porta...
            Pedem açúcar. Não tenho açúcar, mas como? Só mascavo. Mascavo? Sim, açúcar de sítio, de casa antiga, de casa de avós, de cidadezinha do interior... Esse açúcar adoça minha vida. Não, não é refinado. Sei que acham que não adoça nada, mas não discutem. Então esta bem. Obrigado.
           Pedem informações. Não sei sair de casa, não sei andar nas ruas, o mundo me engole. Não sei dizer, desculpe.
          Pedem licença e entram. As vezes não limpam os pés, e eu fico triste. Sentam no sofá, me pedem para ter dó, me pedem para chorar, me pedem para ser forte, querem me proteger, colocam-me como algoz, ditam quem são as vítimas, choram nos meus braços, me apunhalam quando podem, correm para a porta quando felizes, fecham antes de dizer adeus. Adeus, digo sozinha no silêncio.
            Como fazer isso descalça? Ao menos meias, por favor. Mas não consigo. Durmo de sapatos, cabelos arrumados, camisa passada. Não posso me virar para não ficar amassada. Não posso também porque o gato dorme aos pés. Temo machucá-lo.
            As vezes ele nem esta lá, e eu estou sozinha, mas não me mexo. Vivo pensando em se caso estivesse... Em se caso tivesse dito... Em se caso fosse diferente.
            São vários ‘se’. As vezes eles assombram minha vida. As vezes apenas eu é que os assombro, não os reconheço, há um caminho apenas, e eles ficam deslumbrados com minha falta de visão crítica e fatalismo debilitante, assustam-se, e desaparecem. Descanso melhor. Mas não muito, estou calçada.
            Quando acordo a construção ao lado já faz barulho. Estão sempre construindo ou reformando. Hoje são os azulejos, caem do alto dos prédios para o chão, mas soam como sinos antigos. Queria me debruçar a janela e ouvir, mas o tempo é curto demais para isso. Estou atrasada, sempre. Já não vejo as horas, e recoloco os relógios nas paredes, no pulso, e mantenho o que tenho no peito. O som leve é sobreposto com o som dos demais relógios, e eu sinto o peso. Caminho sob o ditame que me é imposto.
            Camisa bem passada, calças sob medida, cabelo arrumado. Saio a rua. Levo a pasta, de trabalho, o lanche, que é almoço, às chaves, por segurança, os documentos, para ser real. Mas sou ilusão, sou fictícia, sou irreal, sou ilusória. Tão infinitamente pequena nesse mar de gente, nessa gente mar. Eles são pequenos também, e por isso esbarram forte, e gritam alto.
            Caminho em um fluxo. Daquele lado relógios diferentes, desse outro, relógios iguais ao meu... Então não sou única. Não. Nada é. Respiro. Suspiro. Caminho.
            O barulho me ensurdece. Emudece. E eu sinto vontade de parar. Mas antes que possa virar já estou em frente ao trabalho, e assim fico sem a opção de retornar. Para onde? Não sabe andar na cidade, não sabe fugir. Contenta-se. Conforma-se. Senta-se em uma cadeira e labuta como todo ser. E então retorna.
            A noite já é alta quando posso voltar. Os passos são mais lentos. A vida também parece desacelerar. Alguns faróis ainda correm nas ruas, estrelas cadentes pelo chão. Mas há pouco do lado de fora. Lá dentro, de todas as casas, as luzes acesas e as vozes crescentes indicam que o mundo foi guardado nas caixas. São caixas pequenas, com pequenas pessoas e pequenos sóis. Mas que brilham imensamente na escuridão azul. A melancolia avança sobre a terra e a cobre. Alguns nostálgicos ficam a ver o horizonte, mas hoje são poucos. Amanhã teremos menos. Eles somem. Desaparecem nesse mundo de concreto, não frutificam, morrem sem fincar raízes.
            E as minhas raízes? Foram fincadas nos meus sapatos. Então durmo com eles.
            Olho para o céu. Os edifícios despontam do chão e atingem o azul. Furam as nuvens, mas não fazem chover. Queria a chuva... Faltam lágrimas nesse mundo. Talvez não. Talvez falte terra, porque o mundo inteiro chora entremeando-se com risadas. Há muito concreto. Se houvesse grama descalçaria os sapatos...
            Repenso. Descalçaria?
            Não sei.
            Mas o céu é bloqueado pelos edifícios. E as estrelas somem, substituídas por janelas. Há dias em que há mais céu do que paredes. Outros há mais paredes do que há céu.
            Temo que um dia haja apenas concreto... Nuvens pintadas para pensarmos na liberdade. Ainda sou livre o suficiente para olhar a noite descendo e cobrindo a cidade. Se acordar cedo, posso ver o sol nascer. Ainda há flores que despontam das árvores corajosas que aparecem entre as calçadas. O vento ainda é frio quando o inverno chega. Não me controlam.
            Eu sou livre e sou viva!
            Mas não descalço os sapatos...
            Não tiro o relógio do peito...
            Ainda há louça por fazer. Migalhas no meu tapete. Alguns trabalhos para terminar. Só mais algumas horas...
            Depois, finjo ser livre para sempre.

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