sábado, 13 de dezembro de 2014

Fita

14        Estamos passando de carro por várias ruas. Eu, meu pai, minha irmã...
            Numa das travessas eu vejo você... Sentado num carro, segurando o volante.
            Vejo que você vê meus olhos, mas nós passamos. Pela janela do carro, eu me desprendo do banco, fico com metade do corpo para fora, numa tentativa de te ver...
            O vento arranca a fita de meus cabelos... E nós passamos.
Finalmente...

07        A chuva veio como cavalos correndo por entre os azuis do céu. Eu ainda estava sentada no meio da grama, quando você se levantou e disse que era melhor irmos, antes que também ficássemos doentes. Eu me levantei e ajeitei vestido, sem querer realmente ir. Dobrei sem presa a toalha de piquenique e guardei-a no cesto. Você já estava irritado quando me pegou a mão...
            Lembro-me de suas reclamações. Eu ficaria melhor sem você. Você disse...
            Eu soltei sua mão e perplexo e cheio de raiva você me olhou, mas não mexeu no meu ressentimento, nem no inconformado vinco da minha testa... E se foi. Vi em passos furiosos você se afastar.
            E a chuva, os cavalos e você passaram por cima de mim.

01        Você passa seus dedos pelos meus cabelos, como se fossem longos rios. Eles deslizam...
            Apenas a minha mão consegue segurar você, e é por isso que corremos colina a baixo, que passamos pelo pátio, pela árvore, pelo portão, pelas escadas, pela rua, e pela rua seguinte, que tem aquela cantina deliciosa, pela pequena casa amarela que é minha favorita, pela igreja, pelos prédios e pelo universo.
            Lá no fim, paramos arfantes... Eu apoio minhas mãos nos joelhos, os cabelos sobre o rosto, mas você me dá uma fita, e joga-os para trás.
            Não deixa o vidro dos seus olhos ficar coberto, porque se não, não tenho como saber se ainda estou ai dentro da sua cabeça. E eu não deixei.

04        Dentro dos seus olhos tem longas estrelas, por isso quando estamos deitados no sofá eu sempre peço para que você fique de olhos abertos. Nas paredes surgem pequenas e maravilhosas luzes, que são como pequenos reflexos e cujos movimentos mimetizam meus sonhos e os vagalumes. Você fita o teto, levemente entediado, naquela sensação de conforto absoluto que talvez incomode sua natureza instável. Apenas o desritmado e louco som, cheio de sentidos diferentes, do meu coração é que faz com que você se acalme.
            E eu fico olhando você olhando o teto... E o vazio que lentamente se aproxima de nós.

08        Você tenta se aproximar de mim, e eu me viro chateada. Ainda estou pingando a chuva, ressentimento e vazio.
            Irritado, agora com você mesmo, você passa a mão pelo cabelo, abaixando a cabeça, num gesto claro de desespero e desesperança. Volta a me olhar, preocupado. Arruma a fita nos meus cabelos e fala calmamente comigo. Não deixa esses olhos embaçarem, que se não eu não tenho como ver quem eu sou.

10        Não deixa essas luzes dos seus olhos se apagarem, que eu não vou saber voltar para casa. Eu te digo quando passo as mãos pelas suas costas, arqueadas.
            Você está chorando sobre alguma coisa tão interna que eu mesma não sei o que é, mas a forma com que se dobra é igual ao murchar das plantas, o entortar do ferro sob o maçarico, tem a dor da árvore partida pelo raio. Eu passo os dedos pelas suas costas. Eu assisto você.
            Seus olhos se fecham. Tristemente...
            Eu percebo o quanto está escuro.

12        A gente está se separando... Parece que o chão ao nosso redor está se fragmentando lentamente, e nos pedaços vazios longas sombras surgem.
            Você grita alguma coisa, mas eu não escuto... Pela primeira vez.
            Antes qualquer sussurro seu era audível e eu sabia de suas palavras quando ainda estavam passando pela sua língua, esbarrando num dente ou n’outro... Agora tudo parecia só indistinguível...
Sua mão tenta retirar a fita de meus cabelos, mas eu me afasto mais rápido, e fujo...
Você nunca vai ter a fita de volta.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Eterno

Jamais desejaria a eternidade
Que sufoco deve ser
acordar para sempre assim sozinho...
que tristeza não ter mais pais, amigos, primos, tios
nem mesmo o gato de estimação...
Como deve ser infinitamente triste saber
que sua saudade é infinda
que sua dor é infinda
que sua melancolia infinda se espalha lentamente
pelos dias como uma angustia eterna

De que adianta viver para sempre
se não há mais forças para ver o mundo
nem há mais gosto para ver o mundo
Se até suas pequenas lembranças se perderam
Se a árvore do primeiro beijo foi derrubada
Se sobre o parquinho que correu um estacionamento surgiu
Se suas raízes apodreceram
e até a cidade natal agora te rejeita
Tudo o que sabe e sente é que está só!...

Pela primeira vez entende a palavra ‘completamente’

Também não desejo a morte a ninguém
Eu apenas a reconheço como uma necessidade
talvez, se muito, amiga
que se enrosca em meus cabelos e dorme
aconchegantemente nos meus pensamentos
como um pequeno gato perdido
Sua presença é a sólida revelação do tempo
que não volta...

Se eu pudesse mesmo desejar algo
queria o mundo todo imortal,
menos eu
Queria que todos vivessem a eternidade
menos eu
Para que pudesse viver sem suas mortes
e ainda assim pudesse partir
É de todas as coisas o meu maior egoísmo
não ter esse respeito por vê-los morrer
não ter forças para suas ausências...
Mas eu faria o favor de não atormentá-los com minha efemeridade
eu passaria transparente por suas vidas
num passo leve de ladrão e bailarina
eu passaria como se espera e deve uma brisa fria da manhã,
passaria como as vezes passo, num passo lento
de uns meses perdidos, conversas perdidas, abraços perdidos...
assim, tão distante...
Se isso pudesse ser real...
eu teria só o peso de um papel
ou de um poema esquecido