quinta-feira, 28 de maio de 2015

23

          Não espero que você entenda.
            Eu não entendo, e eu quero entender...
            Não me sai da cabeça...
Durante a série do ‘Guia do mochileiro das galáxias’, de Douglas Adams, há uma parte do livro em que eles encontram esse homem que criou o universo... Ele mora em uma pequena cabana no meio do nada, e tem um gato. Eu lembro-me de que ele fala para o gato que ele precisa comer, porque se ele não comer ele vai morrer e se isso acontecer o homem que criou o universo não vai saber que ele é real.
            Que ele foi real...
            Não consigo esquecer que Münch disse que sobre seu cadáver flores nascerão e ele vai estar nelas e isso é a eternidade.
Não consigo esquecer que Milan Kundera escreveu que kitsh, a negação da merda (literal e metafórica), é o meio do caminho entre ser e o esquecimento.
            Eu penso que eternidade deverá nascer de meu corpo morto... Quais coisas vão nascer de minhas entranhas. Que poderá nascer de lá, se em meu estomago tem borboletas e monstros que se remexem e me atormentam? Se em minha mente há só um grande labirinto? Se em meus olhos dormem fantasmas? Se minhas mãos são frias e não deixarei que nenhum dos olhos ao meu redor reconheça o que cresce em meu coração?
            Que eternidade deverá sair de mim se eu mesma fui feita para desaparecer?
            E eu não esqueço o gato... O quanto eu me pareço com ele...
            Coma eles falam. Não suma eles dizem. Você vai desaparecer, eles me indicam... E eu sei e eu sei e eu sei... E eu tenho medo.
            Se for assim mesmo morrer, a negação de meus erros, como Kundera diz, quem terão de mim é tão pouco... Que sinto até pena dos que ficarão. Serei menos da metade de quem eu pareci ser, que é muito menos de quem eu de fato sou... É complicado. Tão pouco de mim vai restar e ainda assim eu vou escorrer pelos dedos das mãos em concha das pessoas e sumirei. Um dia meu riso não vai mais ecoar dentro de sua cabeça, nem saberá mais a cor de meus cabelos, não se lembrará de como foi encostar em mim, nem o que foi estar comigo, serei ao máximo uma imagem fosca, até nem mais imagem ser...
            Mas sobre meu corpo deverá algo surgir... Se dele não nascerem flores como o de Münch, seria bom que ao menos surgisse um arbusto, e que me cobrisse como um grande manto, e que me empurrasse para a terra como um coveiro, e que me deixasse dormir como se morrer fosse apenas isso.
            Só que não quero ser assim na tua mente...
            Eu me sinto o gato, e você me fala, coma, você precisa comer ou irá sumir, e eu como. E eu espero que seja o suficiente. Eu nunca pensei que fosse sumir, mas sempre achei que fosse morrer. Mas sumir... 
No livro de Kundera, ‘A insustentável leveza do ser’, Thomas toma a forma de um coelho quando corre para os braços de Tereza, em um sonho. Mas eu sou um gato e rodo pela sua sala, entre seus braços e a janela. Entre duas formas diferentes de desaparecer... Que forma tomaria você se estivéssemos em lugares diferentes, se fosse eu passível de te esquecer, se minha memória não tivesse tanta coisa bem guardada, se eu não tivesse caixas para te colocar dentro?
            Dentro de minha mente você tem só uma forma... Que é você sempre desde o princípio. E só tem um espaço... Que é o seu.
            Mas eu sou o gato. E o gato pode sumir...
            Mas sobre meu corpo flores deverão nascer e se isso acontecer eu terei a eternidade... Que não quero... Que odeio.

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Esfinge

            Decifra-me ou devoro-te, acredito que é o que falam as esfinges.
            Foi isso que me disse uma delas quando apareceu em minha porta a noite. Eu a abri, sem jeito com aquela pancada oca na madeira que não compreendi.
            Ela cambaleou pela sala e caiu no tapete. Batendo na pequena mesinha de centro. Derrubando dois livros, uma xícara de chá, minha concentração...
            Ela era enorme.
            Arfava...
            Decifra-me... Ela repetiu num som abafado, curvando com força as garras de leão no chão, tentando levantar o peso do corpo, mas sem grande sucesso. As costas dela se arquearam com força e sua cabeça tombou para frente em uma tosse dolorosa e contínua, que era um barulho de rugir e de gritar ao mesmo tempo.
            Virou o rosto para mim, humano e tão delicado. Olhou-me longamente, tentando falar algo, havia estrelas naqueles olhos que eram fuga, medo e dor.
            Decifra-me. Exigiu.
            Ou devoro-te. Ameaçou.
            Numa última tentativa usou toda a sua força e se pôs de pé. Tinha pelo menos dois metros, patas enormes, e embora estivesse cansada, certamente era mais forte que eu. Ainda arfava e seu peito se estufava de forma dolorosa. Seu corpo balançava lentamente, como se incapaz de manter-se em um equilíbrio perfeito. Era possível ver a dor que os movimentos lhe causavam e o cansaço que abatia seu corpo...
            Ainda assim ela se impulsionou para frente em minha direção. E eu corri até meu quarto onde fechei a porta atrás de mim com força. Ouvi uma grande pancada e um silêncio que durou apenas alguns minutos. Empurrei a cômoda na frente da porta, encostei-me num canto do quarto, segurando a luminária da cabeceira que seria minha arma se algo acontecesse.
            Cai no sono várias vezes...
            As vezes acordava com o som do raspar das unhas da fera em minha porta.
            Mas nada aconteceu.

            Na manhã seguinte acordei sem compreender a situação direito.
            Ao abrir a porta do quarto encontrei ao chão a esfinge morta.

            Não tive coragem de tocá-la e pulei seu corpo com muito cuidado. Ela havia tombado de lado e tinha todo o rosto coberto pelos cabelos a não ser a boca, que se abria num pequeno vazio sem som, uma das patas se aproximava do rosto, outra, da porta. Essa parecia ter sido arranhada várias vezes, alguns riscos pareciam mostrar a tentativa dela alcançar o trinco, sem sucesso... O restante do corpo parecia jogado, como se, depois de ter trombado não tivesse mais nenhuma força para se reacomodar, como se suas forças tivessem se esvaído. A calda era uma longa cobra morta, que cortava parte do pequeno corredor e terminava na sala.
            Ignorei a presença do corpo durante o restante do dia...

            Ignorei a presença do corpo o máximo possível.
            Mas a noite eu entrava no quarto e fechava a porta, que batia numa das patas da esfinge, ficava pensando nela... Ali... Parada... Do lado de fora... Sua voz ecoando lentamente na minha mente como se estivesse gravada...
            E não conseguia dormir...

            Numa das noites eu abri a porta, observei lentamente seu corpo, busquei seus olhos em vão e vi sua boca sem palavras. Irritado, ralhei Decifrar o que? E ela não me respondeu.
            Durante os próximos dias passei a olhá-la com atenção, não mais o medo que havia no primeiro dia, nem a desconfiança e a repulsa que se seguiu. Mas uma pequena e genuína curiosidade por ela. Conforme a observava, lentamente, mais eu pensava o quão triste havia sido a exigência que me fez... Decifra-me... E como era justa sua ameaça... Devoro-te... Afinal, como deveria ser viver naquele corpo, que não passava de um monstro a uns, numa ausência de semelhantes, nem humano e nem leão, sobrava a ela ser nada... Um mito, uma lenda, uma ideia desacreditada.
            Mesmo eu, que a tinha ali, logo a entrada da porta do quarto, não acreditava em sua existência. Mas eu a revia todas as manhãs e sonhava com ela todas as noites.

            Em meus sonhos a esfinge aparecia de várias formas, as vezes exatamente como era, moça e leão, mas as vezes apenas um enorme felino ou uma bonita garota. Em todas, no entanto, eu ouvia-a falar com força Decifra-me, como se eu soubesse o que fazer...
            Eu nunca sabia. Eu jamais saberei.
            Em todas as vezes eu ficava parado... Ela se aproximava e exigia uma resposta... Jogava-se em meus braços e eu sentia seu corpo quente contra o meu, sentia seus cabelos baterem em meu rosto e seu cheiro entrar no meu corpo, lembro-me das mãos dela em minhas costas ou a forma com que ronronava junto a mim... Seus olhos me perfuravam duramente e eu, sem respostas para dar, afundava meu rosto eu seus cabelos, em sua pelagem, e fingi-a não vê-la...
            Todas as manhãs acordava sufocado.
            Abria a porta do quarto, e lá, a esfinge morta, com sua boca aberta em silêncio, questionava-me decifra-me.

            Mas eventualmente a esfinge pôs-se a desaparecer. Como um mito, ela lentamente foi se tornando pó... Seus pelos e cabelos foram caindo e a pele lentamente descolando como pequenos flocos. Um dia havia só ossos, e mesmos os ossos também com seu tempo sumiram... A macha escura no piso, onde o corpo havia ficado, foi lentamente clareando.
Um dia não havia mais nada de esfinge lá, e eu quase tinha paz...
Comemorei com um vinho sua ausência.
Mas eu olhava para o lugar onde o corpo dela estivera, indiferente de todo o restante da casa, e ficava pensando em sua dor, como deve ter sido terrível morrer em frente a porta de meu quarto, numa suplica, sem ninguém compreendê-la. Como deve ter sido terrível ser tão sozinha...
Deve ser terrível ser um monstro ou um mito... Nem mesmo quando morta e, portanto, não mais uma ameaça, eu consegui tocá-la. Ela era de tudo tão distante a mim que não havia meio de nos aproximarmos e se houvesse...  Decifra-me ela disse, pediu, suplicou... Eu não o faria.
Eu até queria tê-la ajudado, queria poder entendê-la...

Mas, a grande verdade é que eu senti alívio quando finalmente ela se foi por completo.