domingo, 28 de julho de 2013

Flor(es)

Colhemos flores juntos, mas elas murcharam e morreram em nossas mãos, como natimortos. Mas insistimos em segurá-las.
Quando a noite caiu você as largou, e elas se espalharam pela grama. Gritei com você, mas já andava para casa, e eu, sem casa, tentei impedir que você partisse, mas seus passos eram rápidos e você sumiu, brilhante, junto das luzes. Eu só pude estremecer e gritar sobre as flores.
Tentei gritar até as luzes tremerem... E falhei.
Sem voz, sem sono, sem casa... Sem você.
Virei de ponta cabeça, como criança, como menina e como palhaço e virei flor.
Dancei com as pernas para o ar, mas não consegui rir sob(re) o mundo. Agora o tinha as costas.
E em silêncio, esperei você me (re)colher.

Contente

            Contente-se
            Contenha-se
            Conforme-se
            Conforte-se
            Contente...?

sexta-feira, 26 de julho de 2013

Estranho

Não precisaríamos de novos sonhos, se os antigos não estivessem a morrer...
Foi isso que Carlos disse.
É disso que me lembro...

São apenas três meses, que parecem eternos.
Carlos não foi meu namorado. Não foi meu amigo. Não foi meu colega. Não foi minha família. Não foi meu mestre. Não foi ninguém...
Carlos foi um estranho... Que passou.

Dezembro ele me encontrou. Porque eu não procurava nada, e ele procurava um café... E justamente em meu lugar de trabalho ele entrou, com os cabelos bagunçados, mas vestindo uma camisa bem passada, sem maleta de trabalho, um maço de cigarro na mão.
Não me viu. Passou direto pelo café todo, como se fosse uma simples parte de seu caminho habitual, vi apenas uma vez seus passos andarem em falso... Mas nunca com medo. Mas só o vi três meses, não sei quem é... Carlos é um estranho.
Carlos sempre vai ser o estranho.
Mas ele entrou na loja e não me viu. E sentou-se a mesa, sem maleta e sem papeis importantes para ler, mas com aquele ar de importante, não de negócios, mas de uma importância que parece que ele sabia mais. Poderia rir de coisas que nunca saberia, e entenderia o mundo como jamais me caberia saber.
Fui até a mesa anotar seu pedido. Sorriu-me melancólico. Mas sorriu...
Não me disse nada de importante. Não havia nada de importante para me falar?
Sonhei com aquele sorriso. E esse Carlos... Esse estranho.
Que coisa estranha...

Uma semana depois ele apareceu de novo. Andou pelo café como se fosse habitual, cumprimentou-me como se me conhecesse já a algum tempo. Sorriu-me melancolicamente, como se isso não me fizesse sentir dor também. Pediu um bolo de cenoura, e um café. Forte, por favor. Não gostava de açúcar...
Dessa vez ele tinha um caderno, e vi-o rabiscar cartas e cartões postais.
E arrisquei. Quando lhe fui entregar a conta
- Cuidado para não derrubar café em seus papeis.
Disse educadamente, mas também brincando, porque ele havia deixado umas gotas caírem, ou isso era culpa minha? Ele sorriu, sem toda a melancolia que geralmente sorria.
- Não, assim sabem que sou realmente eu.
Pagou e foi embora.

Carlos era estranho. Estranho como ninguém que eu já havia visto...
Era por isso que gostava dele.
Era bem mais velho que eu, que sequer havia chego na casa dos 20, ele já no final da dos 30. Mas me parecia atemporal, como os mestres da literatura que tanto ouvia minha irmã mais velha comentar.
Atemporal e imortal, que estranho... Isso era Carlos.
Então fazia questão de sempre atender sua mesa. Sempre sozinho, ou ele e seu livro, umas cartas e uns papéis, nunca usava maleta, sempre tinha cigarro, nunca esquecia de deixar gorjeta, sempre sorria, mesmo que melancolicamente. Nunca trazia celular, gostava de usar relógio, sentava-se sempre perto da sacada, para poder olhar a rua e as pessoas lá fora. Se esperava algo, nunca me disse.
Me disse tão pouco.
Disse que o dia era bonito, que eu era simpática, que o café estava ótimo, que não queria açúcar, que o café deveria ser bem preto, que queria bolo de cenoura... E... Que não precisaríamos de novos sonhos, se os antigos não estivessem a morrer...

Pensava em Carlos. Não o entendia, e isso era estranho...
Havia já algum tempo que trabalhava no café, e sabia o que esperavam de mim, e quem era cada um, o que falar, o que fazer... Mas ai não se encaixava Carlos. Porque Carlos era estranho, e eu não entendia nada dele, porque havia algo mais... Que ele não falava, mas que sabia, e que brilhava no fundo de seus olhos e aparecia na forma com que as canetas corriam o papel quando escrevia.
Quanto mais tempo passava, mais e mais cartas apareciam com ele. E o que era esporádico virou comum. Ele e as cartas eram um belo par.
Passou a vir três, as vezes quatro, vezes na semana. E eu o esperava...
Ansiosa.
Porque Carlos... Que não era ninguém... Era importante e era estranho...
Achava que apenas atendia-o, mas a verdade é que buscava entende-lo. Não conseguia, mas tentava... E tentava...
Quis ler por cima de seu ombro as cartas que escrevia. Quis sentar-me ao lado dele. Quis saber quem ele era, e o que estava fazendo ali!
Jamais fiz nada disso. Mas sorria, esperando que ele fizesse...
Ele não fez.

Que estranho. Não posso dizer que em apaixonei por Carlos. Porque não era disso que se tratava a nossa história. Jamais me vi junto de Carlos, jamais existiu um ‘nós’ entre Carlos e eu, jamais houve a possibilidade de futuro entre eu e Carlos.
Isso era um tanto desesperador... Se não havia futuro, então tinha que entendê-lo antes que se fosse.
E eu falhei.
Carlos só esteve no café por três meses.
Mas eu não sabia disso, até ele ir embora para sempre. Pensei que tudo seria eterno, porque Carlos era eterno dentro de minha mente. Mas também sabia que era passageiro e instável, porque ele pagava a conta e ia embora. Nas semanas que vinha menos, me desesperava.
Preocupava-me com ele. E aquele sorriso melancólico...
Ele, um estranho educado, que tomava café preto e escrevia cartas, provavelmente nunca realmente me viu. Eu, menina, deveria nunca ter notado ele.
Mas Carlos e apareceu como um ser estranho, e eu como criança, que ainda era, não pude deixar de ser curiosa...
Eu me perguntava sobre ele, porque não havia mais ninguém a quem perguntar. Quantas não foram as vezes que quis conversar com ele e esclarecer todas as minhas dúvidas, todas as minhas perguntas, mas nunca o fiz...
Deveria ter bancado a estranha e perguntado logo...

Hoje remoo tudo o que não aconteceu.
Tudo o que não falei.

A última vez que vi Carlos ele sentou-se a mesa triste. Não mais melancólico, mas triste...
Ouvi-o suspirar pesadamente, quando me aproximei.
E então o ouvi:
Não precisaríamos de novos sonhos, se os antigos não estivessem a morrer...
Não havia percebido que estava ali perto quando falou... Mas percebeu quando eu estava quase dando meia volta. Pediu-me um café, e me sorriu... Tristemente.
O que aconteceu Carlos? Que sonhos? Os seus?... Os meus?
Ele remexeu em alguns papéis, havia alguns envelopes. Nem deles havia uma pequena corrente dourada. Os cartões postais foram preenchidos com rapidez, mas eu o vi errar muitas vezes as cartas, reescrever e recomeçar. Por uma vez pensei que suas mãos tremiam... Mas não posso ter certeza.
Foi estranho... Porque Carlos parecia humano, e perdido...
Mas Carlos era imortal e atemporal.
E para mim, não via como ele poderia estar perdido.
Acho que aquela tarde, enquanto escrevia as cartas e os cartões ele percebeu que estava no lugar errado, que, enquanto preenchia os papeis com letras, viu que havia perdido muito tempo ali. Se sentava-se perto da varanda para esperar algo, percebeu que jamais chegaria. Se tomava café para não se distrair, percebeu que tudo era uma distração. Se comia bolo para relembrar o passado, percebeu que este não voltaria. Se visitava o café para encontrar algo especial, percebeu que ali não havia nada...
Se não eu...
Que não o entendia...

Então Carlos se levantou. E foi embora.
Mas em sua mesa estava o cordão dourado, e eu corri para lhe entrega-lo.
Gritei seu nome na rua. E ele se virou para mim.
Entreguei-lhe o cordão, mas ele não me parecia contente com a corrente em sua mão, havia dor, tristeza e tantas outras coisas em seu olhar. Quase não pude olhar. Mas também não conseguia desviar os olhos...
Mas agradeceu-me.
Titubeou ao andar... Voltou seus olhos para mim... Abriu a boca para me falar algo...
Mas mudou de ideia...
Sorriu-me Carlos e acenou.
Eu esperei que ele voltasse a me olhar. Mas ele não fez.
Mas eu decidi que dá próxima vez que ele aparecesse eu conversaria com ele, se me permitisse. Sentaria em sua mesa, duas xícaras de café, e perguntaria tudo! Eu disse para mim mesma! Eu prometi! Eu cumpriria.
Porque Carlos era estranho.
Porque Carlos era importante.
Porque Carlos era atemporal e imortal.
Mas tudo isso apenas para mim...
E eu precisava saber porque...
Precisava entender sua frase e entender sua dor, que também me atingia com a frase: não precisaríamos de novos sonhos, se os antigos não estivessem a morrer...
Mas... Carlos...

Nunca mais veio...