Não
precisaríamos de novos sonhos, se os antigos não estivessem a morrer...
Foi
isso que Carlos disse.
É
disso que me lembro...
São
apenas três meses, que parecem eternos.
Carlos
não foi meu namorado. Não foi meu amigo. Não foi meu colega. Não foi minha
família. Não foi meu mestre. Não foi ninguém...
Carlos
foi um estranho... Que passou.
Dezembro
ele me encontrou. Porque eu não procurava nada, e ele procurava um café... E
justamente em meu lugar de trabalho ele entrou, com os cabelos bagunçados, mas
vestindo uma camisa bem passada, sem maleta de trabalho, um maço de cigarro na
mão.
Não
me viu. Passou direto pelo café todo, como se fosse uma simples parte de seu
caminho habitual, vi apenas uma vez seus passos andarem em falso... Mas nunca
com medo. Mas só o vi três meses, não sei quem é... Carlos é um estranho.
Carlos
sempre vai ser o estranho.
Mas
ele entrou na loja e não me viu. E sentou-se a mesa, sem maleta e sem papeis
importantes para ler, mas com aquele ar de importante, não de negócios, mas de
uma importância que parece que ele sabia mais. Poderia rir de coisas que nunca
saberia, e entenderia o mundo como jamais me caberia saber.
Fui
até a mesa anotar seu pedido. Sorriu-me melancólico. Mas sorriu...
Não
me disse nada de importante. Não havia nada de importante para me falar?
Sonhei
com aquele sorriso. E esse Carlos... Esse estranho.
Que
coisa estranha...
Uma
semana depois ele apareceu de novo. Andou pelo café como se fosse habitual,
cumprimentou-me como se me conhecesse já a algum tempo. Sorriu-me
melancolicamente, como se isso não me fizesse sentir dor também. Pediu um bolo
de cenoura, e um café. Forte, por favor. Não gostava de açúcar...
Dessa
vez ele tinha um caderno, e vi-o rabiscar cartas e cartões postais.
E
arrisquei. Quando lhe fui entregar a conta
-
Cuidado para não derrubar café em seus papeis.
Disse
educadamente, mas também brincando, porque ele havia deixado umas gotas caírem,
ou isso era culpa minha? Ele sorriu, sem toda a melancolia que geralmente
sorria.
-
Não, assim sabem que sou realmente eu.
Pagou
e foi embora.
Carlos
era estranho. Estranho como ninguém que eu já havia visto...
Era
por isso que gostava dele.
Era
bem mais velho que eu, que sequer havia chego na casa dos 20, ele já no final
da dos 30. Mas me parecia atemporal, como os mestres da literatura que tanto
ouvia minha irmã mais velha comentar.
Atemporal
e imortal, que estranho... Isso era Carlos.
Então
fazia questão de sempre atender sua mesa. Sempre sozinho, ou ele e seu livro,
umas cartas e uns papéis, nunca usava maleta, sempre tinha cigarro, nunca
esquecia de deixar gorjeta, sempre sorria, mesmo que melancolicamente. Nunca
trazia celular, gostava de usar relógio, sentava-se sempre perto da sacada, para
poder olhar a rua e as pessoas lá fora. Se esperava algo, nunca me disse.
Me
disse tão pouco.
Disse
que o dia era bonito, que eu era simpática, que o café estava ótimo, que não
queria açúcar, que o café deveria ser bem preto, que queria bolo de cenoura...
E... Que não precisaríamos de novos sonhos, se os antigos não estivessem a
morrer...
Pensava
em Carlos. Não o entendia, e isso era estranho...
Havia
já algum tempo que trabalhava no café, e sabia o que esperavam de mim, e quem
era cada um, o que falar, o que fazer... Mas ai não se encaixava Carlos. Porque
Carlos era estranho, e eu não entendia nada dele, porque havia algo mais... Que
ele não falava, mas que sabia, e que brilhava no fundo de seus olhos e aparecia
na forma com que as canetas corriam o papel quando escrevia.
Quanto
mais tempo passava, mais e mais cartas apareciam com ele. E o que era
esporádico virou comum. Ele e as cartas eram um belo par.
Passou
a vir três, as vezes quatro, vezes na semana. E eu o esperava...
Ansiosa.
Porque
Carlos... Que não era ninguém... Era importante e era estranho...
Achava
que apenas atendia-o, mas a verdade é que buscava entende-lo. Não conseguia,
mas tentava... E tentava...
Quis
ler por cima de seu ombro as cartas que escrevia. Quis sentar-me ao lado dele.
Quis saber quem ele era, e o que estava fazendo ali!
Jamais
fiz nada disso. Mas sorria, esperando que ele fizesse...
Ele
não fez.
Que
estranho. Não posso dizer que em apaixonei por Carlos. Porque não era disso que
se tratava a nossa história. Jamais me vi junto de Carlos, jamais existiu um
‘nós’ entre Carlos e eu, jamais houve a possibilidade de futuro entre eu e
Carlos.
Isso
era um tanto desesperador... Se não havia futuro, então tinha que entendê-lo
antes que se fosse.
E
eu falhei.
Carlos
só esteve no café por três meses.
Mas
eu não sabia disso, até ele ir embora para sempre. Pensei que tudo seria
eterno, porque Carlos era eterno dentro de minha mente. Mas também sabia que
era passageiro e instável, porque ele pagava a conta e ia embora. Nas semanas
que vinha menos, me desesperava.
Preocupava-me
com ele. E aquele sorriso melancólico...
Ele,
um estranho educado, que tomava café preto e escrevia cartas, provavelmente
nunca realmente me viu. Eu, menina, deveria nunca ter notado ele.
Mas
Carlos e apareceu como um ser estranho, e eu como criança, que ainda era, não
pude deixar de ser curiosa...
Eu
me perguntava sobre ele, porque não havia mais ninguém a quem perguntar.
Quantas não foram as vezes que quis conversar com ele e esclarecer todas as
minhas dúvidas, todas as minhas perguntas, mas nunca o fiz...
Deveria
ter bancado a estranha e perguntado logo...
Hoje
remoo tudo o que não aconteceu.
Tudo
o que não falei.
A
última vez que vi Carlos ele sentou-se a mesa triste. Não mais melancólico, mas
triste...
Ouvi-o
suspirar pesadamente, quando me aproximei.
E
então o ouvi:
Não
precisaríamos de novos sonhos, se os antigos não estivessem a morrer...
Não
havia percebido que estava ali perto quando falou... Mas percebeu quando eu
estava quase dando meia volta. Pediu-me um café, e me sorriu... Tristemente.
O
que aconteceu Carlos? Que sonhos? Os seus?... Os meus?
Ele
remexeu em alguns papéis, havia alguns envelopes. Nem deles havia uma pequena
corrente dourada. Os cartões postais foram preenchidos com rapidez, mas eu o vi
errar muitas vezes as cartas, reescrever e recomeçar. Por uma vez pensei que
suas mãos tremiam... Mas não posso ter certeza.
Foi
estranho... Porque Carlos parecia humano, e perdido...
Mas
Carlos era imortal e atemporal.
E
para mim, não via como ele poderia estar perdido.
Acho
que aquela tarde, enquanto escrevia as cartas e os cartões ele percebeu que
estava no lugar errado, que, enquanto preenchia os papeis com letras, viu que
havia perdido muito tempo ali. Se sentava-se perto da varanda para esperar
algo, percebeu que jamais chegaria. Se tomava café para não se distrair,
percebeu que tudo era uma distração. Se comia bolo para relembrar o passado,
percebeu que este não voltaria. Se visitava o café para encontrar algo
especial, percebeu que ali não havia nada...
Se
não eu...
Que
não o entendia...
Então
Carlos se levantou. E foi embora.
Mas
em sua mesa estava o cordão dourado, e eu corri para lhe entrega-lo.
Gritei
seu nome na rua. E ele se virou para mim.
Entreguei-lhe
o cordão, mas ele não me parecia contente com a corrente em sua mão, havia dor,
tristeza e tantas outras coisas em seu olhar. Quase não pude olhar. Mas também
não conseguia desviar os olhos...
Mas
agradeceu-me.
Titubeou
ao andar... Voltou seus olhos para mim... Abriu a boca para me falar algo...
Mas
mudou de ideia...
Sorriu-me
Carlos e acenou.
Eu
esperei que ele voltasse a me olhar. Mas ele não fez.
Mas
eu decidi que dá próxima vez que ele aparecesse eu conversaria com ele, se me
permitisse. Sentaria em sua mesa, duas xícaras de café, e perguntaria tudo! Eu
disse para mim mesma! Eu prometi! Eu cumpriria.
Porque
Carlos era estranho.
Porque
Carlos era importante.
Porque
Carlos era atemporal e imortal.
Mas
tudo isso apenas para mim...
E
eu precisava saber porque...
Precisava
entender sua frase e entender sua dor, que também me atingia com a frase: não
precisaríamos de novos sonhos, se os antigos não estivessem a morrer...
Mas...
Carlos...
Nunca
mais veio...