Faz
tempo. Eu sei...
Mas você me disse para escrever
quando tivesse tempo.
Isso pouco antes de me mudar... Há
muito tempo... Eu não esqueci.
Não mentirei. Tive muito tempo...
Mas tão pouco para colocar nas cartas. E mesmo essa carta não trata de nada, é
vazia, se não essa sensação de saudade, que é tudo que tenho para lhe oferecer.
Não é muito, bem eu sei. Mas você jamais me pediu coisas para colocar nas
cartas, apenas tempo.
Então, aqui está todo o tempo que
tenho...
Que tive...
Não te contarei sobre as coisas que
faço. Elas inexistem. Ocupam tanto espaço que nem podem ser reais, porque
jamais conseguiram ser reais para mim. Você sabe que sou boa de fazer as coisas
maquinalmente, como se fossem sequencias intermináveis que não preciso prestar
atenção, e é assim que são todos os meus dias.
Se realmente quer saber algo sobre
hoje, tudo o que posso lhe dizer é que: acordo, visto-me, trabalho, almoço,
trabalho, janto, tomo banho e vou para a cama para tentar dormir.
Mas não direi mais, porque se quer
tempo, não pode também ficar com o que consome todo o meu.
Falarei sobre o passado. Porque o
que tenho a lhe entregar é tempo antigo e de saudade, nada novo. Nada que você
não conheça, ou não tenha vivido. É exatamente o contrário! Tudo aqui você
conhece, não haverá nada para se surpreender nem se atualizar, não
acrescentarei dados novos a sua vida, apenas tirarei o pó de tudo aquilo que já
conheceu. Eu disse logo de inicio que tudo que tenho a oferecer é saudade, e a
saudade é só mais um vazio.
A gente cresceu junto. Sua mão
sempre esteve na minha. Suas palavras em meus ouvidos, minha boca sussurrava
perto de sua orelha, contávamos segredos o tempo todo. Fazíamos segredos o
tempo todo. Você era meu maior segredo.
Único amigo, também.
Meu melhor ouvinte. E também
contador de histórias.
Não tenho ideia de como te conheci.
Mas apareceu em minha vida e ficou.
Todos os dias esperava você bater na
porta e entrar, como se a casa fosse sua, porque era e eu não sabia disso.
Sorria e vinha sentar no tapete comigo. Sua fisionomia sempre parecia mudar,
era meio camaleão. Jamais o reconhecerei se te encontrar na rua. Mas também não
me reconhecerá, não sabe como envelheci...
Jantou algumas vezes em casa,
sentava-se sempre ao meu lado, perto do meu braço direito. Batemos os cotovelos
algumas vezes, o que me irritava. Cheguei a derrubar ervilhas por sua causa.
Você tinha que usar a mão esquerda? As vezes cheguei a acreditar que fazia
algumas coisas apenas para me incomodar.
Sussurrava baixo demais em ambientes
lotados. Apertava minha mãe até os dedos ficarem roxos quando tinha medo.
Escondia um monte de coisas de mim. Nunca falava com meus pais, e sempre fugia
de todo mundo.
Eu achava que só tinha você como
amigo.
Mas era você quem tinha apenas eu.
E eu, na verdade, me contentava
apenas em ter você.
Mentira. Eu não queria ter outros
amigos.
Corríamos juntos como se fossemos
ventos. E comíamos pêssegos ainda presos no pé.
Você
nunca subia muito alto nas árvores. E eu queria chegar ao topo para
impressionar você. Funcionou durante algum tempo. Sentia-me rainha do mundo
quando subia, sabia que se gritasse o mundo inteiro responderia ao meu chamado,
e mais importante, você, como primeiro súdito, mais próximo, obediente e
maravilhado comigo, seria sempre o primeiro a me responder, o primeiro a me
ajudar, justamente aquele que queria que me servisse. Mas eu caí um dia, e
então, depois disso, jamais me atrevi a subir em qualquer lugar alto.
Estávamos
ambos no chão.
Ainda
hoje olho as árvores com desejo e medo. Desejo do poder. Medo da queda.
A
queda... Ainda esta gravada na minha cabeça. Ela é pior do que o próprio braço
quebrado. Ela é só desespero e descontrole. Nem sequer me lembro para onde você
foi depois que comecei a gritar.
Não
sei se foi você, mas eu acho que sim, que criou a grande lenda dos pêssegos.
A
semente de pêssego era capaz de conceder a imortalidade, ou ao menos o não
efeito do tempo na pessoa que ficasse segurando a semente. Seguramos sementes
durante o dia inteiro, mas a noite, sempre que dormia, a semente corria para
fora de meus dedos.
Eu
mentia para você, dizendo que havia conseguido! Que a semente de pêssego passou
a noite toda em minhas mãos. Você também mentia, e me dizia que havia
conseguido também.
Sorriamos
um para o outro.
Não
importava a mentira, se vivêssemos para sempre.
Tinha
manias absurdas você. Que eu adquiri com o tempo.
Ervilhas
só do lado direito. Arroz e purê não podem se tocar. Sapatos sempre perto da
porta. Nunca colocar nenhuma bolsa ou sacola no trinco. Sempre colocar um peso
sobre papeis. Jamais usar cachecóis verdes. Escovar os dentes com a mão
esquerda...
Você
também não deve ter saído ileso. Deve estar cheio de minhas manias, meus
gestos...
Antes
eu me irritava com isso. Sequer havia espaço entre nós para sermos duas
pessoas?
Hoje
agradeço. É o pouco de você que tenho comigo. Que, como você, não sou, nem fui,
capaz de controlar...
Lembra-se
de quando fomos colher flores? Você porque queria, e eu porque você ia. As
vezes era mais sentimental que eu. Geralmente era mais sentimental que eu.
Sentia-me como uma pedra perto de você. Incapaz de gostar de qualquer coisa,
porque você parecia gostar mais de tudo. Mesmo das banalidades, como a grama e
também o sol.
Tudo
no mundo era bonito sob seus olhos...
Eu
sempre invejei isso. Não tive escrúpulos em lhe dizer, você bem sabe.
E
você sempre invejou minha coragem. Que era só uma reação a sua falta de atitude
e não algo meu realmente.
Por
isso falta-me coragem hoje, porque não há ninguém com quem reagir.
Sorte
a sua que a beleza no mundo não morreu, porque ela sempre esteve dentro dos
seus olhos.
Nunca
te apresentei a ninguém.
Você
nunca me apresentou a ninguém também.
Não
precisávamos dessas coisas. Éramos os dois e assim bastava.
Imagino
se a saudade está em você também. Acho que não. Ela deve estar toda em mim,
porque é tão grande que não coube em meu corpo, e teve de transbordar em cartas
e consumir o tempo.
Não
é a primeira carta que te escrevo. Escrevi outras mil em minha mente. Umas tantas
outras em sussurros. Tive algumas em guardanapos e também outras em listas de
compras... Muitas e muitas cartas.
Rasguei
todas. Para ter certeza de que não iria te enviar.
Temo
que essa me escape...
Temo
que qualquer uma me escape.
Porque
tenho medo...
Estudamos
na mesma classe. Tivemos as mesmas lições. Você melhor nos estudos que eu. Eu
melhor nos esportes que você.
Sempre
fui mais alta, até você crescer. E cresceu... Ficou tão alto! E desajeitado
também. Enquanto eu fiquei pequena se comparado a você, e teimosa, se comparado
também.
Quanto
mais o tempo passava, menos tempo tínhamos. Sussurrávamos menos, e mais
segredos morriam. Deveríamos ter segurado melhor as sementes de pêssego...
Quando
vi, havia pouquíssimo tempo para nós. E fomos lentamente nos tornando dois...
Mas
eu já tinha a ideia de lhe soltar a mão. De te deixar para trás.
Porque,
você sabia... Iria logo ter de mudar de cidade. E não queria deixar você, como
minha metade, para trás. Então o deixaria, como apenas um passado, que seria
capaz de esquecer e seguir em frente.
Mas
que frente? Eu não sabia...
Mas
metade? Isso iria me matar...
E,
bem, matou você.
Matou
quem eu era também.
Demorei
muito tempo a entender. E mais ainda a aceitar...
Quando
decidi por fim crescer, não só mais nesse físico, mas em minha mente e como
atitude, tive que te deixar para trás, na tentativa de me tornar inteira.
Bobagem,
bobagem. Eu, agora, sei.
Na
plataforma você foi se despedir. Comprido, desajeitado, irreal.
Eu,
já decidida, colocaria em tudo isso um fim.
Quando
você me disse adeus. Segurei a respiração.
Foi
pior que pulo e pior que queda... Não sei como foi para você...
Mas
ali, quando sua mão buscou a minha, e sua boca foi a minha orelha, quando
fechou os olhos para um último segredo... Eu fiz você desaparecer...
Não
podia te levar comigo. Não podíamos crescer mais juntos.
Empurrei-o
para longe.
Larguei
sua mão invisível e o abandonei.
Você
ficou sozinho, já não mais amigo... Só imaginário.