quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Júlia

Júlia, não fala com estranhos
Júlia, não pensa nessas coisas, por favor...
Júlia, você me preocupa
Júlia, você só me dá trabalho
Júlia, não chora... por favor, Júlia, não chora
Júlia, tu não existe
Júlia, você tá bem?
Júlia, você me parece meio triste
Júlia, corta o doce
Nossa, Júlia, não viaja
Júlia, não foge, você não pode fugir
Júlia, eu te adoro
Júlia, isso não é solução
Júlia, não me faz surtar, por favor
Júlia, eu te amo

Udi

            Udi é uma impressão que dorme dentro dos meus olhos.
            Que, durante a noite, vem e deita-se em minha retina. Que se enrola nos capilares. Que, num movimento descontraído e sem sentido de uma criança dormindo, às vezes repuxa um ou outro nervo, joga meus olhos para cima, para baixo, para os lados...
            Ela sonha dentro dos meus olhos que sonham. Mas nossas ideias são diferentes... Nossos mundos e nossas dores. Ela às vezes enquanto eu durmo me sussurra algumas coisas, que escorrem como elefantes de Dali para dentro de meus sonhos. Às vezes ela chora dentro dos meus olhos, e eu choro sem entender o porquê.
            Mas nem sempre está em minha retina. Durante as noites, quando estou num estado de vigília, entre o sonho e o cotidiano, eu a escuto correr pela sala, pular no sofá, flutuar por instantes – sem peso nenhum –, escuto seu riso que reverbera como um sopro pela casa e sei de sua presença porque sou invadida por uma satisfação simples por estar viva. Sua presença não é temível, embora ela seja algo próximo a um fantasma. Eu quase sempre penso em me levantar e ir com ela andando pelos cômodos, de correr a casa como se ela fosse nova. Sempre penso e sempre durmo.
            Durante a noite Udi vem e puxa minhas pálpebras para cima, cuidadosamente entra por minha pupila e se deita lá no fundo. Lá ela se acalma, como minha menina dos olhos. Junto de algumas estrelas que tenho flutuando no líquido ocular, para que quando as pessoas olhem para mim, eles brilhem cuidadosamente em resposta, Udi repousa. É lá dentro que ela fica guardada...
            Udi era mais real antes. Porque antes ela era parte de minha realidade, e ocupava o espaço que hoje sou eu que ocupo. Nessa época eu não existia. Num outro futuro eu não existirei e pode ser que dividamos os mesmos olhos que uma vez foram nossos, mas que passamos somente a habitar.
 Mas hoje, ela é uma impressão. Irreal. Hoje ela é só mais uma parte de um tempo passado.
O cheiro de panos tingidos no varal, o ipê em frente a nossa antiga casa, os tijolos dessa casa, o estranho jardim de inverno, as balas Valda dentro da bolsa de minha mãe, o pinheiro de Natal enfeitado e secando lentamente na sala, as estantes do escritório cheio de livros que eu não entendia, o quarto com a faixa de ursos, o tapete rosa estendido no quintal, os brinquedos jogados ao meu redor, os panos com os quais eu me fantasiava de cigana, o piano silencioso na sala. Tudo isso passou. É incrível pensar que todas essas coisas estão acabadas...
Há uma tristeza e felicidade imensas quando concluo isso.
Eu mal espero para poder deitar também no fundo dos meus olhos.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Péssima literatura

            Nós seriamos a pior literatura que já existiu. Você me disse numa dessas noites... Numa quarta ou terça, assim, despropositadamente, como se estivesse jogando algo que sempre soube, mas que até então não tivesse encontrado oportunidade para falar e decidiu, de uma hora para a outra, simplesmente jogar essa informação no ar.
            Nós seriamos a pior literatura? Mesmo? Eu havia perguntado. E você apenas assentiu.
            Hoje, também despropositadamente, eu meio que compreendo o que você quer dizer...
            Porque ontem fomos ao cinema, andando de mãos dadas e compramos duas entradas. Você quis pipoca, eu estava com vontade de goma, pegamos duas garrafas de água. E a gente entrou para assistir o filme. Assim simples, assim quieto, assim sem mais nem menos.
Porque duas semanas atrás a gente foi ver uma exposição que eu estava louca para ver! Mas que você achou tediosa, e enquanto eu discorria a respeito dos quadros para não te deixar de fora, olhando as cores e as formas das composições (coisa chata de artista, eu sei) você ficou a olhar meu rosto, ouvir as coisas bobas que eu falava, se divertindo em com elas me encantavam. Mas, quando se tornou tedioso demais você pediu-me para encontrá-lo no café ali perto, e eu concordei sem maiores problemas, tirando seu livro de minha bolsa (andamos sempre os dois carregando livros).
Porque, quando a copa estava acontecendo você me convidava para ir ver os jogos com você e eu ia, mas entediava-me terrivelmente com os jogos (eu nunca consegui realmente assistir futebol), mas eu podia ficar sentada ao seu lado com uma prancheta e desenhar. Revezávamos as vezes em que cada um ia à cozinha. Chá para mim e uma cerveja para você.
Seriamos uma literatura horrível porque estamos habituados demais um ao outro... Faltam-nos vilões que não sejam contas, e faltam intrigas que não sejam quem comeu o que da geladeira ou onde determinada roupa foi guardada, faltam discussões sérias, porque as nossas são sobre quem vai levar o lixo para fora hoje ou lavar a louça, falta a polêmica, a frustração e a dor...
Como poderíamos ser uma boa literatura?
Nossas famílias não nos impediram de ficarmos juntos, Romeo. E o orgulho e preconceito nossos já se foram, então não podemos ser mais como Darcy e Elizabeth, também não nos cabe qualquer uma das outras heroínas e outros heróis de Jane Austen. Eu ocupo o lugar da Dora, de Jorge Amado, mas que não morreu. Você pesa no meu coração tanto quanto Minsk, de Graciliano Ramos, mas sem nunca ter se machucado. Nossa história nunca terminaria como ‘por isso que a gente acabou’, porque a gente simplesmente não acaba...
Somos como a ideia de uma Beatriz e Virgílio de Yann Martel, mas vivos e longe do cárcere. Eu sou sua Sabina que não fugiu e você o meu Franz que dessa vez compreendeu, em a ‘Insustentável leveza do ser’... Ou seriamos mesmo os outros personagens, Thomas e Tereza, já sem o ciúmes e as traições? Talvez sejamos dois Karenins apenas...
Assim, como poderíamos ser tão polêmicos quando ‘Lolita’? Ou tão descontínuos quando Carmem, em ‘O corpo presente’? Angustiados como ‘Dom casmurro’? Como ocupar os lugares de João de Lucena e Solange, de Lídia Jorge, se permanecemos juntos? Como? Se ‘De todos os fogos o fogo’ de Cortazar eu não deixei você duelar. Se nós somos o princípio do final feliz de ‘o morro dos ventos uivantes’? Como ser sua Charlote se eu e você estamos juntos, Werther? Haveria espaço para sofrimentos nessa história?
Como somos chatos... É verdade... 
Sequer somos clichês! Porque para ser clichê precisaríamos de uns dramas, você poderia estar doente, a gente poderia se separar por uns tempos, eu poderia estar comprometida...
Nossa história se passa depois dos dramas e das dores, sem as abandonarem, claro, mas agora tornando-as mundanas e simples, cotidianos e não mais desesperos inimaginavelmente intransponíveis...
Seria chato demais lerem-nos! Por sorte ninguém o faz, e a gente vai vivendo assim simples, como uma péssima literatura... Que conta a história que ninguém quer saber, do que acontece no ‘e eles foram felizes para sempre’.