A medicina parece, como grande parte dos desejos, uma dádiva
e uma maldição. O preço por ela sempre é alto. Não acho que o grande problema
seja que ele exige muito, acho que é necessário exigir para que as pessoas
cresçam e se tornem responsáveis em alguns momentos, mas é desmedida a
exigência que nos é imposta. Quantas vezes não vi colegas virando a noite para
entregar trabalhos? Quantas provas não fiz eu também depois de seguidas noites
mal dormidas? Quantas vezes deixamos de lado nossa vida, necessidades,
vontades, amigos, família?
Junto com a exigência há também a banalização de nossa
doação... Quem não virá a noite estudando, não é dedicado o bastante. Quem
entra em depressão no curso é fraco. Quem não se adequar ao que é exigido pela
universidade não serve. Lentamente a gente vai achando que é normal deixar
todas as coisas para fazer medicina. Meus amigos constantemente me falam que
pensam em desistir, que sentem falta de fazer determinada atividade, que estão
cansados... Colocamos todos os dias nós mesmos depois da medicina, engraçado
pensar que quando finalmente terminarmos o curso, 'doutor' também sempre vem
antes do nosso nome, como se ser médico vem antes de quem somos.
Triste e contraditoriamente, escolhemos a medicina justamente
por sermos quem somos, e por isso, pagar com nossa individualidade também
significa perder o motivo de estarmos no curso, correr o risco de ser um médico
medíocre porque a medicina consumiu tanto de nós que não há mais o desejo e a
paixão por exercê-la.
Ainda assim, é muito difícil largá-la, não só pela
dificuldade de ter entrado, não só pelos muitos anos de planos, não só pela ideia
de futuro que ela traz, mas porque ela constitui para muitos um sonho... São
uns poucos que largam matérias e tornam-se parias dentro da universidade, menos
ainda aqueles que, tendo entrado em medicina, conseguem abandonar o curso e
começar algo novo. Às vezes a gente acha que não dá para começar tudo de novo,
mais ainda, a gente não sabe como começar mais uma vez depois de tanto tempo
pensando justamente que a gente ia ser feliz na medicina.
Há em 'a insustentável leveza do ser' uma parte cujo sentido
é que: 'as vezes decidimos algo, que nem sabemos porque decidimos, mas que
mantemos e cada ano fica mais e mais difícil mudar por causa da inércia'. A
gente vai ficando para ver se melhora, e vai se acostumando com as dores,
naturalizando nossas doações, acreditando que as exigências que nos fazem são
devidas, vai se acostumando a não voltar para casa, a acordar cedo e dormir
tarde, a sempre estar atrasado com a matéria e sempre saber menos do que é
devido. Quanto mais o tempo passa, mais difícil é fugir. Perguntei a colegas se
melhora com o tempo, eles me dizem que sim, mas tenho pensado que na realidade
a gente apenas se acostumou. É triste pensar que nos acostumamos com a
situação, que é tão pouco saudável e justa, talvez sobreviver esteja realmente
acima das coisas. Sobrevivemos na medicina acima de tudo, mas viver é uma arte
da qual esquecemos completamente.