sábado, 28 de maio de 2016

Medicina

A medicina parece, como grande parte dos desejos, uma dádiva e uma maldição. O preço por ela sempre é alto. Não acho que o grande problema seja que ele exige muito, acho que é necessário exigir para que as pessoas cresçam e se tornem responsáveis em alguns momentos, mas é desmedida a exigência que nos é imposta. Quantas vezes não vi colegas virando a noite para entregar trabalhos? Quantas provas não fiz eu também depois de seguidas noites mal dormidas? Quantas vezes deixamos de lado nossa vida, necessidades, vontades, amigos, família?
Junto com a exigência há também a banalização de nossa doação... Quem não virá a noite estudando, não é dedicado o bastante. Quem entra em depressão no curso é fraco. Quem não se adequar ao que é exigido pela universidade não serve. Lentamente a gente vai achando que é normal deixar todas as coisas para fazer medicina. Meus amigos constantemente me falam que pensam em desistir, que sentem falta de fazer determinada atividade, que estão cansados... Colocamos todos os dias nós mesmos depois da medicina, engraçado pensar que quando finalmente terminarmos o curso, 'doutor' também sempre vem antes do nosso nome, como se ser médico vem antes de quem somos.
Triste e contraditoriamente, escolhemos a medicina justamente por sermos quem somos, e por isso, pagar com nossa individualidade também significa perder o motivo de estarmos no curso, correr o risco de ser um médico medíocre porque a medicina consumiu tanto de nós que não há mais o desejo e a paixão por exercê-la.
Ainda assim, é muito difícil largá-la, não só pela dificuldade de ter entrado, não só pelos muitos anos de planos, não só pela ideia de futuro que ela traz, mas porque ela constitui para muitos um sonho... São uns poucos que largam matérias e tornam-se parias dentro da universidade, menos ainda aqueles que, tendo entrado em medicina, conseguem abandonar o curso e começar algo novo. Às vezes a gente acha que não dá para começar tudo de novo, mais ainda, a gente não sabe como começar mais uma vez depois de tanto tempo pensando justamente que a gente ia ser feliz na medicina.
Há em 'a insustentável leveza do ser' uma parte cujo sentido é que: 'as vezes decidimos algo, que nem sabemos porque decidimos, mas que mantemos e cada ano fica mais e mais difícil mudar por causa da inércia'. A gente vai ficando para ver se melhora, e vai se acostumando com as dores, naturalizando nossas doações, acreditando que as exigências que nos fazem são devidas, vai se acostumando a não voltar para casa, a acordar cedo e dormir tarde, a sempre estar atrasado com a matéria e sempre saber menos do que é devido. Quanto mais o tempo passa, mais difícil é fugir. Perguntei a colegas se melhora com o tempo, eles me dizem que sim, mas tenho pensado que na realidade a gente apenas se acostumou. É triste pensar que nos acostumamos com a situação, que é tão pouco saudável e justa, talvez sobreviver esteja realmente acima das coisas. Sobrevivemos na medicina acima de tudo, mas viver é uma arte da qual esquecemos completamente.