quarta-feira, 3 de setembro de 2014

O tigre

            O tigre era de um alaranjado cor-de-abobora. Sua cabeça, que já deveria ser grande, na realidade era enorme... Do tamanho do que três cabeças normais de tigre seriam. O corpo, gigantesco, apresentava listras do tamanho de um palmo. Mas eram os olhos que eram mais enormes que tudo... Amarelos até então abrir-se uma fenda a um infinito.

            Eu sempre acordei cedo. Quando pequena saia da cama para ver o sol e pular no sofá, andar pela casa vazia e deserta, com até mesmo os animais dormindo. As vezes um gato ou outro saía brincar comigo, vinha a seguir meus passos, como sombra. Mas geralmente fazia-o sozinha. E o mundo inteiro surgia e nascia daquele acordar repentino, daquela madrugada que secava, daquelas cores que surgiam magicamente, de uma vida nova que sempre esteve ali e sempre foi o destino.
            Eu gosto de acordar cedo.
            Mas faz um mês que um sonho me vem á cabeça, que todas as noites é a mesma coisa, o mesmo desespero e ainda assim nada...
            Faz um mês que durmo em desespero. E faz um mês que acordo desesperada.

            Há uma calma enorme. Nunca em mim, mas eu sinto-a quando começo a cair dentro do infinito dos olhos daquele tigre enorme. Ele me olha pelo lado de fora de uma janela. Há apenas um vidro fino que nos separa. Uma mesa de jantar duas cadeiras, um par de tênis, um metro e meio e, por fim, um vaso de flores. Mas tudo parece desaparecer, e a distância não é nada... Porque um salto e ele estaria onde eu fico parada olhando.
            Nem eu nem ele nos movemos.

            Eu nunca sei como é realmente o sonho... Ele sempre parece difuso. Todas as manhãs quando acordo fico desesperada para saber o que foi que você me disse.
            Tudo o que sei é que é importante. De alguma forma...
            Mas apenas me lembro de como era sentir sua mão na minha e ver a grama verde do lado de fora.
            Por que estávamos mesmo caminhando?
            Faz mais ou menos quatro anos desde que finalmente deixei o apartamento que estive morando para ir para uma casa. Escolhi uma que tinha um quintal gramado, que, embora seja as vezes incomodo manter, é a visão mais reconfortante que tenho quando acordo e tomo meu café da manhã.

            Eu espero. Eu sei que estou esperando e que não cabe a mim fazer o primeiro movimento. E ficamos assim durante um tempo incontável. Até que, com um leve movimento da cabeça o tigre deixa de olhar diretamente para mim. E com isso vem o desespero.

            As suas palavras eram sobre algo que eu devia fazer... Mas tudo o que lembro era que a sua mão estava na minha quando estávamos caminhando. Que você me beijava antes de me falar comigo, que era importante, e que eu concordava...
            Era uma promessa feita, mas que eu não sabia como manter.
            Então lembro-me de voltarmos a andar.
            Sorriamos os dois... Numa felicidade que parecia transbordar silenciosamente e se espalhar pelo caminho todo... Até vir o desespero e eu acordar.

            A partir disso os caminhos mudavam. Haviam algumas poucas opções. E eu, sabendo que o tigre rondava a casa, não mais especulando o que havia lá dentro, mas me reconhecendo como presa circulava, comigo presa dentro dos olhos.
Eu corria.

            O resto do dia ficava com o sonho na cabeça, temendo-o, sem saber suas palavras, sem entender a ligação. Falam que os sonhos mostram alguma coisa do nosso interior, mas suas palavras nem mesmo eu conhecia, ou, se conhecia até mesmo de mim eu as tinha escondido.
            Pelas manhãs, enquanto ainda tinha o sonho fresco, sentindo o odor da grama e a quentura de sua mão, eu pensava. Retomava-o desesperadamente... Mas sem respostas.

            Enquanto me debatia e a casa encolhia, ouvia barulhos incômodos... Imaginava que era o tigre entrando pela cozinha, quebrando a janela dos quartos, entrando pela sacada dos quartos, vindo em minha direção pelo corredor. E eu corria, num desespero para tentar sair por algum espaço, uma solução. Mas as paredes continuavam encolhendo e eu fugia dos sons que vinham de todos os lados.

            Havia uma calma e singeleza quando você me olhava nos olhos, antes de me dar um beijo e antes de me falar as palavras que devia lembrar, mas nunca lembrava... Olhava para seus olhos de céu, que se estendiam infinitamente em um castanho comum para me ver pequenina reluzindo dentro deles. E isso já era toda a felicidade do mundo.
            Mas sempre acordava sem entender o porque. O tempo havia passado e nada disso era real, ainda que eu voltasse a esse ponto todas às vezes e todas as noites.
            Esse um mês era eterno.

            Num último momento encontro-me presa no fim e um corredor, que sequer sei como surge na casa. Fico ali, desesperada. Imaginando o tigre virar a curva e me ver.
            Nada aparece.
            Nada nunca aparece.
            E eu fico assustada esperando algo que nunca vai acontecer.
            Isso é sempre o pior.

            Eu continuo acordando todos os dias cedo, e me sentando sozinha na cozinha para tomar café.
            Mas hoje, quando desci as escadas e parei em minha sala de jantar para olhar o gramado, havia um tigre enorme do outro lado do vidro.
            Seus olhos eram enormes e dentro deles morava o infinito.

Um comentário:

  1. Incrível como seus textos conseguem puxar sentimentos. Sou grato por isso. Parabéns, Julia.

    ResponderExcluir