segunda-feira, 11 de maio de 2015

Esfinge

            Decifra-me ou devoro-te, acredito que é o que falam as esfinges.
            Foi isso que me disse uma delas quando apareceu em minha porta a noite. Eu a abri, sem jeito com aquela pancada oca na madeira que não compreendi.
            Ela cambaleou pela sala e caiu no tapete. Batendo na pequena mesinha de centro. Derrubando dois livros, uma xícara de chá, minha concentração...
            Ela era enorme.
            Arfava...
            Decifra-me... Ela repetiu num som abafado, curvando com força as garras de leão no chão, tentando levantar o peso do corpo, mas sem grande sucesso. As costas dela se arquearam com força e sua cabeça tombou para frente em uma tosse dolorosa e contínua, que era um barulho de rugir e de gritar ao mesmo tempo.
            Virou o rosto para mim, humano e tão delicado. Olhou-me longamente, tentando falar algo, havia estrelas naqueles olhos que eram fuga, medo e dor.
            Decifra-me. Exigiu.
            Ou devoro-te. Ameaçou.
            Numa última tentativa usou toda a sua força e se pôs de pé. Tinha pelo menos dois metros, patas enormes, e embora estivesse cansada, certamente era mais forte que eu. Ainda arfava e seu peito se estufava de forma dolorosa. Seu corpo balançava lentamente, como se incapaz de manter-se em um equilíbrio perfeito. Era possível ver a dor que os movimentos lhe causavam e o cansaço que abatia seu corpo...
            Ainda assim ela se impulsionou para frente em minha direção. E eu corri até meu quarto onde fechei a porta atrás de mim com força. Ouvi uma grande pancada e um silêncio que durou apenas alguns minutos. Empurrei a cômoda na frente da porta, encostei-me num canto do quarto, segurando a luminária da cabeceira que seria minha arma se algo acontecesse.
            Cai no sono várias vezes...
            As vezes acordava com o som do raspar das unhas da fera em minha porta.
            Mas nada aconteceu.

            Na manhã seguinte acordei sem compreender a situação direito.
            Ao abrir a porta do quarto encontrei ao chão a esfinge morta.

            Não tive coragem de tocá-la e pulei seu corpo com muito cuidado. Ela havia tombado de lado e tinha todo o rosto coberto pelos cabelos a não ser a boca, que se abria num pequeno vazio sem som, uma das patas se aproximava do rosto, outra, da porta. Essa parecia ter sido arranhada várias vezes, alguns riscos pareciam mostrar a tentativa dela alcançar o trinco, sem sucesso... O restante do corpo parecia jogado, como se, depois de ter trombado não tivesse mais nenhuma força para se reacomodar, como se suas forças tivessem se esvaído. A calda era uma longa cobra morta, que cortava parte do pequeno corredor e terminava na sala.
            Ignorei a presença do corpo durante o restante do dia...

            Ignorei a presença do corpo o máximo possível.
            Mas a noite eu entrava no quarto e fechava a porta, que batia numa das patas da esfinge, ficava pensando nela... Ali... Parada... Do lado de fora... Sua voz ecoando lentamente na minha mente como se estivesse gravada...
            E não conseguia dormir...

            Numa das noites eu abri a porta, observei lentamente seu corpo, busquei seus olhos em vão e vi sua boca sem palavras. Irritado, ralhei Decifrar o que? E ela não me respondeu.
            Durante os próximos dias passei a olhá-la com atenção, não mais o medo que havia no primeiro dia, nem a desconfiança e a repulsa que se seguiu. Mas uma pequena e genuína curiosidade por ela. Conforme a observava, lentamente, mais eu pensava o quão triste havia sido a exigência que me fez... Decifra-me... E como era justa sua ameaça... Devoro-te... Afinal, como deveria ser viver naquele corpo, que não passava de um monstro a uns, numa ausência de semelhantes, nem humano e nem leão, sobrava a ela ser nada... Um mito, uma lenda, uma ideia desacreditada.
            Mesmo eu, que a tinha ali, logo a entrada da porta do quarto, não acreditava em sua existência. Mas eu a revia todas as manhãs e sonhava com ela todas as noites.

            Em meus sonhos a esfinge aparecia de várias formas, as vezes exatamente como era, moça e leão, mas as vezes apenas um enorme felino ou uma bonita garota. Em todas, no entanto, eu ouvia-a falar com força Decifra-me, como se eu soubesse o que fazer...
            Eu nunca sabia. Eu jamais saberei.
            Em todas as vezes eu ficava parado... Ela se aproximava e exigia uma resposta... Jogava-se em meus braços e eu sentia seu corpo quente contra o meu, sentia seus cabelos baterem em meu rosto e seu cheiro entrar no meu corpo, lembro-me das mãos dela em minhas costas ou a forma com que ronronava junto a mim... Seus olhos me perfuravam duramente e eu, sem respostas para dar, afundava meu rosto eu seus cabelos, em sua pelagem, e fingi-a não vê-la...
            Todas as manhãs acordava sufocado.
            Abria a porta do quarto, e lá, a esfinge morta, com sua boca aberta em silêncio, questionava-me decifra-me.

            Mas eventualmente a esfinge pôs-se a desaparecer. Como um mito, ela lentamente foi se tornando pó... Seus pelos e cabelos foram caindo e a pele lentamente descolando como pequenos flocos. Um dia havia só ossos, e mesmos os ossos também com seu tempo sumiram... A macha escura no piso, onde o corpo havia ficado, foi lentamente clareando.
Um dia não havia mais nada de esfinge lá, e eu quase tinha paz...
Comemorei com um vinho sua ausência.
Mas eu olhava para o lugar onde o corpo dela estivera, indiferente de todo o restante da casa, e ficava pensando em sua dor, como deve ter sido terrível morrer em frente a porta de meu quarto, numa suplica, sem ninguém compreendê-la. Como deve ter sido terrível ser tão sozinha...
Deve ser terrível ser um monstro ou um mito... Nem mesmo quando morta e, portanto, não mais uma ameaça, eu consegui tocá-la. Ela era de tudo tão distante a mim que não havia meio de nos aproximarmos e se houvesse...  Decifra-me ela disse, pediu, suplicou... Eu não o faria.
Eu até queria tê-la ajudado, queria poder entendê-la...

Mas, a grande verdade é que eu senti alívio quando finalmente ela se foi por completo.

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