Nós
seriamos a pior literatura que já existiu. Você me disse numa dessas noites...
Numa quarta ou terça, assim, despropositadamente, como se estivesse jogando
algo que sempre soube, mas que até então não tivesse encontrado oportunidade
para falar e decidiu, de uma hora para a outra, simplesmente jogar essa
informação no ar.
Nós
seriamos a pior literatura? Mesmo? Eu havia perguntado. E você apenas assentiu.
Hoje,
também despropositadamente, eu meio que compreendo o que você quer dizer...
Porque
ontem fomos ao cinema, andando de mãos dadas e compramos duas entradas. Você
quis pipoca, eu estava com vontade de goma, pegamos duas garrafas de água. E a
gente entrou para assistir o filme. Assim simples, assim quieto, assim sem mais
nem menos.
Porque duas semanas
atrás a gente foi ver uma exposição que eu estava louca para ver! Mas que você
achou tediosa, e enquanto eu discorria a respeito dos quadros para não te
deixar de fora, olhando as cores e as formas das composições (coisa chata de
artista, eu sei) você ficou a olhar meu rosto, ouvir as coisas bobas que eu
falava, se divertindo em com elas me encantavam. Mas, quando se tornou tedioso
demais você pediu-me para encontrá-lo no café ali perto, e eu concordei sem
maiores problemas, tirando seu livro de minha bolsa (andamos sempre os dois
carregando livros).
Porque, quando a
copa estava acontecendo você me convidava para ir ver os jogos com você e eu
ia, mas entediava-me terrivelmente com os jogos (eu nunca consegui realmente
assistir futebol), mas eu podia ficar sentada ao seu lado com uma prancheta e
desenhar. Revezávamos as vezes em que cada um ia à cozinha. Chá para mim e uma
cerveja para você.
Seriamos uma
literatura horrível porque estamos habituados demais um ao outro... Faltam-nos
vilões que não sejam contas, e faltam intrigas que não sejam quem comeu o que
da geladeira ou onde determinada roupa foi guardada, faltam discussões sérias,
porque as nossas são sobre quem vai levar o lixo para fora hoje ou lavar a
louça, falta a polêmica, a frustração e a dor...
Como poderíamos ser
uma boa literatura?
Nossas famílias não
nos impediram de ficarmos juntos, Romeo. E o orgulho e preconceito nossos já se
foram, então não podemos ser mais como Darcy e Elizabeth, também não nos cabe
qualquer uma das outras heroínas e outros heróis de Jane Austen. Eu ocupo o
lugar da Dora, de Jorge Amado, mas que não morreu. Você pesa no meu coração
tanto quanto Minsk, de Graciliano Ramos, mas sem nunca ter se machucado. Nossa
história nunca terminaria como ‘por isso que a gente acabou’, porque a gente
simplesmente não acaba...
Somos como a ideia
de uma Beatriz e Virgílio de Yann Martel, mas vivos e longe do cárcere. Eu sou
sua Sabina que não fugiu e você o meu Franz que dessa vez compreendeu, em a
‘Insustentável leveza do ser’... Ou seriamos mesmo os outros personagens,
Thomas e Tereza, já sem o ciúmes e as traições? Talvez sejamos dois Karenins
apenas...
Assim, como
poderíamos ser tão polêmicos quando ‘Lolita’? Ou tão descontínuos quando
Carmem, em ‘O corpo presente’? Angustiados como ‘Dom casmurro’? Como ocupar os
lugares de João de Lucena e Solange, de Lídia Jorge, se permanecemos juntos?
Como? Se ‘De todos os fogos o fogo’ de Cortazar eu não deixei você duelar. Se
nós somos o princípio do final feliz de ‘o morro dos ventos uivantes’? Como ser
sua Charlote se eu e você estamos juntos, Werther? Haveria espaço para
sofrimentos nessa história?
Como somos
chatos... É verdade...
Sequer somos
clichês! Porque para ser clichê precisaríamos de uns dramas, você poderia estar
doente, a gente poderia se separar por uns tempos, eu poderia estar
comprometida...
Nossa história se
passa depois dos dramas e das dores, sem as abandonarem, claro, mas agora
tornando-as mundanas e simples, cotidianos e não mais desesperos
inimaginavelmente intransponíveis...
Seria chato demais
lerem-nos! Por sorte ninguém o faz, e a gente vai vivendo assim simples, como
uma péssima literatura... Que conta a história que ninguém quer saber, do que
acontece no ‘e eles foram felizes para sempre’.
Nenhum comentário:
Postar um comentário