sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Péssima literatura

            Nós seriamos a pior literatura que já existiu. Você me disse numa dessas noites... Numa quarta ou terça, assim, despropositadamente, como se estivesse jogando algo que sempre soube, mas que até então não tivesse encontrado oportunidade para falar e decidiu, de uma hora para a outra, simplesmente jogar essa informação no ar.
            Nós seriamos a pior literatura? Mesmo? Eu havia perguntado. E você apenas assentiu.
            Hoje, também despropositadamente, eu meio que compreendo o que você quer dizer...
            Porque ontem fomos ao cinema, andando de mãos dadas e compramos duas entradas. Você quis pipoca, eu estava com vontade de goma, pegamos duas garrafas de água. E a gente entrou para assistir o filme. Assim simples, assim quieto, assim sem mais nem menos.
Porque duas semanas atrás a gente foi ver uma exposição que eu estava louca para ver! Mas que você achou tediosa, e enquanto eu discorria a respeito dos quadros para não te deixar de fora, olhando as cores e as formas das composições (coisa chata de artista, eu sei) você ficou a olhar meu rosto, ouvir as coisas bobas que eu falava, se divertindo em com elas me encantavam. Mas, quando se tornou tedioso demais você pediu-me para encontrá-lo no café ali perto, e eu concordei sem maiores problemas, tirando seu livro de minha bolsa (andamos sempre os dois carregando livros).
Porque, quando a copa estava acontecendo você me convidava para ir ver os jogos com você e eu ia, mas entediava-me terrivelmente com os jogos (eu nunca consegui realmente assistir futebol), mas eu podia ficar sentada ao seu lado com uma prancheta e desenhar. Revezávamos as vezes em que cada um ia à cozinha. Chá para mim e uma cerveja para você.
Seriamos uma literatura horrível porque estamos habituados demais um ao outro... Faltam-nos vilões que não sejam contas, e faltam intrigas que não sejam quem comeu o que da geladeira ou onde determinada roupa foi guardada, faltam discussões sérias, porque as nossas são sobre quem vai levar o lixo para fora hoje ou lavar a louça, falta a polêmica, a frustração e a dor...
Como poderíamos ser uma boa literatura?
Nossas famílias não nos impediram de ficarmos juntos, Romeo. E o orgulho e preconceito nossos já se foram, então não podemos ser mais como Darcy e Elizabeth, também não nos cabe qualquer uma das outras heroínas e outros heróis de Jane Austen. Eu ocupo o lugar da Dora, de Jorge Amado, mas que não morreu. Você pesa no meu coração tanto quanto Minsk, de Graciliano Ramos, mas sem nunca ter se machucado. Nossa história nunca terminaria como ‘por isso que a gente acabou’, porque a gente simplesmente não acaba...
Somos como a ideia de uma Beatriz e Virgílio de Yann Martel, mas vivos e longe do cárcere. Eu sou sua Sabina que não fugiu e você o meu Franz que dessa vez compreendeu, em a ‘Insustentável leveza do ser’... Ou seriamos mesmo os outros personagens, Thomas e Tereza, já sem o ciúmes e as traições? Talvez sejamos dois Karenins apenas...
Assim, como poderíamos ser tão polêmicos quando ‘Lolita’? Ou tão descontínuos quando Carmem, em ‘O corpo presente’? Angustiados como ‘Dom casmurro’? Como ocupar os lugares de João de Lucena e Solange, de Lídia Jorge, se permanecemos juntos? Como? Se ‘De todos os fogos o fogo’ de Cortazar eu não deixei você duelar. Se nós somos o princípio do final feliz de ‘o morro dos ventos uivantes’? Como ser sua Charlote se eu e você estamos juntos, Werther? Haveria espaço para sofrimentos nessa história?
Como somos chatos... É verdade... 
Sequer somos clichês! Porque para ser clichê precisaríamos de uns dramas, você poderia estar doente, a gente poderia se separar por uns tempos, eu poderia estar comprometida...
Nossa história se passa depois dos dramas e das dores, sem as abandonarem, claro, mas agora tornando-as mundanas e simples, cotidianos e não mais desesperos inimaginavelmente intransponíveis...
Seria chato demais lerem-nos! Por sorte ninguém o faz, e a gente vai vivendo assim simples, como uma péssima literatura... Que conta a história que ninguém quer saber, do que acontece no ‘e eles foram felizes para sempre’.

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