Quando ela voltou os olhos para trás
a distancia era grande demais, e ela não pode ver o passado acenando firmemente
para ela, gritando com palavras vazias que ele queria ir junto, que ela não
devia esquecer, mas ela estava longe demais para escutar, e ele se tornara tão
pequeno a distancia que, ela nada ouviu, e foi como se ele nem lhe tivesse
falado...
Agora ela avança em silencio.
O trem avança também.
Rugindo por ele mesmo, e também por
ela, como forma de compensar sua silenciosa passagem.
Ela foi embora.
Mas pouco ficou para trás.
Um apartamento com uma pintura mal
acabada, que ela mesma havia feito as pressas, com a antiga geladeira e fogão,
que tanto a incomodavam... Alguns insetos que, embora não fossem dela, queriam
continuamente conviver naquele mesmo apartamento. Ficou para trás alguns papeis
de contas já pagas, algumas garrafas de leite vazias, alguns fios... Alguns
botões... E essas pequenas
coisas que nós esquecemos e que nos esquecem.
E ficou o passado, acenando ao
longe.
E ela foi embora...
Embora não soubesse para onde.
E a mala que continha suas coisas
parecesse diminuta e terrivelmente despreparada para ampará-la em uma jornada
tão desconhecida. Ainda que revisada com tanto empenho e cuidado.
As montanhas engoliam o trem, que
sacolejava e a fazia engolir seco. A passagem comprada com o resto do dinheiro
parecia loucura, parecia insensato, ainda mais depois de tantas coisas bem
planejadas, programadas daquela forma pragmática com que lidava com sua vida e
com tudo que lhe pertencia...
Sorte dos botões e linhas que
ficaram para trás, livres e soltos a tantas possibilidades, que, com ela, não
haveriam de ter.
Mas ela fora capaz daquele ato
insensato, impensado, que foi comprar a passagem, fazer as malas e ir embora,
deixando toda a história para trás. Tantas histórias que agora, abandonadas na
estação, agasalhando passado, ela já não via, e não faziam seu coração pesar,
já não faziam sua alma estremecer durante as noites, e chorar durante ás manhã,
naquele vazio.
Agora tinha o vazio a sua frente
apenas, e não mais dentro de si, ele era apenas o seu futuro e não mais ela
mesma. E como as linhas e os botões, a cada curva que o trem percorria, pelas
montanhas ou pelas colinas, arrastando-a para longe da terra-natal, mais livre
ela se sentia, mais leve, mais solta, e ela se via feliz... Finalmente.
E aquela sensação o contaminava, a
extasiava...
Ela nunca mais iria voltar.
Passado observou o trem ir, ate se
reduzir a um ponto no horizonte. Voltou para o apartamento sozinho, recolheu as
contas pagas, as linhas e os botões, com aquele cuidado que tinha com tudo que
era esquecido, as vezes por se identificar, as vezes por aquela saudade e
paixão, que se misturavam com o abandono. Ela o havia deixado, mesmo quando ele
quis ir... Porque?
As contas, colocou no bolso da
calça, mas as linhas e os botões ficaram no casaco do paletó, próximo ao peito,
próximo ao coração.
Observou
as garrafas de leite vazias, e, cumprimentou a geladeira e o fogão, ao sair.
Eram um casal de tanto tempo, exibindo claramente as vantagens e desvantagens
de se envelhecer conjuntamente, dividindo, mesmo depois de tantos anos, a mesma
cozinha, encardindo o mesmo chão, preocupando-se em permanecer apenas juntos,
principalmente agora, nesse principio do fim.
Passado passou algumas memórias
pelos ombros para se aquecer, e saiu naquele vento outonal, que parecia já
pertencer ao inverno.
A cidade não lhe pareceu mais
triste, nem mais alegre do que havia sido ate então, ainda existia toda aquela
sensação de que, querendo ou não, tudo estivesse quebrado, uma ausência de
atenção do mundo nas pessoas, e as pessoas ao mundo, mas sempre havia sido
assim, e isso, de certa forma, trazia toda aquela sensação de casa.
Ele queria que ela estivesse ali,
sairiam juntos comprar leite na padaria, que ficava a três quarteirões dali, ou
se sentariam lado a lado em um banco de praça para ver o céu escurecer
lentamente, poderiam ate mesmo ir assistir um desses filmes novos, que ela
gostava, e que ele, sem qualquer interesse, via, só para que ela se alegrasse.
Mas ela foi embora.
Deixou a cidade.
Deixou-o.
E ele vagueou sem destino... Isso de
certa forma o acalentou, não estaria ela também vagueando sem destino a algumas
milhas dele? Talvez não milhas, talvez mais... Mas não importava, não estavam
eles conectados por essa coisa que era vaguear? E ele sorriu.
Mas tão logo a felicidade veio, ela
se esvaiu, quando o vento soprou levantando folhas, levantando parte do cabelo
dele, levando embora um cachecol de uma criança mais a frente, fazendo com que
o garotinho, e seus pais corressem atrás daquele pano que dançava junto ao
vento. Hoje ela vagueia, mas ela não vai vaguear para sempre... E ele será
condenado a continuar a fazê-lo sozinho.
Tentou tirar esses pensamentos da
cabeça, mas não conseguiu. O que faria se nunca mais visse o sorriso dela? O
que faria se tudo o que lhe sobrasse fossem memórias? O que faria quando as
memórias começassem a se desmanchar?
Tantas perguntas... E ela não estava
ali para lhe responder. Como ela pode? A passagem de nada tinha haver com os
planos que ela havia traçado, decidido cuidadosamente as datas, os dias...
Havia sido ela que, ele bem se lembra, colocará o calendário, que continha os
próximos cinco anos, pregado na parede, e era nele que ela anotou todos os
aniversários, feriados, dias que faria compra, dia de pagar contas, tudo tão
calculado.
Ele gostava disso nela. Gostava da
forma com que ela fala do futuro parecendo que falava nele, como se fossem a
mesma coisa, como se ele nunca estivesse para trás, mas ali, junto dela
continuamente. Gostava da forma com que os dedos deles se entrelaçavam quando,
a noite, deitados lado a lado, dizia a ele sobre o futuro, contava histórias
sobre o que fariam juntos, e ele, fazendo a parte dele, lhe sussurrava o
passado... Naquele tempo ela ria.
E o riso doce enchia o quarto
pequeno.
Havia alguns meses que o riso
cessara...
Que quando ele ia lhe desejar boa
noite, já encontrava a porta fechada, e quando se pronunciava para dentro,
batendo de leve para não assustá-la de sua presença, de sua pessoa, via-a
chorar, e entre lágrimas que lhe cortavam, ela dizia que não queria ele ali, e
com o coração quebrado duas vezes, retirava-se.
Esse mesmo coração carregava agora
os botões e linhas dela, que foram abandonados para trás.
Não soube o que fazer quando soube
da passagem. Quis gritar com ela, quis dissuadi-la, quis consolá-la, porque
achava que era disso que ela precisava, não fez nada porque ela não quis lhe
falar. Quando ele bateu a sua porta para conversarem, ela não o atendeu, não o
deixou entrar. Ele insistiu e ela chorou.
Depois, quando finalmente conseguiu
a ver, ela estava entrando no trem. Os olhos deles se cruzaram, e aquela
expressão, que era medo, susto e saudade a cobriu, antes de desviar os olhos ao
chão, antes de finalmente entrar. Ele gritou o nome dela em vão, preso antes
das catracas.
Ela não voltou.
Ele ficou desesperado.
Que havia feito?
Ela sabia que não era culpa dele...
Mas, ainda assim, abandonava-o.
E ele brigou com os guardas, pulou a
catraca, tentou entrar no trem... Mas quantos não o seguraram, quantos o
impediram... Os números já não importam. Ele perdeu.
E o trem partiu levando apenas ela,
carregando uma pequena mala. Ele não conseguiu falar nada de inicio... Não
havia palavras, só lágrimas que, entaladas em sua garganta faziam com que todo
ele parasse.
Quando finalmente percebeu que ela
estava ficando muito longe, começou a gritar, mas ela não escutou. Tudo o que ele disse o tempo arrastou, algumas
coisas se perderam pela linha do trem e foram arrastadas para outros lugares ou
estraçalhadas pelas locomotivas em movimento, outras se perderam ao na estação
mesmo, que, algumas pessoas levaram, ou foram perdidas a pontapés mundo afora.
As promessas que ele fez se tornaram
vazias. Nenhuma delas ele poderia cumprir... Ele não sabia para onde ela ia,
ele não sabia como encontrá-la.
Pôs se a vaguear pela cidade natal
dela, assim, quando ela decidisse voltar para buscá-lo ela o encontraria ali.
Nunca mais ele poderia deixar aquela cidade, nunca mais ele poderia ser livre,
porque tudo o que queria era estar, novamente, ao lado dela.
Ele, linhas e botões, esperariam.
Teria que ter paciência, mas isso
todo o passado tem. Teria que, mais que isso, ter sorte, teria que contar com o
fato de que, em algum momento, ela sentisse mais saudade do que ressentimento e
dor, e, procurando saciá-la, ela comprasse uma passagem de volta, e viesse para
essa cidade que foi seu berço. Teria que esperar que a cidade não mudasse e
assim, as referencias, aquele banco que dividiram, a geladeira e fogão, o
apartamento pequeno, a padaria, não sumissem, caso contrário, quando ela
voltasse talvez ele já tivesse desaparecido, sem que ela pudesse resgatá-lo.
Mas tudo isso dependia de tanta
sorte...
E ele não se sentia com sorte.
Ele pediu a ela que a levasse.
Ela sorriu sem qualquer traço de
felicidade. Ele não entendeu muito bem.
Tinham tantos planos... Como ela
pode abandoná-los?
Ele esteve ao lado dela desde a
infância, dividiram o balanço, e a caixa de areia, dividiram segredos e
esconderam segredos, que ele gostava de relembrar para fazê-la rir. Você lembra
que no parquinho tinha um balanço quebrado no canto esquerdo? E aquele pedaço
de cerca mal colocado que, com cuidado, dava para passar e fugir? Havia uma
sorveteria no final da rua da casa de seus avós, nós descíamos lá aos domingos,
eu gostava do de limão, você só tomava o de uva... Lembra das manchas nas
camisetas? Lembra do sorriso? Lembra do som dos pássaros na praça?
Mas agora ela estava longe demais
para lembrar.
E quando chegasse ao seu novo
destino, naquele que viria a ser seu novo lar, sua nova vida, havia de
lembrar-se só do som do trem, aquele rugido que a libertou de seu passado, esse
passado que chorou por ela na estação. Esse passado que não a esquece.
Mas houve uma época que ela amava
ele.
Uma época um pouco atrás, um pouco
antes da partida... Alguns meses.
Nesses dias ela acordava e já abria
a porta para ele entrar. Sentavam-se juntos a mesa, e dividiam o café da manhã,
e, alegre, ela começava a comentar sobre sonhos futuros, e ele fazia
referencias com lembranças, que a faziam rir, e não era mesmo que aqueles
sonhos antigos estavam virando realidade?
Eram dias felizes. Que saiam juntos,
e ela o carregava para todos os lugares, com um cuidado e paixão que o fazia
infinitamente feliz, e retribuindo-lhe ele a acompanhava para todos os lados,
fazia-se solicito, abraçava-a, e criava em seus lábios um riso continuo.
Quantas coisas ele não fez virar memória, quantas referencias e verdades...
E então tudo acaba.
Como havia sido?
Ele tinha tantas lembranças sobre
isso.
Nos últimos meses ela o reduziu a um
único momento, e ela repintou a cidade natal a cores angustiantes, tons de
magoa, degrades em lágrimas. Ela o via só como dor.
E quando, pelas manhãs, ele batia em
sua porta, tentando fazê-la sorrir, ela lhe dizia que queria estar sozinha, e
abandonava-o, deixando vagar continuamente pelas ruas, sem destino e sem
ninguém.
Não era claro que a separação era
iminente?
Se foi, então ele encobriu com
histórias, e fez-se que logo passaria, que logo a porta da casa se abriria a
ele, e que os braços dela o rodeariam de novo, a mão dele poderia tomar a dela,
e caminhariam pela cidade como namorados que eram.
Mas ele estava manchado para ela, e
ele podia ver a repulsa quando ela o olhava. Não era essa enorme mancha escura
em seu ser? Essa que ela enxergava tão bem, e que ele quis tapar, quis mudar, e
quis arrancar-lhe corpo fora... Essa mancha terrível que ele se enojava em ter,
fruto de um segundo, de um erro de calculo daquele que o manchou, um erro de
calculo dela também...
Andou pelas ruas, atravessando as
mesmas calçadas, sem pensar... Sendo conduzido ao lugar que menos gostava, mas,
dando conta de tal fato quando, em frente aos portões de metal do cemitério,
ele finalmente tinha um obstáculo em seu caminho. Quase voltou. Contudo,
sentindo as linhas e os botões, aqueles restos de quem ele amava, pesarem-lhe o
peito, abriu as grades e adentrou...
As lapides se organizavam
cuidadosamente, parecendo lombadas de livros em suas estantes. Não havia
ninguém por perto, ao longe via-se um funeral silencioso, e nada mais... As
arvores farfalharam em cumprimento, e passado maneou a cabeça educadamente.
Ele odiava aquele lugar...
Nos últimos meses quantas não foram
as vezes que ela o arrastou para lá, e o fez dizer coisas sobre tempos ruins e
sobre tempos que, se foram bons, ainda assim a faziam chorar. Quantas não foram
as vezes que ele quis que ela se esquecesse, e que pudesse retirar toda aquela
dor dos olhos dela e do peito dele, mas ela relutava, não exatamente porque
desejava, mas porque o vazio a dominava, e ela prendia-se a única coisa que lhe
estava a vista, a dor.
Ele se aproximou de um tumulo em
especial. Olhando-o com nojo.
Ainda havia flores sobre o tumulo, e
ele reconheceu algumas que ela havia trazido, mas preferia não ter reconhecido,
não ter lembrado, não saber, ou mesmo, ter conhecido o indivíduo que ali encontrava-se
enterrado. Queria esquecer, queria que ela esquecesse... Assim, quem sabe, a
passagem de trem nunca tivesse sido comprada, e aquele caminho que ela traçava,
afastando-os, abandonando-o, jamais teria ocorrido.
Ali, sob a inscrição, sob flores, e
sob o completo ódio do passado, encontrava-se quem ela realmente amava.
Passado cuspiu sobre o nome.
- A culpa é sua
por ela nos abandonar.
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